CONSULTA
Consulta-nos o Dr. Delosmar Mendonça Júnior, ilustre advogado do Estado da Paraíba, sobre algumas questões de natureza processual, referentes a uma ação de investigação judicial eleitoral (AIJE), que tramita na Justiça Eleitoral do seu Estado, a respeito das eleições municipais de Sousa (PB). Eis as questões que submete à nossa análise:
"1.Na Investigação Judicial (proposta em 05.10.2000), julgada após as eleições – 13.02.2002 – (LC 64/90, art.22, XV), há imposição de formação de litisconsórcio passivo necessário entre o prefeito reeleito (investigado) e o seu candidato a vice, que à época dos denunciados não era sequer vice-prefeito?
2.O excesso de prazo para o juiz decidir diligências requeridas, em sede de investigação judicial eleitoral proposta após as eleições, tem o condão de extinguir o feito, quando as diligências foram efetivamente realizadas e sob o pálio do contraditório?
3.Providências de caráter de assessoramento, realizadas pelo Julgador antes da sentença, especificamente solicitar auxílio de auditores do TCE para desvendar extensa documentação contábil, sem constituir perícia, mas mero estudo dos autos conclusos, gera nulidade processual em sede de investigação judicial eleitoral?"
A consulta foi realizada sem que me fossem apresentadas cópias dos autos do processo, razão pela qual toda a análise a seguir exposta se fará estritamente vinculada ao conteúdo mesmo das perguntas, sem desbordar para peculiaridades processuais outras, estranhas às questões propostas.
PARECER
As questões propostas são bem distintas quanto ao grau de complexidade jurídica que envolvem. Em relação a primeira delas, inclusive, temos posição doutrinária assentada a partir da 4ª edição de nossa obra[1], no sentido da necessidade de formação de litisconsórcio passivo com os membros da chapa majoritária, sob pena de nulidade insanável. Eis o exato teor da exposição que fizemos naquela oportunidade:
"Diferentemente ocorre em se tratando de litisconsórcio necessário passivo formado pelos membros da chapa majoritária (Presidente da República e seu Vice; Governador de Estado e seu Vice; e Prefeito Municipal e seu Vice). Nesse caso, não há a mínima dúvida de que a relação jurídica processual angular deve ter a presença, no pólo passivo, do titular e do Vice, sob pena de nulidade insanável. É que o abuso de poder econômico ou político, o uso indevido dos veículos ou meios de comunicação social, que ensejam a aplicação da sanção de inelegibilidade, traz um proveito ao candidato principal e ao seu Vice, indistintamente, já que o voto é juridicamente dado à chapa uma e indivisível, e não a um dos candidatos independentemente. Aqui, a relação jurídica entre ambos, membros da chapa, é inconsútil, sendo impossível apartar o proveito ilícito obtido, como se houvesse possibilidade de o benefício impróprio não ser útil aos dois a um só tempo. A AIJE terá por finalidade alcançar a inelegibilidade de quem se houve beneficiado com o ato ilícito praticado, de modo que se faz obrigatória a presença do candidato a Vice na relação processual" (grifos são originais).
No mesmo diapasão, desde a primeira edição de minha obra[2] venho sustentando a necessariedade da formação do litisconsórcio passivo também para a ação de impugnação de mandato eletivo, argumentando que "(...) a ausência do candidato a vice no pólo passivo da relação processual causa a ele evidente prejuízo, sendo enganoso o pensamento no sentido de ser o candidato a vice o grande beneficiado com a perda do mandato da pessoa eleita à testa da chapa majoritária. De modo algum. Se ocorrer a perda do mandato do candidato principal, mercê de prática de abuso de poder econômico, corrupção ou fraude, haverá novas eleições (diretas ou indiretas, a depender do momento em que a perda do mandato se der). Assim, parece-nos nulo o processo instaurado sem a presença do litisconsorte necessário, pela unitariedade da sentença, vale dizer, pela comunhão de destinos a ligar os componentes da chapa".
