VI - Breves considerações sobre a evolução dos contratos
106.- Ao lado das obrigações de natureza contratual, do "ius civile" ("nexum", empréstimo de dinheiro, e "sponsio", que criava entre as partes um vínculo de natureza religiosa), surgiu o sistema de contratos do "ius gentium", desapegado de formalismos e com base nas relações, que se estabeleceram entre os cidadãos romanos e os estrangeiros.
107.- Por este sistema, os contratos classificavam-se em "re, verbis, litteris et consensu", sendo certo que o primeiro se aperfeiçoava, pela entrega, pela tradição ("traditio"), da coisa ("res"); o segundo, verbalmente (pelo pronunciamento de palavras); o terceiro, por escrito; e o último, pelo consentimento dos interessados.
108.- Esta classificação, que é do Direito Romano Clássico (de fins da República, século II a.C., até fins do Principado, século III d.C.) atribui-se a Gaio (Institutas, Com. 3, par. 89), do século II d.C., falecido após 178 d.C.).
109.- Por sua vez, os contratos "verbis" e "litteris", ambos solenes, com "causa civilis" (com formalidades), coadunavam-se com a noção de contrato do primitivo Direito Quiritário. Assim, essas obrigações contraídas por palavras solenes e por escritos ("obligationes verbis et litteris contractae") acolhiam-se no "ius civile", sendo utilizadas pelos cidadãos romanos ("cives").
110.- Com o passar do tempo, tornaram-se insuficientes esses modelos contratuais, surgindo, então, em suprimento desse sistema, os contratos inominados, que alargaram as possibilidades de contratação, por meio das fórmulas de Paulo (Digesto, Liv. 19, tít. 5, lei 5, pr.): "do ut des (dou para que dês), "do ut facias" (dou para que faças), "facio ut des (faço para que dês) e "facio ut facias" (faço para que faças). Estes contratos eram protegidos por ação de caráter geral ("actio praescriptis verbis"), ao passo que os nominados por ações especiais.
111.- O Direito Romano custou a sair das fórmulas contratuais rígidas dos Quirites, para ir, pouco a pouco, granjeando o ar puro da liberdade, que purificou suas instituições contratuais.
112.- O problema dos contratos nominados e inominados cresceu de tal forma que, por vezes, coloca o estudioso do Direito ante a posição de saber se uma figura contratual é ou não típica ou se a mesma se constitui em um "tertium genus".
113.- Por outro lado, se o problema dos romanos foi o de forçar o aparecimento das formas de contratos atípicos, o nosso é de não deixá-las ao livre arbítrio das partes, ante o perigo de uma liberdade não condicionada.
114.- A importância do assunto é indiscutível, necessitando a matéria de uma regulamentação, para que os contratos atípicos sejam mencionados na lei, por meio de um tratamento genérico de princípios que, orientando sua formação, limitem a autonomia da vontade privada.
VII - Conceito de contrato atípico
115.- Os romanos conheceram os contratos nominados e os inominados, ou seja, os que possuíam e os que não possuíam um nome específico. Então, os contratos nominados tinham um tratamento legislativo próprio; hoje, entretanto, tal nem sempre acontece, sendo, portanto, obsoletss essas expressões.
Assim, a aplicar-se, presentemente, essa terminologia, deverá ela ser entendida com a devida ressalva da doutrina, pois, muitas vezes, o contrato tem nome, no ambiente de sua utilização, e não é nominado, dado que não se encontra, devidamente, regulamentado em lei.
116.- Daí, ser preferível a referência aos contratos típicos e atípicos, sendo certo que os primeiros ajustam-se, os segundos não, em qualquer dos tipos, dos moldes, dos modelos contratuais estabelecidos em lei.
117.- Por isso mesmo que tipicidade significa presença, e atipicidade ausência, de tratamento legislativo específico.
118.- Ressalte-se, neste passo, que a palavra típico advém do termo latino "typus, i", que significa tipo, modelo, molde, original, retrato, forma, exemplar, imagem, classe, símbolo, cunho, representação, que serve de tipo, de característico, sendo certo que "typus" vem do grego "typos" (o que foi forjado, batido), do verbo grego "typto" (bato, forjo).
