Nº 391/2006 - BPS
RECURSO ESPECIAL Nº 757660-GO (2005/0092835-0)
RECORRENTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS
RECORRIDO: LFBM
RELATOR: MINISTRO GILSON DIPP – QUINTA TURMA
PRELIMINAR. RECURSO ESPECIAL INTERPOSTO POR MEMBRO DO MINISTÉRIO PÚBLICO INDEPENDENTE DE DELEGAÇÃO DE COMPETÊNCIA DO PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS PREVISTA NA LEI ORGÂNICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL (LEI COMPLEMENTAR N° 25/1998). INCONSTITUCIONALIDADE DA REFERIDA LEI NA PARTE EM QUE DISPÕE SER PRIVATIVA DO PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA A COMPETÊNCIA PARA INTERPOR RECURSO PERANTE OS TRIBUNAIS SUPERIORES. CONTROLE DIFUSO. POSSIBILIDADE.
a) Inconstitucionalidade da Lei Orgânica do Ministério Público Estadual que dispõe ser privativa do Procurador-Geral de Justiça a competência para interpor recurso. Invalidade da exigência de delegação de competência do Procurador-Geral de Justiça para o membro do Ministério Público Estadual recorrer. Norma estadual ofensiva aos princípios constitucionais do promotor natural, da independência funcional e da inamovibilidade dos Membros do Ministério Público. Impossibilidade jurídica da exigência de observância de vínculo de subordinação hierárquica no âmbito do Ministério Público, no atinente ao exercício de suas atribuições institucionais. Independência dos Órgãos do Ministério Público para o exercício das funções institucionais, inclusive no tocante à legitimidade para interpor os recursos previstos na Constituição Federal e nas leis processuais federais, nos feitos em que oficia.
b) Incompetência do legislador estadual na parte em que suprime a legitimidade de órgão do Ministério Público, para recorrer, porque a Constituição Federal atribui competência privativa à União Federal para legislar sobre direito processual (civil e penal) e para dispor sobre a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, bem como para regular as garantias e prerrogativas de seus Membros (CF, art. 61, § 1°, II, "d"). Tal a relevância atribuída pela Constituição Federal a esta matéria que proibiu fosse disciplinada por medida provisória e vedou até mesmo que fosse objeto de delegação legislativa a "organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e as garantias de seus membros" (CF, arts. 62, § 1°, "I", "c", e 68, § 1°, I).
c) A independência funcional dos membros da Instituição (CF, art. 127, § 1°) é de tal magnitude que a Constituição Federal dispõe que "são crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra o livre exercício das atribuições do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das Unidades da Federação" (CF, art. 85, II).
d) No exercício das atribuições previstas no art. 61, § 1°, II, "d", da Constituição Federal, foi baixada a Lei n° 8.625, de 12 de fevereiro de 1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público), dispondo que compete ao Procurador-Geral de Justiça, "designar membro do Ministério Público" para "exercer as funções afetas a outro membro da Instituição, apenas "por ato excepcional e fundamentado", devendo submeter esta decisão "previamente ao Conselho Superior do Ministério Público" (art. 10, IX, "g"). Isto implica dizer que há independência absoluta entre os membros da Instituição, na divisão do exercício de suas atribuições, e que inexiste hierarquia, entre o Procurador-Geral e os membros do Ministério Público, como poder de mando do superior relativamente ao inferior hierárquico, somente podendo ser designado, em caráter excepcional, um para substituir ou exercer as atribuições afetas a outro, mediante autorização prévia do Conselho Superior do Ministério Público.
e) Ainda por força da Lei n° 8.625, de 1993, art. 81, os Estados deveriam adaptar "a organização de seu Ministério Público aos preceitos desta lei, no prazo de 120 (cento e vinte) dias a contar de sua publicação". No caso do Estado de Goiás, percebe-se que não só não adaptou sua legislação aos preceitos da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, como fez questão de afrontá-la, dispondo em sentido contrário, ao proibir os membros de recorrer, sem autorização do Procurador-Geral.
f) No caso concreto, a preliminar argüida nas contra-razões é igualmente incabível porque houve ato expresso de delegação de competência à Procuradora de Justiça que interpôs o presente recurso especial, por isso que estava devidamente autorizada para a interposição de tal espécie de recurso genericamente, o que, evidentemente, nas circunstâncias, é algo irrelevante.
g) Declaração incidenter tantum, mediante o controle difuso, por parte do Superior Tribunal de Justiça, nos termos dos arts. 480 e seguintes do Código de Processo Civil, art. 97 da Constituição Federal e arts. 199 e 200 do Regimento Interno desta Corte Superior, da inconstitucionalidade da Lei Complementar estadual n° 25, de 6 de julho de 1998, na parte em que dispõe ser privativa do Procurador-Geral de Justiça a competência para interpor recursos perante os Tribunais Superiores.
MÉRITO. CRIME DE TORTURA PRATICADO POR DELEGADO DE POLÍCIA CIVIL, NO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO. VALIDADE DA DENÚNCIA OFERECIDA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO, INDEPENDENTE DE INQUÉRITO POLICIAL, COM BASE EM PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DE INVESTIGAÇÃO CRIMINAL.
a) Máxime em caso de crime de tortura praticado por Delegado de Polícia Civil, evidentemente por causa das dificuldades da apuração, por motivos óbvios, não há falar em nulidade por haver a denúncia sido oferecida com base em procedimento administrativo de investigação criminal instaurado pelo próprio Ministério Público, independente de inquérito policial. Nem "a participação de membro do Ministério Público na fase investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o oferecimento da denúncia". (STJ, Súmula nº 234).
b) Caso em que o inquérito policial se afigura praticamente inviável, o que fortalece, ainda mais, a legitimidade dos atos do Ministério Público atinentes à investigação da autoria do crime, em vez de aguardar pelo desfecho de um inquérito policial que, de regra, nem se inicia, tudo conspirando para inviabilizar o exercício das atribuições constitucionais de "promover, privativamente, a ação penal pública" (CF, art. 129, I).
A dispensa do inquérito policial pelo Ministério Público é tão natural e necessária, como prova o próprio caso concreto, a respeito do qual, certamente por se tratar de crime de tortura cometido por Delegado de Polícia Civil, parece que nem se iniciou o inquérito policial. Nos autos nem há notícia sequer da sua instauração.
É princípio tradicional em Direito que, quando a Constituição e as leis atribuem a competência para o exercício de certa função a determinado órgão fica implícita a autorização do uso dos meios necessários para tanto. E como não há norma jurídica que disponha ser imprescindível o inquérito policial para que o Ministério Público possa "promover, privativamente, a ação penal pública" (CF, art. 129, I), inválido é o acórdão que decretou a nulidade da denúncia criminal e o trancamento da ação penal.