Tenho para mim, todavia, que meu pensamento está a merecer reforma, e um maior desenvolvimento teórico. Tal afirmativa não é simples, nem tampouco fácil. Admitir a necessidade de rever conceitos e tomada de posição frente a um determinado tema por nós desenvolvido é, por si só, incômodo. A fortiori quando tal revisão se faz no corpo de um parecer, tratando de questão concreta em que esses conceitos se aplicam contrariamente aos interesses do Consulente. Meditei muito sobre o tema e, muito mais ainda, sobre a conveniência de emissão do parecer a esse respeito. Todavia, desde a primeira edição de minha obra eleitoral venho aprofundando os conceitos expostos, revendo aqui e ali posições que considerei superadas, sempre em nome da ciência e do desenvolvimento teórico do direito eleitoral. Não por outra razão, sempre salientei o compromisso com o fazer ciência, e tão somente ciência, sem "a intenção eticamente condenável de criar falsa doutrina para dar aparência de seriedade a aventuras jurídicas"[3]. Essa a razão pela qual o presente parecer nasce de um certo desconforto: o de proceder à revisão de obra doutrinária, tendo por pano de fundo questionário que aponta para uma situação concreta.
Sem embargo, julguei conveniente fazê-lo, sem rebuços. Não tivesse amadurecido meu pensamento, por certo manteria a atualidade das lições acima citadas. Como juiz que fui, aprendi a ter a humildade de rever posições, mesmo em face de situações concretas, quando o sentimento ético de justiça e minhas convicções assim orientavam. Desse modo, as linhas que se seguem são produto de profunda meditação, que será ainda mais desenvolvida para a próxima edição de minha obra referida. Os que as lerem, as linhas que se seguem, leiam com a certeza da honestidade intelectual com foram redigidas, sem a intenção exprobável de fácil ciência, que muda de posição como a biruta ao apontar as andanças do vento.
(1) Da unitariedade do litisconsórcio em AIJE e da sua facultatividade: o problema das candidaturas plurissubjetivas.
A elegibilidade é efeito do fato jurídico do registro de candidatura. Como todo direito subjetivo, é vantagem posta na esfera jurídica de alguém, subordinando a esfera jurídica de outrem, dentro de uma relação jurídica que vincula dois sujeitos determinados, ou um sujeito a outros sujeitos indeterminados (o alter). Desse modo, para que se possa falar de elegibilidade (ius honorum), é necessário ter presente que sua existência depende, como pressuposto necessário e inafastável, da ocorrência de um fato jurídico anterior, nascido da incidência da norma sobre o fato ou conjunto de fatos por ela previsto[4].
Candidatura e elegibilidade são termos sinônimos. É elegível quem é candidato; é candidato quem é elegível[5]. No nosso sistema jurídico, há candidaturas unissubjetivas e candidaturas plurissubjetivas. Chamo de candidaturas plurissubjetivas aquelas candidaturas registradas em chapa una e indivisível, de maneira que uma candidatura apenas será juridicamente possível com a outra ou as demais, dependendo da exigência legal. Ou seja, por determinação legal, não se admite que apenas um nacional proponha o registro para candidatura que, juridicamente, foi concebida para ser dúplice (Executivo) ou plúrima (Senado). Enquanto para os cargos proporcionais a candidatura é unissubjetiva (embora em listas indicadas pela convenção), para os cargos majoritários há exigência de suplência constituída quando do pedido de registro, sem a qual não poderá ser ele deferido, uma vez que o voto dado pelo eleitor não será, sob a óptica jurídica, apenas para o candidato principal, mas também para os que completam a chapa (art.178 do CE)[6].
A chapa majoritária é, desse modo, una e indivisível. Assim, quando do pedido de registro de candidatura, os membros da chapa devem estar indicados, com a documentação exigível pela legislação eleitoral (podendo ser preenchida alguma lacuna no prazo assinado pelo juiz para diligências). Contra o pedido de registro de candidatura, poderá ser oposta, no prazo legal, a ação de impugnação de registro de candidatura (AIRC). Essa ação tem por escopo a declaração da inexistência do direito do pré-candidato ao registro de candidatura[7], impedindo a formação da chapa que se quer constituir.