119.- O artigo 1.322 do Código Civil italiano, segundo parágrafo, a seu turno, aponta, de modo indireto, como inominados ou atípicos, típicos todos os contratos que, ainda, não pertencem aos tipos, que possuem uma disciplina particular, desde que realizem interesses merecedores de proteção pelo ordenamento jurídico.
120.- Para a exata conceituação dessas categorias, devemos referir os ensinamentos de Francesco Messineo (Dottrina Generale del Contratto, Ed. Giuffreè, Milano, 3ª ed., 1948, p. 214), baseados no texto da legislação civil italiana, segundo os quais "o contrato é, ‘in concreto, nominado, quando se enquadra exatamente nas estatuições (cogentes ou imperativas), que disciplinam o correspondente tipo", sendo certo que, "Em verdade, tomada literalmente, a expressão contrato inominado equivale a contrato que não tem um nome no sistema legal; mas, definitivamente, o não ter um nome depende, a seu turno, do fato de que o referido contrato não está sujeito a disciplina própria; e é este último o exato conceito de contrato inominado".
121.- A tipicidade, que distingue os contratos nominados dos inominados, é fator preponderante nesta matéria, sendo certo que a tipicidade advém do elemento causa, do escopo contratual.
122.- Sobre tipicidade, assim se manifesta Pontes de Miranda (Tratado de Direito Privado, Ed. Borsoi, Rio de Janeiro, 1962, vol. 38, par. 4.257, p. 366): "A tipicidade tem causas históricas, por muito fundada no direito romano, porém não só a vida jurídica nos tempos posteriores e nos dias de hoje, atuou e atua, como também o trato dos negócios, em caracterizações inevitáveis. O tráfico jurídico não só tipiciza ou corrige o tipo. Por vezes, suscita tipos novos (e.g., no direito brasileiro, a duplicata mercantil), ou negócios jurídico atípicos. A vida muda. Embora os princípios permaneçam, mudam-se estruturas e conteúdos de negócios jurídicos".
Assim, quando falamos em contrato típico, ministra Angelo Piraino Leto (I Contratti Atipici e Innominati, Ed. Utet, Torino, 1974, pp. 67·e 68), com palavras de Sacco, queremos dizer: "contrato que se insere em uma figura que tem uma disciplina legal particular". Por outro lado, é contrato atípicos aquele que não possui uma disciplina legislativa, possuindo "uma causa nova e diversa, relativamente ao disciplinado pela lei".
123.- Os contratos nominados ou típicos recebem do ordenamento jurídico uma regulamentação particular, apresentando-se com um nome, ao passo que os inominados ou atípicos, embora possam ter um nome, carecem de disciplina particular, estando sujeitos às normas gerais dos contratos, desde que não contrariem a lei, os bons costumes e os princípios gerais de direito.
124.- Como bem sintetizou Silvio Rodrigues (Direito Civil, Dos Contratos e Das Declarações Unilaterais da Vontade, Ed. Saraiva, São Paulo, 1972, 4ª ed. vol. III, p. 35, nº 16), "Contratos nominados ou típicos são aqueles a que a lei dá denominação própria e submete a regras que pormenoriza", prosseguindo a conceituar os contratos inominados ou atípicos como os que "a lei não disciplina expressamente, mas que são permitidos, se lícitos, em virtude do princípio da autonomia privada. Surgem na vida cotidiana, impostos pela necessidade do comércio jurídico".
VIII - Classificação dos contratos atípicos
125.- É por demais complexo o problema da classificação dos contratos inominados ou atípicos, e deve ser compreendido com certa tolerância, uma vez que juristas de nomeada internacional têm trabalhado de forma exaustiva para sua solução, muitas vezes sem resultado prático, mas com contribuição teórica merecedora de aplausos, pois colocam eles, em plano internacional, um problema para ser solucionado e cogitado por outros ângulos de vista, abrindo o campo dos debates livres e construtivos, que é a meta propulsora da Ciência Jurídica.
126.- Colaborando nessa área, Francesco Messineo (Dottrina cit., p. 226) apresenta classificação dos contratos sob exame, adiante resumida.