Pacífica a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça admitindo a investigação criminal pelo próprio Ministério Público, independente da iniciativa da polícia judiciária. Precedente isolado de uma Turma do Supremo Tribunal Federal que não pode ser considerado orientação jurisprudencial predominante na Suprema Corte e no STJ.
Parecer pelo conhecimento e provimento do recurso especial interposto por Procuradora de Justiça, ainda que tivesse sido interposto independente da autorização do Procurador-Geral de Justiça exigida por lei estadual, para o fim de reformar o acórdão recorrido e, assim, determinar o prosseguimento da ação penal.
Trata-se de recurso especial interposto pelo Ministério Público do Estado de Goiás, com fundamento no art. 105, inciso III, alíneas "a" e "c", da Constituição Federal, contra v. acórdão do Tribunal de Justiça Estadual, que deferiu ordem de habeas corpus (fls. 106/113), para o trancamento de ação penal, acolhido o entendimento de que não poderia ter sido oferecida denúncia independente de inquérito policial, com base apenas em procedimento administrativo investigatório criminal conduzido pelo próprio Ministério Público, tendo uma das Promotoras de Justiça que conduziu as investigações assinado a denúncia.
Consta dos autos que em benefício de Delegado de Polícia Civil foi impetrada ordem de habeas corpus com pedido de trancamento da ação penal em que ele foi denunciado sob acusação da prática de crime de tortura no exercício das funções, estando sua conduta tipificada no art. 1º, I, "a", e § § 1º e 4º, I, da Lei nº 9.455/1997.
A denúncia, às fls. 23/25, datada de 12 de agosto de 2003, narra que o recorrido, constrangeu a vítima, mediante grave ameaça, causando-lhe sofrimento mental, com o fim de obter confissão da prática de crime que a vítima não cometeu.
Conforme a denúncia, no dia 4 de maio de 2003, foi preso em flagrante a vítima, então acusado de haver cometido atentado violento ao pudor – seguido de morte – contra o próprio filho de 4 meses de idade.
Na mesma data, 4 de maio de 2003, ao ser interrogado, no momento da lavratura do auto de prisão em flagrante, a vítima negou, por completo, a acusação que lhe era feita, de haver violentado sexualmente e matado o próprio filho de apenas 4 meses de idade.
Entretanto, no dia seguinte, 5 de maio de 2003, segundo a denúncia, o pai da criança, "após ter sido agredido com chutes e ameaçado de morte por policiais não identificados", "foi novamente encaminhada à sala do Delegado LFBM", oportunidade em que este, "valendo-se de sua autoridade, com o fim deliberado de obter a confissão", "passou a constrangê-lo, mediante grave ameaça, argumentando, inclusive, que se ‘não contasse a verdade, iria colocá-lo fora da cela do seguro’, ou seja,junto com outros criminosos, onde receberia o tratamento peculiar que é dado pelos detentos a autores de crimes sexuais, tal seja agressões físicas e violências sexuais" (fl. 24).
Consta que "em virtude da tortura psicológica sofrida e com medo de ser agredido e violentado pelos demais detentos, caso fosse colocado fora da cela do seguro, a vítima (...) acabou confessando a prática de delitos de atentado violento ao pudor e homicídio, que não cometera, apresentando as declarações de fls. 32/34" (refere-se aos autos do processo criminal instaurado contra o paciente, ora recorrido - fl. 24).
Posteriormente, prossegue a denúncia, "após a chegada do Laudo de Exame Cadavérico de fls. 47/51, onde constatou-se que o bebê não havia sofrido qualquer violência sexual, mas falecido por asfixia mecânica, a vítima (...) foi novamente interrogada, retratando-se da confissão anteriormente prestada sob tortura" (fl. 24).
Consta ainda, segundo a denúncia, "que em virtude da confissão obtida sob tortura, o denunciado sofreu inúmeros constrangimentos pelos demais detentos, tendo sido obrigado a vestir-se de mulher, além de ter sofrido agressões físicas" (fls. 25).
O Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, entretanto, decretou o trancamento da ação penal, acolhida a tese, sustentada pelo impetrante, da nulidade do feito, porque a denúncia teria sido apoiada apenas em procedimento administrativo investigatório criminal conduzido pelo próprio Ministério Público, através de uma das signatárias da denúncia, independente do inquérito policial que – no entendimento daquele Tribunal – deveria ter sido previamente instaurado, sob pena de nulidade da denúncia, nulidade que efetivamente foi decretada, conforme resumido na ementa do v. acórdão, nestes termos (fl. 112):
"Habeas Corpus. Denúncia. Procedimento administrativo presidido pelo Ministério Público, autor da denúncia. Nulidade. Trancamento da Ação Penal. A ação que se inicia com denúncia oferecida a partir de elementos de convicção e documentação coligida em procedimento administrativo presidido pelo próprio representante do Ministério Público, que firmou a peça acusatória, viola norma constitucional, razão pela qual determina-se seu trancamento.
Ordem concedida."
No voto condutor do acórdão foi defendida a tese no sentido de que a Constituição Federal, no inciso VII do art. 129, "ao cuidar da matéria penal, fala do poder de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial. Não há menção à possibilidade de instauração e promoção de procedimento investigatório" (fl. 108).
Todavia, segundo o voto do Relator, a própria Constituição Federal, no art. 144, § 4º, "estabelece que às polícias civis, dirigidas por delegados de carreira, incumbem as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais" (fl. 109).
Para o Relator, o exercício do poder investigatório pelo Ministério Público "importa não só na violação da norma constitucional, mas também no descumprimento da regra imperativa do devido processo legal" (fl. 109).
Assim, sustenta o voto do Relator, "a promoção e presidência de inquérito policial, procedimento investigatório destinado a apurar fatos com indícios de crime é prerrogativa da autoridade policial, sendo defeso ao órgão ministerial o exercício de tal atribuição" (fl. 109).
O Ministério Público, segundo o voto do Relator, "a Constituição Federal dotou-o do poder de apenas requisitar as diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, não contemplando a possibilidade do Parquet realizar e presidir o inquérito policial" (fl. 109).
O voto do Relator busca amparo em precedente do Supremo Tribunal Federal (HC 81.326-RJ, Relator: o Min. NELSON JOBIM), em que foi adotada a tese de que a Constituição Federal "não contemplou a possibilidade do parquet de realizar e presidir inquérito policial" (fls. 109/110).