Se há indeferimento da chapa majoritária, em razão da inelegibilidade de uma de seus membros, há possibilidade de substituição do membro expurgado, vez que a inelegibilidade é sanção pessoal (art.18 da LC 64/90), que não contagia ao outro membro.
Com a indicação do substituto, o registro da chapa, como um todo, há de sofrer outra análise pela Justiça Eleitoral, abrindo-se novamente o prazo para a ação de impugnação do registro de candidatura. Trata-se, na verdade, de nova chapa, pois sendo plurissubjetivas as candidaturas, bem como indivisíveis, a sorte de um dos membros afetará necessariamente a do outro. Se o novo membro, por exemplo, for inelegível, haverá o registro da chapa de ser indeferido também, podendo haver a necessidade de outra substituição. Na ausência superveniente de um dos membros (quando já constituída a chapa), o membro remanescente continua a representar a chapa como um todo, ao aguardo da sua complementação. Vencidos os prazos e não apresentado substituto, haverá indeferimento da chapa e, em recebendo algum voto, será ele reputado nulo[8]
De fato, entre a renúncia ou a decretação de inelegibilidade de um dos membros da chapa (que são causas de substituição de candidato, ao teor do art. 13, caput, da lei nº 9.504/97) e a substituição do candidato (membro expurgado) pode ocorrer o lapso temporal de dez dias, que é o prazo para que se requeira a substituição de candidatura, consoante prescreve o § 1° do art.13 da Lei n° 9.504/97. Durante esse lapso temporal a chapa continua representada pelo outro membro, que permaneceu ao aguardo do substituto. Indicado o outro membro, deverá a Justiça Eleitoral apreciar o pedido de substituição a tempo e modo devidos.
Nesse passo, é fundamental realçarmos a distinção entre a incompletude originária da chapa e incompletude superveniente, chamando a atenção para o fato de que na ausência superveniente de um dos membros da chapa, o membro remanescente continuaria a representá-la como um todo, ao aguardo de sua complementação[9]. Esse é o ponto de subido relevo, que não se tem dada a devida importância quando da reflexão teórica acerca da substituição de candidatura, retirando dela as suas necessárias e importantes conseqüências práticas.
Tomemos como hipótese de viveiro a renúncia de um candidato ao cargo de Prefeito. Suponhamos, nesse caso, que houvesse o registro de candidatura da chapa original, nascendo para os seus membros a elegibilidade. No decorrer da campanha, imaginemos que aparecesse um sério problema no estado de saúde do candidato a Prefeito, havendo a necessidade do seu afastamento, razão pela qual terminou por renunciar. Com a renúncia, houve desfalque na chapa, embora tivesse continuado ela registrada, necessitando de complementação do membro faltante no prazo de dez dias após a renúncia e até o dia da eleição, por determinação legal (art.13 da Lei n° 9.504/97). Desse modo, havia já a elegibilidade dos membros da chapa, sendo ela, ao depois, subtraída de um de seus membros, em virtude da renúncia, v.g. Quanto a este membro restante, necessário se faz submetê-lo ao crivo de novo processo de registro de candidatura, nada obstante já presente a sua elegibilidade, vez que poderia o seu direito de ser votado podado pelo indeferimento posterior do pedido de substituição de candidatura, quando não haveria constituição de nova chapa. Veja: sendo a chapa majoritária una e indivisível, é toda ela submetida a novo crivo, através do processo de substituição de candidato. Mas a elegibilidade do membro restante permanece, até que seja cancelada por decisão que indefira o pedido de substituição, extinguindo toda a chapa, mercê de sua incompletude.