Contratos inominados em sentido estrito ou puros: a) com conteúdo, completamente, estranho aos tipos legais (ex. contrato de garantia); b) com, somente, alguns elementos estranhos aos legais, enquanto outros, com função prevalente, são legais (ex. contrato de bolsa simples).
Contratos inominados mistos: c) com elementos todos conhecidos (elementos legais), dispostos em combinações distintas (tomadas mais de uma das figuras contratuais nominadas), elementos que podem estar entre si em relações de coordenação ou subordinação. Esta categoria é a mais numerosa sendo integrada por contratos unitários. A causa do contrato misto é, igualmente, mista, que advém de uma ou mais causas heterogêneas entre si.
127.- Por outro lado, o mesmo Francesco Messineo (Enciclopedia del Diritto, Ed. Giuffreè, Milano, 1962, vol. X, pp. 102 e 103) expõe o agrupamento sistemático dos contratos inominados, da lavra de Ludwig Enneccerus, com um pequeno acréscimo de idéias por Heinrich Lehmann, sendo esta sistematização, no seu entender, a que mais se impõe pelo rigor, pela organicidade e pelo fato de ter a mesma recebido maiores adesões, sendo certo que a procurarei sintetizar, na medida do possível, como adiante.
CONTRATOS INOMINADOS‚ (mistos, em sentido amplo: a) Contratos combinados‚ ou contratos gêmeos. Um dos contratantes obriga-se a várias prestações principais, que correspondem a diversos tipos de contrato, enquanto o outro contratante promete uma contraprestação unitária (ex. comida e alojamento por uma contraprestação única; transporte marítimo de pessoa, com alimentação). Compõem-se de dois tipos contratuais mesclados em um todo unitário. (As partes contratuais são inseparáveis); b) Contratos de tipo dúplice, ou contratos híbridos. Todo o conteúdo do contrato se enquadra em dois tipos contratuais diversos, de tal modo que se manifesta como contrato, quer de uma quer de outra espécie (ex. contrato de portaria, onde existem, tanto elementos da locação - uso de local a título oneroso - quanto, também, elementos de contrato de trabalho - prestação de serviços a título oneroso); c) Contratos mistos, em sentido estrito. O contrato contém elementos, que se mostram, cada um derivando de forma autônoma de outro tipo contratual nominado, sendo, pois, elementos legais e conhecidos, dispostos em combinações originais de coordenação ou subordinação. Assim, existe a fusão de causa de dois ou mais contratos nominados, ou de elementos de contratos nominados com atípicos, ou de, somente, elementos atípicos, sendo certo que existem em todos eles, uma causa mista, que deve ser, sempre, unitária (ex. a doação pode conter uma venda – ‘negotium mixtum cum donatione'‚ - ou seja, pode concluir-se, vendendo-se a coisa abaixo de seu valor; um negócio pode implicar uma compra e venda - renúncia de um crédito litigioso para a aquisição de uma coisa; um contrato de trabalho pode conter uma sociedade; o transporte de pessoa em vagão-leito implica não só transporte, mas também locação de coisa).
128.- No Brasil, é de destacar-se a classificação de ORLANDO GOMES (Contratos, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1981, 8ª ed., pp. 116 a 120), segundo a qual os contratos atípicos dividem-se em atípicos propriamente ditos e mistos. E acrescenta: "Ordenados a atender interesses não disciplinados especificamente na lei, os contratos atípicos caracterizam-se pela originalidade, constituindo-se, não raro, pela modificação de elemento característico de contrato típico, sob forma que o desfigura dando lugar a um tipo novo. Outras vezes, pela eliminação de elementos secundários de um contrato típico. Por fim, interesses novos, oriundos da crescente complexidade da vida econômica reclamam disciplina uniforme que as próprias partes estabelecem livremente, sem terem padrão para observar. Os contratos mistos compõem-se de prestações típicas de outros contratos, ou de elementos mais simples, combinadas pelas partes. A conexão econômica entre as diversas prestações forma, por subordinação ou coordenação, nova unidade. Os elementos que podem ser combinados são: contratos completos, prestações típicas inteiras, ou elementos mais simples. Nesses arranjos cabem: um contrato completo e uma prestação típica de outro; prestações típicas de dois ou mais contratos; prestações típicas de contratos diversos e elementos simples de outros. Uma vez que os contratos mistos constituem subdivisão dos contratos atípicos, não se incluem na categoria os que se formam de elementos de outros contratos, mas já se tornam típicos."