Assim, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, por maioria, decretou a nulidade do despacho de recebimento da denúncia, contra o entendimento do órgão do Ministério Público com assento perante aquela Câmara (fl. 111), vencido o Desembargador HUYGENS BANDEIRA DE MELO, conforme fundamentos a seguir transcritos:
"Entendo que o procedimento administrativo instaurado pelo Ministério Público não pode ensejar o trancamento da ação penal proposta contra o ora paciente, pelo crime de tortura, que teria praticado no exercício do cargo de Delegado de Polícia contra Clóvis Pereira Araújo.
Ora, o inquérito não é peça imprescindível ao oferecimento da denúncia. Ademais, a simples informação de crime tão grave colhida no interrogatório seria suficiente à propositura da ação.
Não é possível impedir-se o Ministério Público, a quem compete a iniciativa das ações públicas, de realizar diligências, seja diretamente, seja através da polícia, ainda que para apuração de fatos a ela própria atribuídos.
Eis porque divergi da douta maioria." (fls. 118/119).
Contra o v. acórdão foram opostos embargos declaratórios pelo Ministério Público Estadual, para preqüestionar a ofensa aos arts. 39, § 5º, 40, 41 e 43 do Código de Processo Penal.
Por v. acórdão às fls. 130/137, foram rejeitados os embargos declaratórios, sob color de não haver omissão, dúvida ou contradição a suprir.
Ato contínuo, foi interposto o presente recurso especial, pelo Ministério Público Estadual, sustentando que o v. acórdão contrariou ou negou vigência:
- ao art. 619 do Código de Processo Penal, ao rejeitar os embargos de declaração, em hipótese em que não os poderia haver rejeitado;
- aos arts. 39, § 5º, 40 e 41 do Código de Processo Penal, por haver exigido, para o recebimento da denúncia, requisito que estes dispositivos dispensam, no caso, a prévia instauração de inquérito policial a cargo da própria polícia civil;
- ao art. 43 do Código de Processo Penal, por ter sido rejeitada a denúncia fora das hipóteses autorizadas em lei.
O recurso do Ministério Público Estadual ainda sustenta a ocorrência de dissídio jurisprudencial, uma vez que o Superior Tribunal de Justiça, de forma iterativa, tem dado interpretação divergente, em hipóteses idênticas, como ocorreu, por exemplo, no julgamento dos RHC n° 8.025, n° 8.106 e n° 10.725/PB e dos HC n° 2006-5 e n° 11.141, entre outros.
Nas contra-razões (fls. 172/176), foi argüida, preliminarmente, a ilegitimidade ativa da Procuradora de Justiça – que assinou a peça recursal – para interpor recurso especial, por falta de delegação de competência ou autorização específica do Procurador-Geral de Justiça, conforme previsto na Lei Complementar do Estado de Goiás que disciplina o exercício das atribuições do Ministério Público Estadual.
Às fls. 182, o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás negou seguimento ao presente recurso especial; mas os autos ascenderam ao Superior Tribunal de Justiça por força do provimento ao agravo de instrumento interposto pelo Ministério Público Estadual.
Ao final, foi aberta vista dos autos ao Ministério Público Federal para exame e parecer.
É o relatório.
Com base no quanto foi exposto, passa-se a opinar.
Preliminarmente
, quanto à tese levantada pelo recorrido em sede de contra-razões, acerca da alegada ilegitimidade ativa do titular do cargo de Procurador de Justiça para a interposição de recurso especial, por falta de delegação de competência a ser outorgada pelo Procurador-Geral de Justiça, temos que nem sequer pode ultrapassar a barreira do conhecimento, eis que se trata de matéria não cogitada durante o julgamento ora recorrido.Por incrível que pareça, no Estado de Goiás, o Procurador de Justiça, conforme a Lei Orgânica do Ministério Público daquele Estado (Lei Complementar n° 25, de 06 de julho de 1998), não tem legitimidade ativa para a interposição de recurso especial ou extraordinário, se não estiver prévia e expressamente autorizado pelo Procurador-Geral de Justiça.
Esta preliminar foi argüida, aliás, de forma inédita – não encontramos nenhuma referência a qualquer precedente, consoante informações verbais colhidas junto aos próprios Colegas do Ministério Público Estadual, naquele Estado – não se sabe se por mero acaso, nas contra-razões ao recurso especial, oferecidas por um conhecido Advogado que já foi Procurador-Geral de Justiça do Estado de Goiás, Doutor HENRIQUE BARBACENA NETO, aposentado.
Conforme se percebe facilmente dos autos, o réu, ora paciente, praticava a tortura para o fim de extorquir confissão de crimes bárbaros inexistentes, como ocorreu no caso, para a seguir repassar os fatos "fantásticos" para a mídia, denegrindo, a mais não poder, a imagem do cidadão que, sob tortura, terminou assumindo a prática de atentado violento ao pudor, além do homicídio, contra o próprio filho de apenas quatro meses de idade.
Tais fatos, provam as manchetes do "O Popular" (fl. 48) e do "Correio Braziliense" (fls. 50 e 58/59). E também à época os canais de televisão e as emissoras de rádio foram abastecidas pelo famoso Delegado, acusado de tortura, com a notícia e excepcionalidade do caso.
Volvendo às contra-razões, sustenta o recorrido que seria imprescindível a delegação de competência pelo Procurador-Geral de Justiça, para que, no caso, a Procuradora de Justiça que subscreveu o recurso especial pudesse recorrer, aliás, conforme transcrito, a seguir, da própria Lei Complementar Estadual n° 25, de 06 de julho de 1998, consoante exemplar do Diário Oficial do Estado de Goiás, n° 17.967, de 07 de julho de 1998, juntado às fls. 115/156:
"Art. 52. Além das atribuições previstas na Constituição Federal, na Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, na Constituição Estadual e em outras leis, compete ao Procurador-Geral de Justiça:
..................................................................................................................................................
IX - interpor recursos aos Tribunais Superiores e neles oficiar;
..................................................................................................................................................
Art. 55. Compete aos Procuradores de Justiça o exercício das atribuições do Ministério Público junto ao Tribunal de Justiça, desde que não cometidas ao Procurador-Geral de Justiça.
Parágrafo único. O Procurador-Geral de Justiça poderá designar outro Procurador de Justiça para funcionar em feito determinado de atribuição do titular, com a concordância deste.
Art. 56. Além das atribuições previstas nas Constituições Federal e Estadual, na Lei Orgânica Nacional do Ministério Público e em outras leis, compete aos Procuradores de Justiça:
..................................................................................................................................................
IV - sugerir ao Procurador Geral de Justiça, fundamentadamente, quando for o caso, a interposição de recursos aos Tribunais locais ou Superiores, ou adoção de outras medidas cabíveis; (...)."