Sendo plurissubjetiva a candidatura, a renúncia de um dos membros, apenas por si, não destrói a chapa. Sua extinção apenas ocorreria após o decurso de prazo de dez dias, transcorrido sem pedido de substituição do membro faltante. Essa é a doutrina que defendo pioneiramente, e que sustento em minha obra e também aqui, sem embargo do total e absoluto silêncio doutrinário sobre tema de tamanha importância teórica e prática.
Constituída a chapa majoritária, ainda que pendente de recurso a decisão que a deferiu, há elegibilidade de ambos os membros: elegibilidade para titular da candidatura principal (presidente da República, governador de Estado e prefeito do Município) e elegibilidade para vice[10]. Havendo declaração ou decretação, superveniente ao registro, de inelegibilidade de um dos seus membros, a chapa fica desfalcada, necessitando complemento no prazo decendiário.
A ação de impugnação de registro de candidatura (AIRC) é prevista contra a constituição da chapa, em razão (a) da existência de inelegibilidade inata, (b) da existência de inelegibilidade cominada ou (c) da ausência de algum documento por lei exigido, mercê da qual faleça ao cidadão o direito ao registro de candidatura[11] Assim, sendo essas as causas de pedir, o pedido principal da AIRC é sempre o indeferimento do pedido de registro de candidatura da chapa, visando a impedir que se forme a relação jurídica inconsútil (chapa) que fará nascer a elegibilidade de seus membros.
Imaginemos, sem embargo, que a chapa bem-formada, ou seja, constituída integralmente por sua membridade, tenha um dos seus membros acusados, no desenrolar da campanha eleitoral, de se estar beneficiando da prática de abuso de poder econômico ou abuso de poder político, realizada por si ou por terceiro. O abuso de poder, como é consabido, é hipótese de inelegibilidade cominada, prevista no art.1°, inciso I, alínea d da LC 64/90. Para fustigá-la, é cabível a ação de investigação judicial eleitoral (AIJE), prevista no art.22 da LC 64/90.
Pois bem. Diferentemente da AIRC, a ação de investigação judicial eleitoral não tem por escopo imediato o desfazimento da chapa qual tal, mas sim a inflição de sanção de inelegibilidade àqueles que praticaram ou foram beneficiados pela prática de abuso de poder econômico e/ou político. O cancelamento do registro de candidatura, ou a nulificação do diploma, é efeito anexo (portanto excluso, secundário) da sentença que decretar a inelegibilidade do candidato, consoante dicção prescritiva do art.15 da LC 64/90, que tem pré-excluída a sua incidência se a sentença de procedência for prolatada após as eleições. Nessa hipótese, deverá o juiz eleitoral enviar cópia dos autos ao Ministério Público Eleitoral, para que seja promovida, se ainda houver tempo, a ação de impugnação de mandato eletivo (AIME) ou o recurso contra a diplomação (RecDiplo), consoante determina o espúrio art.22, inciso XV da mesma LC 64/90.
Conforme temos chamado a atenção, por vezes até de forma um tanto ríspida[12], a ação de investigação judicial eleitoral, por vez muita, termina por perder sua efetividade, uma vez que o trânsito em julgado da sentença de procedência prolatada se dá após a diplomação, quando já não mais haveria prazo para ajuizar aqueles remédios previstos (AIME e RecDiplo), na forma da jurisprudência dominante, ou, ainda pior, termina por ser julgada em prazo posterior a três anos das eleições, quando acaba também por perder o seu objeto, em razão de não mais haver como se aplicar a sanção de inelegibilidade.
Ora, essas observações acima feitas nos levam obrigatoriamente a repensar a problemática da necessariedade do litisconsórcio passivo em sede de AIJE, em caso de eleições majoritárias. De fato, devemos rever nossa afirmação segundo a qual "a relação jurídica processual angular deve ter a presença, no pólo passivo, do titular e do Vice, sob pena de nulidade insanável". Não há dúvidas, conforme antes sustentamos que "o abuso de poder econômico ou político, o uso indevido dos veículos ou meios de comunicação social, que ensejam a aplicação da sanção de inelegibilidade, trazem um proveito ao candidato principal e ao seu Vice, indistintamente, já que o voto é juridicamente dado à chapa una e indivisível, e não a um dos candidatos independentemente". Afinal, "aqui, a relação jurídica entre ambos, membros da chapa, é inconsútil, sendo impossível apartar o proveito ilícito obtido, como se houvesse possibilidade de o benefício impróprio não ser útil aos dois a um só tempo"[13]. Agora, concluir que porque "a AIJE terá por finalidade alcançar a inelegibilidade de quem se houve beneficiado com o ato ilícito praticado" é "obrigatória a presença do candidato a Vice na relação processual", vai alguma distância.