Entendo, todavia, "data maxima venia", que os contratos que se formam de elementos de vários contratos típicos não são típicos, mas atípicos mistos, como adiante demonstrarei.
129.- De ver-se, ainda, que Orlando Gomes, em seqüência, enquadra em três classes os contratos mistos: 1) contratos gêmeos; 2) contratos dúplices; 3) contratos mistos "stricto sensu", escudando-se nas lições de Enneccerus.
"Nos contratos gêmeos; e nos contratos dúplices"; continua o saudoso Professor baiano, "há pluralidade de prestações típicas de vários contratos que se misturam. Nos contratos gêmeos, a diversas prestações de uma das partes corresponde contraprestação única, enquanto nos contratos dúplices, a diversas prestações correspondem várias contraprestações. Aqueles são mais simples, estes mais complexos. O contrato misto‚ "stricto senso", segundo Enneccerus, contém elemento que representa contrato de outro tipo. Trata-se de contrato simulado, não o considerando contrato misto‚ alguns escritores. Entre os contratos mistos‚ não devem ser incluídos os que Enneccerus denomina contratos de duplo tipo‚ e contratos típicos com prestações subordinadas de outra espécie. Nos primeiros unem-se dois contratos completos, de modo que se apresentam como contratos tanto de uma espécie como de outra. Visto que o contrato misto resulta da combinação de prestações ou elementos simples de outros contratos, não pode ter essa natureza aquele que é formado pela justaposição de dois contratos completos. Tanto não são contratos mistos, que se lhes aplicam de modo imediato, e não por analogia, as regras de um e outro, como reconhece o próprio Enneccerus. Nos contratos típicos com prestações subordinadas de outra espécie, o contrato básico não se altera em sua natureza pela circunstância de se lhe agregar uma prestação de outro tipo contratual subordinada a seu fim principal. Desde que essa prestação não influi nesse sentido, o contrato não é misto, na acepção técnica da expressão."
De minha parte, continuo entendendo que o somatório, em um, de dois ou mais contratos completos, em que circunstâncias sejam, não possibilita a consideração de cada avença, isoladamente, como típica; isto, porque as prestações desses contratos mesclam-se em um todo, sem possibilidade de separação. Todas as obrigações assumidas formam um só contrato, misto, ensejando sua rescisão, por exemplo, o descumprimento culposo de qualquer delas.
130.- Sem qualquer pretensão de inovar ou de criar polêmicas, já em 1965, apresentei tese sobre a matéria (Contratos Inominados ou Atípicos, Ed. Cejup, Belém, 1988, 3ª ed., especialmente pp. 99 a 102), em que, a par de demonstrar a necessidade de regulamentação dos contratos atípicos, elaborei classificação dos mesmos, segundo critério que me pareceu racional.
131.- Assim, classifiquei os contratos atípicos, (em sentido amplo) em: 1) contratos atípicos, propriamente ditos (em sentido estrito); 2) contratos mistos: a) com elementos, somente, típicos; b) com elementos, somente, atípicos; e c) com elementos típicos e atípicos.
132.- Como resta evidenciado nessa classificação, embora abreviadamente, os contratos atípicos, em sentido amplo, não são mistos, pois eles contêm os contratos atípicos, propriamente ditos, que são formas singulares atípicos, como são formas singulares típicas as dos contratos nominados ou típicos, sendo contratos mistos, tão somente, os que mesclarem formas típicas ou atípicas, mutuamente, ou umas e outras.
133.- Os contratos atípicos mistos formam uma unidade indivisível, um todo uno e complexo.
134.- Existe o contrato atípico em sentido estrito, como o típico, caso contrário, o contrato, que de atípico simples se transplantasse ao direito positivo como típico, perderia suas características próprias.