Tais normas, ao que tudo indica, são flagrantemente inconstitucionais, por ofensa ao princípio institucional da independência funcional (como sabemos, de sede constitucional: art. 127, § 1º). por isso que, sendo certo que cabe ao Procurador de Justiça oficiar nos processos que lhe forem distribuídos, junto ao Tribunal de Justiça, não poderia ter sua atuação tolhida, para fins recursais, pela exigência legal da concordância do Procurador-Geral de Justiça.
Temos a impressão que essa lei estadual ostenta claro resquício do regime constitucional do Ministério Público anterior à Constituição Federal de 1988, quando havia até quem sustentasse, e isto até mesmo no Supremo Tribunal Federal de antanho, existir uma tal de ascendência hierárquico-institucional dos Chefes do Ministério Público em relação aos membros da Instituição, tese hoje totalmente superada.
Referidas normas exsurgem absolutamente contrárias igualmente aos princípios da razoabilidade e da eficiência, também de matriz constitucional, pois, afinal de contas, não se consegue perceber com clareza qual a razão para apenas o Procurador-Geral de Justiça ter legitimidade, na forma da lei estadual, para poder interpor recursos extraordinário ou especial, além de um estranho poder de atuar perante os Tribunais Superiores.
Aliás, nem se consegue – por mais que se tente – perceber igualmente nenhum fundamento de boa fé em normas desse jaez.
Restringir ao Procurador-Geral de Justiça a competência para recorrer, ademais, fere de morte o princípio da eficiência, de matriz constitucional (CF, art. 37, caput), como já se disse, porque concentra em apenas um membro do Ministério Público a atribuição, talvez a mais relevante de todas, de se insurgir contra as decisões do Tribunal perante o qual atua, atribuição que bem poderia ser melhor desempenhada, se o fosse pela totalidade dos Procuradores de Justiça, até porque estes poderiam expor outras visões, entendimentos e interpretações do Direito aos Tribunais Superiores, em vez de ficarem submissos às conveniências políticas do Procurador-Geral, autoridade com status de Secretário de Estado, nomeada por critérios preponderantemente de confiança do Governador e da Assembléia Legislativa do Estado.
De qualquer forma, não há outra alternativa que não considerar os dispositivos legais em apreço plenamente contrários à Constituição Federal, inconstitucionais, em síntese, porque, de modo letal, afrontam o princípio da independência funcional dos membros do Ministério Público oficiantes em segundo grau perante o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás.
E o mais absurdo ainda é que, segundo a lei estadual, até mesmo a interposição de recursos aos tribunais locais depende da soberana e incontrastável vontade ou expressa autorização do Procurador-Geral de Justiça (art. 56, IV, da Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de Goiás).
Cabe até mesmo fazer uma comparação com o Ministério Público Federal, onde o Subprocurador-Geral da República com atuação no Superior Tribunal de Justiça tem legitimidade irrestrita para recorrer ao Supremo Tribunal Federal, independente de ao menos saber da opinião doutrinária do Procurador-Geral da República. E os Procuradores Regionais da República, que oficiam perante os Tribunais Regionais Federais, e os Procuradores da República, em primeira instância, sempre podem interpor recursos, independente do assentimento do Procurador-Chefe. Aliás, em alguns Estados, o Procurador-Chefe é até dispensado de atuar nos feitos judiciais, quer para tornar-se mais livre para as atribuições de natureza administrativa, quer para evitar qualquer espécie de tráfico de influência, no exercício de suas atribuições, em decorrência da chefia.
Nesse entender, se tomarmos por referência o parâmetro federal, qual seja, o Procurador-Geral da República, temos que apenas a atuação no Supremo Tribunal Federal é exclusiva dele, como o Chefe da Instituição, remanescendo no Superior Tribunal de Justiça para os Subprocuradores-Gerais da República, por expressa disposição constitucional, a atribuição plena de cada Subprocurador-Geral da República para recorrer, segundo as conveniências de cada qual, evidentemente, respeitados os requisitos legais e constitucionais.
E o Tribunal de Justiça – mutatis mutandis – não guarda equivalência com o Supremo Tribunal Federal, claro.
Por outro lado, transluz por demais estranha, igualmente, a previsão do art. 55, parágrafo único, da Lei Complementar do Estado de Goiás. Desde quando o Procurador de Justiça irá discordar e criar caso com o Chefe? Qual a vantagem disso para a instituição?
Ademais, se há a concordância, porque colocar isto em texto de lei?
Desnecessário, a nosso ver.
O que faz a lei, neste caso, é ofender o princípio da independência funcional e o do promotor natural, além dos princípios da eficiência, da impessoalidade, da legalidade, da moralidade, conforme previsão do art. 37, caput, da Lei das Leis, entre outros, bem mais específicos e de magnitude ainda mais elevada.
No caso da lei complementar estadual em comento, como visto, o que a norma autoriza é que o Procurador-Geral de Justiça substitua o Procurador de Justiça em sua prerrogativa e em sua vontade de recorrer, o que termina suprimindo a própria independência no exercício de suas funções institucionais, prerrogativa sem a qual o Ministério Público não teria qualquer distinção comparativamente a qualquer servidor administrativo de hierarquia necessariamente inferior, isto é, não integrante dos órgãos de natureza política do Estado.
Isto porque se não houver a possibilidade de interpor recurso das decisões contrárias ao entendimento do membro do Ministério Público, comprometido ficará – até mesmo por impossibilidade material de seu exercício – o próprio desempenho das atribuições inscritas no art. 127 da Constituição Federal, que dispõe:
"Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis."
Suprimida que seja a legitimidade do Ministério Público Estadual para recorrer, quebrada estará a espinha dorsal da instituição, por que isto implica necessariamente a supressão da competência outorgada pelo art. 127 da Constituição Federal, pois a "defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis" ficará limitada ao ambiente do próprio Tribunal de Justiça, com o beneplácito do todo poderoso Procurador-Geral, muitas vezes fazendo-se passar por mandatário e representante máximo do Governador e da Assembléia Legislativa do Estado, nem sempre patrocinando os interesse mais legítimos da sociedade, isto para nem sequer cogitar da hipótese de corrupção dessa tão nobre instituição posta pelo Constituinte como última salvaguarda dos interesses sociais e individuais indisponíveis, como se vê da leitura do art. 127 da Lei Maior.
E isto, não resta dúvida, implicará que a posição de cada Procurador de Justiça, órgão do Ministério Público Estadual, em 2º Grau, perante a Corte de Justiça estadual, não passará de mera opinião doutrinária, já que, na realidade, o que sempre haverá de prevalecer será o entendimento adotado pelo Tribunal, bloqueada, pela legislação da unidade da federação, qualquer possibilidade jurídica de revisão das decisões da Justiça local, quando o recorrente for exclusivamente o Ministério Público Estadual.