Ora, como já é consabido, a inelegibilidade é uma sanção de natureza pessoal. Se um membro da chapa tem a sua inelegibilidade decretada, ela não trespassa para a esfera jurídica do outro membro, contagiando-o. Aqui reside ponto que não foi devidamente analisado em meus estudos anteriores: como explicar que na prática jurisprudencial eleitoral seja tão comum a existência de ações judiciais eleitorais em que o candidato a vice não seja chamado ao processo, tendo a sentença de procedência aplicando sem rebuços a sanção de inelegibilidade cominada apenas ao candidato ao mandato principal, sem que o seu respectivo vice sofra qualquer sanção, ainda que também beneficiado pelo abuso de poder econômico, v.g.?
Imagine, como hipótese de trabalho de nossas meditações, uma AIJE proposta contra o candidato a prefeito municipal, por abuso de poder político, sem que tenha o vice sido citado também na qualidade de co-réu. Após seis meses da diplomação, em uma tramitação muito ágil, houve o trânsito em julgado da sentença, reconhecendo o abuso de poder político suscitado e cominando a inelegibilidade por três anos ao candidato a prefeito que, nesse exemplo, havia sido eleito. Inelegível, mesmo assim continuou no exercício do seu mandato, em razão da norma prevista no art.22, XIV da LC 64/90. Nas eleições gerais seguintes, dois anos após as eleições municipais em que a inelegibilidade foi cominada, estava o prefeito eleito ainda inelegível, não podendo, por isso mesmo, renunciar para sair candidato a deputado estadual. Como o seu vice era pessoa de sua confiança, decidiu então apoiá-lo a sair candidato a deputado estadual em seu lugar, já que não tinha sido ele atingido pelos efeitos da sentença, vez que não fora parte no processo e não poderia sofrer a sanção de inelegibilidade por ter sido beneficiário do mesmo abuso político que elegeu a chapa majoritária.
Sem que o candidato a vice-prefeito, nesse exemplo, houvesse sido citado para participar do pólo passivo da relação processual da AIJE, poderíamos afirmar ter havido alguma nulidade insanável no processo? A inelegibilidade decretada contra o titular, sendo sanção pessoal, deixou de ser aplicada pela ausência do vice? Houve, enfim, alguma nulidade processual pela ausência do vice?
A resposta, única possível após uma meditação mais acurada, é negativa. Não há como se falar em nulidade pela ausência do candidato a vice-prefeito no pólo passivo da AIJE. Agora, o porquê dessa resposta, é necessário ir buscar fundamentos na teoria do processo civil. É o que passaremos a fazer agora.
Em razão da unicidade e indivisibilidade da chapa, tenho bastas vezes insistido ser a relação de direito material entre o candidato titular e o vice, enquanto membros da chapa, inconsútil. Essa incidibilidade da relação entre os membros da chapa, tão exalçada por nós, nos induziu a imaginar fosse, em todos os casos, obrigatória a formação de litisconsórcio necessário passivo todas as vezes em que se vergastasse a prática de abuso de poder econômico ou político. Essa visão se revela parcial, e não dá conta de explicar juridicamente o exemplo acima citado. Observemos o seguinte: se o Ministério Público ingressasse com uma ação de nulidade do casamento, haveria de chamar necessariamente o casal, porque o casamento não pode ser desconstituído para o cônjuge varão e permanecer válido para o cônjuge virago. Tal solução seria absurda e juridicamente impossível.
Ora, como mostramos anteriormente, o mesmo não ocorre em relação à chapa majoritária. Há circunstâncias em que se pode articular remédio processual diretamente contra a chapa (a AIRC, e.g.), em razão da inelegibilidade de um dos seus membros. Há, nesses casos, necessariedade da formação de litisconsórcio, embora se tenha de obtemperar que a inelegibilidade decretada contra um dos membros da chapa não a desnatura imediatamente, podendo haver, sem solução de continuidade, a substituição de candidatura.
Porém, quando a ação proposta não traz prejuízo à chapa em si mesma considerada (como no caso da AIJE), é inegável que, embora seja inconsútil essa relação jurídica, apenas haverá identidade de destinos se a ação vier a ser proposta contra ambos. Nesse caso, admitida a existência (ou não) de abuso de poder econômico ou político, ambos terão indefectivelmente destino comum, recebendo a mesma sorte processual, ou para serem absolvidos ou para serem sancionados.
Observando atentamente as características do litisconsórcio, a doutrina processual brasileira trouxe luzes a alguns pontos ainda não resolvidos pela doutrina européia. De fato, a doutrina pátria fez separar nitidamente a existência de dois momentos distintos no litisconsórcio necessário: de um lado, a indispensável presença de todos os legitimados no processo; e, doutra banda, a solução necessariamente única da causa para todos os litisconsortes participantes da relação processual[14]. Essa percepção fez separar duas espécies de litisconsórcio necessário: aquele em que a decisão haveria de ser homogênea para os litisconsortes (unitário); e aquele em que a decisão poderia ser diversa para os legitimados obrigatoriamente chamados ao processo (comum ou simples).
Logo se observou, sem embargo, que a unitariedade poderia ocorrer sem que houvesse necessariedade do litisconsórcio. A diferença substantiva, portanto, entre litisconsórcio necessário e litisconsórcio unitário, é que aquele ocorrerá quando, sem a presença de todos os co-legitimados, o provimento não puder produzir os efeitos que lhe são próprios[15]; enquanto esse ocorrerá quando houver relações substanciais plurissubjetivas que não comportem fragmentação de apreciação[16]. Tais relações plurissubjetivas podem necessariamente exigir o litisconsórcio, provocando uma decisão homogênea (litisconsórcio necessário unitário), ou possibilitar, por vontade dos interessados que haja a litisconsorciação; mas, em havendo, a decisão terá de ser homogênea para os co-legitimados (litisconsórcio facultativo unitário).
Sobre essa última espécie de litisconsórcio, nos ensina Ovídio Baptista da Silva[17]: "Em muitos casos, a relação jurídica é igualmente unitária, no sentido de constituir-se em verdadeira comunhão de direitos e obrigações, mas a lei admite que seus componentes possam estar em juízo como demandantes ou demandados, separadamente, não tornando obrigatória a formação do litisconsórcio. Tem-se, então, casos de litisconsórcio facultativo. Entretanto, dada a natureza unitária da relação litigiosa, quando a demanda for proposta por dois ou mais autores contra dois ou mais réus, a sentença há de ser necessariamente uniforme para todos os litisconsortes". E, mais adiante, arremata o jurista gaúcho: "O que particularmente distingue essa espécie de litisconsórcio é o fato de se tratar de demanda com pluralidade de legitimados que, todavia, não estão obrigados a se unirem em litisconsórcio necessário. Se o fizerem, porém, a causa haverá de ter tratamento uniforme para todos os litisconsortes"[18] (grifei).
Essa a razão pela qual, no mais da vez, vemos decisões judiciais rejeitando a litisconsorciação necessária entre os membros da chapa majoritária em sede de AIJE, de recurso contra a diplomação e até em sede de AIME:
"Recurso especial. Tempestividade. Ação de impugnação de mandato eletivo. Prefeito. Citação. Litisconsórcio necessário. Inexistência.