Enquanto isso, paradoxalmente, ao advogado, que representa os interesses individuais de seus constituintes, estará sempre aberta a via recursal para os Tribunais Superiores da Federação, caso do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, órgãos com atribuições constitucionais de unificação da interpretação do direito federal, exatamente para evitar desarmonia no entendimento da mesma questão de direito entre as Cortes Estaduais.
Se assim é, então, por que a presença do Ministério Público Estadual perante o Tribunal? Teriam alguma utilidade seus pronunciamentos e pareceres perante o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás? Não seria o mesmo que estar presente no Tribunal uma entidade inexistente para fins práticos?
Se for para – como exige a lei local – apenas concordar com o que decide o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, concordar com uma ditadura colegiada, ou, no máximo, representar ao Procurador-Geral de Justiça do Estado, para este, orientado por critérios de conveniência, oportunidade e justiça, casuisticamente, deliberar, discricionariamente, sobre a possibilidade de recorrer, ou não, então melhor seria suprimir a figura, inexistente para fins práticos, do Procurador de Justiça, perante o Tribunal de Justiça, naquele Estado.
Pelo menos não haveria mais uma despesa pública inútil, para a sociedade que o Ministério Público Estadual poderia representar, atuando em seu lugar, para fazer valer perante a Justiça apenas interesses legítimos, como é o consubstanciado na perseguição dos criminosos, principalmente os do "colarinho branco", os intocáveis, os inatingíveis pela Justiça, aqueles que, com certeza, conseguiram inscrever, certamente, de forma clandestina, na lei complementar que dispõe sobre as atribuições do Ministério Público Estadual, as normas proibitivas do exercício do poder-dever de recorrer, normas que ora estamos a censurar, de corpo e alma, e pedindo ao Superior Tribunal de Justiça que não deixe passar esta oportunidade de as exorcizar do direito local, ou que as declare inaplicáveis ao Ministério Público, para fins de conhecimento de recurso especial, sob pena de transformar em algo inútil o que o Constituinte sonhou ser o órgão de representação máxima dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
E, o pior de tudo é que, com a aplicação das normas legais, porém ilegítimas, de que estamos cuidando, o Ministério Público do Estado de Goiás, que não merece isto, poderia ser até rebaixado ao nível da inexistência como instituição permanente e essencial ao exercício da soberania – como já insinuamos – para se tornar um órgão de estatura inferior à de um simples advogado, com a supressão de suas prerrogativas, notadamente em sede de processo penal, pois – a prevalecer tais normas – somente o advogado poderia interpor recurso das decisões do Tribunal contrárias aos interesses dos acusados. Curiosamente, das decisões favoráveis aos acusados nenhum recurso seria cabível, nem mesmo aqueles previstos na Constituição Federal, para o Superior Tribunal de Justiça e para o Supremo Tribunal Federal, quando fosse a hipótese de interposição de recurso pelo Ministério Público Estadual que contrariasse – de forma direta, indireta ou reflexamente – os interesses dos titulares do direito de indicar, aprovar e nomear o Procurador-Geral de Justiça do Estado.
Por vias oblíquas, a lei estadual de organização do Ministério Público terminaria por suprimir da Constituição Federal, na prática, os recursos especial e extraordinário, nas hipóteses em que decisões da Corte Estadual, por esse ou por aquele motivo, fossem contrárias à lei federal ou atribuíssem a esta, interpretação divergente daquela dada por outros Tribunais ou pelo próprio Superior Tribunal de Justiça ou pelo Supremo Tribunal Federal, isto, reitere-se, apenas nas hipóteses em que somente coubesse ao Ministério Público Estadual, a juízo privativo e discricionaríssimo do Procurador-Geral de Justiça, avaliar da conveniência, ou da oportunidade ou da justiça, em cada caso, da interposição de recurso especial e ou extraordinário.
Afinal de contas, quando ao Ministério Público Estadual coubesse o interesse recursal, certamente, a critério do Procurador-Geral de Justiça Estadual, a soberania do Tribunal de Justiça Estadual superaria a soberania do Supremo Tribunal Federal e a do Superior Tribunal de Justiça, já que seus julgados estariam isentos de apreciação destes, ainda que aquele houvesse por bem, em sua elevada sabedoria, queimar, pisotear ou simplesmente rasgar e jogar na lixeira a Constituição Federal e as leis federais, como bem entendessem, e isto sob o manto da proteção de uma lei local.
Como o Procurador-Geral de Justiça do Estado depende da confiança do Governador e da Assembléia Legislativa, tanto para sua ascensão ao prestigioso cargo, como para nele se manter, somente seriam viáveis os recursos especiais ou extraordinários que consultassem os interesses políticos – legítimos ou ilegítimos, não interessa – dos titulares ou amigos dos titulares dos Poderes Executivo e Legislativo do Estado, quer de forma reflexa, direta ou indireta.
Nem é preciso insistir em que a exigência de expressa autorização do Procurador-Geral de Justiça do Estado, para que o membro do Ministério Público Estadual possa interpor recurso, contraria os princípios da independência, da inamovibilidade e do promotor natural, isto porque, em última análise, estaria a autorizar que fossem suprimidas as atribuições outorgadas pela Constituição Federal e pelas leis federais aos membros do Ministério Público, substituindo-as por ato pessoal e discricionaríssimo, como, aliás, expressamente sustentado pela Defesa, nas contra-razões ao recurso especial.
Aliás, tais poderes plenipotenciários do Procurador-Geral de Justiça já foram objeto de preocupação do Superior Tribunal de Justiça, há muito tempo, conforme se percebe até mesmo do enunciado da Súmula n° 99, que, de certa forma, os inibe, nestes termos:
"Súmula n° 99. O Ministério Público tem legitimidade para recorrer no processo em que oficiou como fiscal da lei, ainda que não haja recurso da parte."
Observa-se que as supressões previstas nos arts. 52, IX e XII, e 55, IV, da Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de Goiás (LC nº 25), quanto à legitimação para interpor recurso perante os Tribunais Superiores não estão previstas – e até mesmo se nos afiguram contrárias – à Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei nº 8.625/1993), consoante o disposto nos dispositivos transcritos a seguir:
"Art. 25. Além das funções previstas nas Constituições Federal e Estadual, na Lei Orgânica e em outras leis, incumbe, ainda, ao Ministério Público:
..................................................................................................................................................
IX – interpor recursos ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça; (...)".
Como se percebe facilmente, a competência para interpor recursos ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça, na Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, é atribuída ao "Ministério Público", genericamente, não estando especificado que possa figurar como atribuição exclusiva do Procurador-Geral de Justiça, nos Estados. Bem ao contrário disso.
Além disso, o legislador estadual, a pretexto de disciplinar prerrogativas do Ministério Público Estadual, terminou por legislar sobre matéria de direito processual e de direito processual penal, de competência privativa da União Federal, conforme o disposto no art. 22, inciso I, da Constituição Federal, que dispõe:
"Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho; (...)."
Portanto, onde a lei estadual especificou como atribuição exclusiva do Procurador-Geral de Justiça, a de recorrer aos Tribunais Superiores, afrontou tanto a Constituição Federal, como a lei federal que organiza o Ministério Público a nível nacional, motivo suficiente até mesmo para a interposição tanto de recurso especial, com fundamento na alínea "b" do art. 104 da Constituição Federal, cabível quando a decisão do Tribunal "julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal", como de recurso extraordinário, por ofensa direta e frontal a normas da Constituição Federal impeditivas da pretensão do legislador estadual de dispor sobre matérias recursais, pertinentes ao direito processual.
Na hipótese ora sob discussão, importa ainda por em relevo que a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público igualmente não contempla – e até mesmo impede – a atribuição exclusiva ao Procurador-Geral de Justiça Estadual para a interposição de recursos perante Tribunais Superiores, consoante se percebe da leitura de seu art. 29:
"Art. 29. Além das atribuições previstas nas Constituições Federal e Estadual, na Lei Orgânica e em outras leis, compete ao Procurador-Geral de Justiça:
"I - representar aos Tribunais locais por inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais, em face da Constituição Estadual;
"II - representar para fins de intervenção do Estado no Município, com o objetivo de assegurar a observância de princípios indicados na Constituição Estadual ou prover a execução de lei, de ordem ou de decisão judicial;
"III - representar o Ministério Público nas sessões plenárias dos Tribunais;
"IV - (...);
"V - ajuizar ação penal de competência originária dos Tribunais, nela oficiando;
"VI - oficiar nos processos de competência originária dos Tribunais, nos limites estabelecidos na Lei Orgânica;
"VII - determinar o arquivamento de representação, notícia de crime, peças de informação, conclusão de comissões parlamentares de inquérito ou inquérito policial, nas hipóteses de suas atribuições legais;
"VIII - exercer as atribuições do art. 129, II e III, da Constituição Federal, quando a autoridade reclamada for o Governador do Estado, o Presidente da Assembléia Legislativa ou os Presidentes de Tribunais, bem como quando contra estes, por ato praticado em razão de suas funções, deva ser ajuizada a competente ação;
"IX - delegar a membro do Ministério Público suas funções de órgão de execução."
E o art. 31 da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público igualmente não contempla, por isso que até veda, as limitações à competência dos Procuradores de Justiça encontradas na lei estadual:
"Art. 31. Cabe aos Procuradores de Justiça exercer as atribuições junto aos Tribunais, desde que não cometidas ao Procurador-Geral de Justiça, e inclusive por delegação deste."
Como a atribuição de interpor recurso aos Tribunais Superiores não está entre as "cometidas ao Procurador-Geral de Justiça", na Lei Orgânica Nacional, compete aos Procuradores de Justiça, de forma plena, evidentemente, como representantes do Ministério Público Estadual junto aos Tribunais de Justiça, o exercício independente das atribuições recursais.
Por outras palavras, somente pode ser considerada privativa do Procurador-Geral de Justiça a interposição de recurso, nos casos de sua competência privativa, que são aqueles inscritos no art. 29 da Lei n° 8.625/1993, não sobrando espaço para a inclusão ali das atribuições ordinárias, comuns aos membros da Instituição, como é o caso da atuação do Procurador de Justiça, nas Turmas do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás.
Por outra face, verifica-se que a Lei Complementar do Estado de Goiás, além de contrariar frontalmente a Lei n° 8.625/1993, Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, também está em insofismável desarmonia com a disciplina de todos os demais ramos do Ministério Público da União e até mesmo com a disciplina legal do Ministério Público do Distrito Federal, que possui atribuições em tudo idênticas às do Ministério Público Estadual, em sua atuação perante a Justiça Comum do Distrito Federal.
Como se sabe, o Ministério Público do Distrito Federal integra o Ministério Público da União apenas quanto à investidura de seus membros (Constituição Federal, art. 128, I, "d"), porque estes têm atribuições não perante qualquer órgão Judiciário da União, mas perante a Justiça comum do Distrito Federal e, portanto, possuem as mesmas atribuições que os membros do Ministério Público Estadual, porquanto atuam nas mesmas espécies de feitos.
A única diferença é que os membros do Ministério Público do Distrito Federal são servidores da União, servidores federais pela investidura, embora com atribuições de Ministério Público Estadual, haja vista que compete à União "organizar e manter o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública do Distrito Federal e dos Territórios" (Constituição Federal, art. 21, VIII).
Assim, da mesma forma que os Juízes de Direito e os Desembargadores, que integram a Justiça comum, também o Ministério Público do Distrito Federal não se distingue, quanto às suas atribuições, comparados com o Ministério Público Estadual e a Magistratura Estadual, como despiciendo mencionar.
Além disso, compete privativamente à União Federal "legislar sobre organização judiciária, do Ministério Público e da Defensoria Pública do Distrito Federal e dos Territórios", bem como organização administrativa destes, o que é feito através do Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República (Constituição Federal, arts. 22, XVII, e 48, IX).
No caso, a Lei Complementar n° 25/98, do Estado de Goiás – na parte em que suprime a competência do Procurador de Justiça, para recorrer das decisões judiciais contrárias à lei ou que divergirem de decisão de outros Tribunais ou do próprio Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal – certamente contraria o comando normativo inscrito no art. 61, § 1º, II, "d", que dispõe que "são de iniciativa privativa do Presidente da República" as leis que "disponham" sobre "organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios".
Na espécie, não há dúvida, a lei estadual foi outorgada de forma exorbitante dos limites do poder legislativo estadual, invadindo, dessarte, e até mesmo adentrando os limites próprios definidos pelo Constituinte como pertencentes ao poder de legislar reservado à União Federal, por iniciativa privativa do Presidente da República, iniciativa não outorgada sequer implicitamente aos Governadores dos Estados.
Aliás, tendo sido até incluídos pelo Constituinte como "crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação" (CF, art. 85, II), a exigência de delegação de competência – prevista na legislação estadual – dada pelo Procurador-Geral da Justiça do Estado a qualquer Procurador de Justiça que pretenda recorrer afigura-se-nos mais incompatível ainda com a Constituição Federal, ao possibilitar o exercício de um poder que expressamente até dispõe configurar crime de responsabilidade do Governador.