Ante a comprovação de ocorrência de feriado, é de se reconhecer a tempestividade do recurso. A ação de impugnação de mandato eletivo contra o prefeito visa atacar uma relação jurídica particular. Assim, verifica-se ser perfeitamente possível o tratamento da situação litigiosa sem a presença do vice, compondo a relação processual nos autos (...). (Recurso Especial Eleitoral n° 15.597/ES, rel. Min. Edson Vidigal, em 20.6.2000. In: Informativo TSE, ano II, n° 21, de 19 a 25 de junho de 2000)[19].
"Recurso contra expedição de diploma. Questão de ordem. Litisconsórcio. Coligação.
(...) Em relação as eleições majoritárias, a eventual cassação do diploma atingirá apenas o interessado e, eventualmente, o que com ele haja sido eleito na qualidade de vice" (Recurso contra Expedição de Diploma n° 584/MT, rel. Min. Eduardo Ribeiro, em 8.6.99 In: Informativo do TSE - Ano I n° 5, Brasília, 7 a 13 de junho de 1999, com grifos meus).
Seja como for, no que se refere especificamente à ação de investigação judicial eleitoral (AIJE), pensamos realmente não ser necessária a formação de litisconsórcio entre os membros da chapa, quando houver acusação da prática de abuso de poder. Entrementes, sendo o vice chamado a integrar o processo como litisconsorte do titular, não poderá recusar-se, passando a fazer parte da relação processual, tendo homogeneidade de destino com o outro membro da chapa (unitariedade).
Agora, fique desde já registrado, o vice apenas será alcançado pelos efeitos próprios (inexos) da sentença de procedência da AIJE se for chamado a integrar a lide. Do contrário, não poderá ser a ele aplicada a inelegibilidade que for irrogada ao outro membro da chapa.
(2) Diligências processuais e inércia judicial.
A ação de investigação judicial eleitoral (AIJE) tem prazos certos para serem cumpridos, em razão da concentração própria à sumarização procedimental adotada pelo legislador complementar de 90. A demora no atendimento das diligências solicitadas pelas partes pode ensejar, contra o presidente da instrução processual ou o serventuário que lhe der causa, algum procedimento administrativo instaurado mediante representação dos interessados perante a Corregedoria-Regional Eleitoral. Porém, a marcha lenta do rito processual não dá ensanchas à extinção do processo sem julgamento de mérito, ainda mais quando as eleições ocorreram, como no caso em tela, no ano 2000, sendo a inelegibilidade que viesse a ser aplicada eficaz até o ano de 2003. Desse modo, não havendo preclusão para a práticas de ato processual, não há como a parte ser prejudicada pela inércia atribuída a outrem.
(3) Convicção judicial e contraditório
O art.23 da LC 64/90 é um dos mais largos preceitos legais ao conceder poderes instrutórios ao juiz eleitoral. Dele tratei em momento oportuno[20], chamando a atenção para o fato de que, por mais largo que sejam as possibilidades de o juiz eleitoral formar a sua convicção, mesmo através de fatos não alegados pelas partes, é necessário guardar na retentiva o princípio constitucional da ampla defesa e do contraditório, entronizado no art.5°, inciso LV da CF/88.
Diante do quesito proposto, se as provas foram produzidas com antecedência pelas partes e através de determinações de ofício do juiz eleitoral, tendo elas podido se manifestar sobre os documentos juntados aos autos, não há falar em cerceamento do direito de defesa, ainda mais se a análise posterior dos técnicos do Tribunal de Contas do Estado apenas auxiliaram na formação da convicção judicial, fazendo a análise dos documentos aos quais as partes tiveram livre acesso em momento oportuno.
Ademais, para que se pudesse advogar a tese do cerceamento do direito de defesa, seria necessário demonstrar o prejuízo concreto, objetivo, que o auxílio dado pelos técnicos do Tribunal de Contas distorceu fatos ou documentos, induzindo a cinca o juiz eleitoral. Se o vício material do procedimento não for demonstrado, ficando apenas o debate circunscrito a aspectos formais, faltará interesse legítimo em fustigar a decisão atacada.