Isto porque, a prevalecer esta famigerada norma, seria o mesmo que uma verdadeira "carta-branca" outorgada ao Procurador-Geral de Justiça, para até mesmo atender a interesses pessoais ou políticos – até de baixo nível - do Governador do Estado ou de qualquer pessoa com interesses contrariados e que tenha relações com o Poder Executivo ou com o Poder Legislativo locais, ainda que em detrimento do princípio da independência do Procurador de Justiça, proibindo-o de interpor recurso especial ou extraordinário de determinada decisão por motivos de interesse político ou pessoal do Chefe do Estado ou dos Caciques Políticos locais, ao simplesmente não lhe delegar competência recursal por motivos de conveniência.
A admitir a eficácia de normas tais quais as que vedam ao Procurador de Justiça Estadual o exercício da prerrogativa de recorrer das decisões contrárias à lei ou à Constituição Federal ou que divergirem de decisões de outros Tribunais, não teria qualquer sentido, por exemplo, a norma inscrita no art. 128, §§ 3º e 4º, da Lei Maior, que, exatamente para fortalecer o princípio da independência da Instituição, determinou:
"§ 3º Os Ministérios Públicos dos Estados e o do Distrito Federal e Territórios formarão lista tríplice dentre integrantes da carreira, na forma da lei respectiva, para escolha de seu Procurador-Geral, que será nomeado pelo Chefe do Poder Executivo, para mandato de dois anos, permitida uma recondução.
§ 4º Os Procuradores-Gerais nos Estados e no Distrito Federal e Territórios poderão ser destituídos por deliberação da maioria absoluta do Poder Legislativo, na forma da lei complementar respectiva."
A prevalecer a possibilidade de a Justiça poder se transformar, em certos casos, num verdadeiro "jogo de cartas marcadas", máxime no atinente às questões mais relevantes, como são todas as atribuídas ao Ministério Público, pela Constituição Federal, não faria qualquer sentido a inscrição, na Lei Maior, de normas como estas que acabamos de transcrever, que exigem lista tríplice votada pela própria Classe, para a escolha do Governador, além de condicionar a destituição do Procurador-Geral de Justiça a "deliberação da maioria absoluta do Poder Legislativo".
Além de tudo, as normas da Lei Complementar n° 25/98, do Estado de Goiás, impeditivas do poder-dever de interpor recurso para os Tribunais Superiores, foram concebidas em plena desarmonia com as normas de outros ramos do Ministério Público, a partir da Lei Complementar n° 75, de 20 de maio de 1993, que prevê, tal qual a Constituição Federal, que "são princípios institucionais do Ministério Público da União a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional" (art. 4º).
E o princípio institucional da independência é uma constante em todas normas da Lei Complementar n° 75/93, como, por exemplo, ao dispor sobre as atribuições dos Procuradores Regionais dos Direitos do Cidadão, assim como sobre as Câmaras de Coordenação e Revisão:
"Art. 41. Em cada Estado e no Distrito Federal será designado, na forma do art. 49, III, órgão do Ministério Público Federal para exercer as funções do ofício de Procurador Regional dos Direitos do Cidadão.
Parágrafo único. O Procurador Federal dos Direitos do Cidadão expedirá instruções para o exercício das funções dos ofícios de Procurador dos Direitos do Cidadão, respeitado o princípio da independência funcional."
"Art. 62. Compete às Câmaras de Coordenação e Revisão:
I - promover a integração e a coordenação dos órgãos institucionais que atuem em ofícios ligados ao setor de sua competência, observado o princípio da independência funcional; (...)".
"Art. 103. Compete à Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público do Trabalho:
I - promover a integração e a coordenação dos órgãos institucionais do Ministério Público do Trabalho, observado o princípio da independência funcional; (...)".
"Art. 136. Compete à Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Militar:
I - promover a integração e a coordenação dos órgãos institucionais do Ministério Público Militar, observado o princípio da independência funcional; (...)."
Ao dispor sobre as Câmaras de Coordenação e Revisão no Ministério Público do Distrito Federal, que, como já explicitado, tem atribuições em tudo idênticas às do Ministério Público Estadual, mais uma vez a Lei Complementar n° 75/93, agora no art. 169, estabelece que estas "serão compostas por três membros do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios", com as atribuições previstas no art. 171, nestes termos:
"Art. 171. Compete às Câmaras de Coordenação e Revisão:
I - promover a integração e a coordenação dos órgãos institucionais que atuem em ofícios ligados à sua atividade setorial, observado o princípio da independência funcional; (...)."
E não poderia ser diferente, sob pena de incidir no vício de inconstitucionalidade, pois a Lei Maior, no art. 127, § 1º, dispõe que são princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.
Sobre a necessidade de os legisladores estaduais observarem esses princípios institucionais do Ministério Público, notadamente o da independência funcional, assim expõe JOÃO FRANCISCO SAWEN FILHO:
"Ao estabelecer tais condições que deveriam figurar nas futuras leis orgânicas do Ministério Público, o Legislador Maior, ao tempo em que reafirmava a obrigatoriedade das garantias consagradas à Instituição no novo Texto para garantir-lhe a independência, impunha-as em relação aos Ministérios Públicos estaduais, limitando a competência legislativa das unidades federadas em relação ao Parquet.
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Versando sobre o tema, Lúcio Nogueira assevera que por independência se deve entender a desvinculação dos integrantes da Instituição em relação aos demais no exercício de suas funções, ´não tendo superior hierárquico, podendo agir no processo de acordo com seu livre convencimento, discordando dos colegas´.
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A questão, portanto, se resume em saber se, dadas as peculiaridades do Ministério Público Nacional reconhecidas na Constituição da União e, principalmente, em face da independência funcional garantida a seus membros é ou não admitido o princípio da hierarquia na Instituição ou, se admitido, sofre ele alguma restrição ou limite.
Duas correntes doutrinárias podem ser identificadas na análise do problema:
A primeira delas, mais conservadora e identificada com as características do Ministério Público francês, entende como regra o princípio da hierarquia, sustentando deva ser ele exercido de forma ampla, só limitado pelo comando de lei, o que tornaria, inclusive, ilimitado o poder de avocação e designação do chefe do Parquet.
A segunda corrente, autorizada pelo princípio constitucional da independência administrativa consagrado à Instituição e pela autonomia funcional dispensada a seus membros, pelos §§ 1º e 2º do referido art. 127 do Texto Maior, só concebe a hierarquia exercida num sentido administrativo, através da chefia natural do Procurador Geral em face do poder de designação na forma da lei, solução de conflitos de atribuições, disciplina funcional, etc.
De fato, diante das características próprias do Ministério Público brasileiro e dos princípios institucionais de independência administrativa e autonomia funcional consagrados na vigente Carta da União, não se pode impor um procedimento funcional a um integrante do Parquet no exercício de suas funções, a não ser por meio de recomendações sem caráter vinculativo ou normativo (...).
Deve ser tomada em consideração que as garantias funcionais reconhecidas aos membros do Ministério Público, pela Constituição e pela lei, o foram exatamente para que pudesse servir aos interesses da lei e não aos dos governos ou governantes."
Ainda acerca do princípio da independência funcional, PAULO CEZAR PINHEIRO CARNEIRO disserta, em preciosa monografia específica sobre o tema:
"Princípio maior da instituição, que se traduz no direito de o Promotor ou Procurador da Justiça oficiar livre e fundamentadamente de acordo com sua consciência e a lei, não estando adstrito, em qualquer hipótese, à orientação de quem quer que seja. Esta independência funcional é ilimitada, não estando o membro do parquet sujeito sequer às recomendações do Conselho Superior do Ministério Público para o desempenho de suas funções, ainda naqueles casos em que se mostre conveniente a atuação uniforme (...)"
Sobre o mesmo assunto, defendia o Saudoso Professor HELY LOPES MEIRELLES:
"Independência é de caráter absoluto; a autonomia é relativa a outro órgão, agente ou Poder. Ora, no que concerne ao desempenho da função ministerial, pelo órgão (Ministério Público) e seus agentes (Promotores, Procuradores), há independência da atuação e não apenas ´autonomia funcional´ (...)´.
Os membros do Ministério Público só se sujeitam ao controle de órgãos superiores e diretivos da Instituição (Procuradoria-Geral da Justiça, Colégio de Procuradores, Conselho Superior do Ministério Público e Corregedoria-Geral do Ministério Público), na sua conduta administrativa ao longo da carreira, ou nos seus atos pessoais que afrontem a probidade e o decoro que se exigem de todo agente público, principalmente dos que desfrutam de alguma parcela da autoridade estatal.
No mais, os membros do Ministério Público atuam com absoluta liberdade funcional, só submissos à sua consciência e aos seus deveres profissionais, pautados pela Constituição e pelas leis regedoras da Instituição".
Convém ser lembrado o ensinamento do consagrado membro do Ministério Público, o Professor HUGO NIGRO MAZZILLI:
"Além da autonomia funcional, ou seja, da liberdade de exercer o ofício em face de outros órgãos e instituições do Estado, a lei também assegura aos agentes do Ministério Público a independência funcional, que é a liberdade com que estes exercem seu ofício agora em face de outros órgãos da própria instituição do Ministério Público.
Os membros do Ministério Público (Promotores e Procuradores de Justiça) e os órgãos do Ministério Público (tanto os órgãos individuais quanto os órgãos colegiados, como o Conselho Superior ou o Colégio de Procuradores), no exercício da atividade-fim, só estão adstritos ao cumprimento da Constituição e das leis; não estão obrigados a observar portarias, instruções, ordens de serviço ou quaisquer comandos nem mesmo dos órgãos superiores da administração, no que digam respeito ao que devam ou não fazer. Excetuados os casos expressamente previstos em lei, em sua atividade-fim os membros e órgãos do Ministério Público não podem receber ordens como proponha a ação, ou deixe de propor, ou recorra, ou não recorra, ou sustente esta tese e não aquela."
E ainda no intuito de demonstrar a universalidade da aceitação do princípio da independência funcional do Ministério Público, podem ser lembradas diversas lições doutrinárias, como as a seguir transcritas:
"O princípio da independência funcional significa que o membro do Ministério Público no exercício de suas funções atua de modo independente, sem qualquer vínculo de subordinação hierárquica, inclusive com relação à Chefia da Instituição, guiando sua conduta somente pela lei e por sua convicção."
"Entre a unidade e a indivisibilidade se situa, como elemento de equilíbrio, a fungibilidade, que não é princípio institucional do Ministério Público porque mera possibilidade de se substituírem os titulares dos órgãos de execução, preservando-se, em cada substituição, o respeito às opiniões pessoais e às razões de convicção íntima e de livre convencimento de cada um.
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Ressalta-se, contudo, que o próprio poder de direção do Procurador-Geral da Justiça é limitado, em face do que dispõe o artigo 12 da Lei Complementar nº 40, inciso II, combinado com o disposto no inciso III do artigo 19 da Lei Complementar nº 28, que aludem a recomendações sem caráter normativo, nos casos em que se mostrar conveniente a atuação uniforme.
Tais recomendações, se não têm caráter normativo, não são vinculativas, e, evidentemente, não poderiam ser dadas, sem correr o risco de violentar as razões pessoais, os motivos de íntima convicção e o livre convencimento do membro do Parquet.
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Que significa autonomia funcional? Significa exatamente independência e liberdade em relação aos demais poderes e ao próprio poder ao qual está de alguma forma vinculado, subordinando o membro do Ministério Público, no desempenho de suas atribuições legais, tão-somente aos ditames da lei e aos imperativos da sua própria consciência."
"A hierarquia se estratifica entre o Procurador-Geral da Justiça e os membros do Ministério Público. Não pode contudo o Procurador-Geral da Justiça, em nome do poder disciplinar que exerce, violentar o domínio da íntima convicção do Promotor de Justiça, para obrigá-lo a tomar esta ou aquela iniciativa na condução do processo. A formação da opinio delicti é privativa do Promotor de Justiça, e, neste sentido, se exaure a subordinação hirárquica.
Por outro lado, a independência nada mais é que o sinônimo de autonomia funcional. O Ministério Público, em que pese sua vinculação ao Poder Executivo, não é instrumento passivo de seus desejos e aspirações. Age e procede com absoluta independência, sem preocupação de contentar ou desgostar a quem quer que seja, nem mesmo ao Procurador-Geral, a quem não está no dever de seguir ideologicamente.
Tem o membro do Ministério Público, no desempenho de suas atribuições, a mais ampla liberdade de ação, sujeitando-se tão-somente aos ditames da lei e às razões que determinam o seu íntimo convencimento."
"Enquanto a doutrina mais conservadora e presente no ordenamento jurídico de alguns países, inspirada pelas peculiaridades do parquet francês, menciona como regra o princípio hierárquico, em realidade é ao contrário: o Ministério Público tem a autonomia funcional garantida como princípio da Instituição; e como garantia de seus membros, os quais têm independência no exercício de suas funções. Dadas as peculiaridades do Ministério Público brasileiro, a hierarquia só se concebe em um sentido administrativo, pela natural chefia exercida na Instituição por seu Procurador-Geral (poderes de designação na forma da lei, disciplina funcional, solução de conflitos de atribuições etc.) É, pois, impossível falar de hierarquia no sentido funcional no direito brasileiro.
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O princípio da independência funcional significa que os membros do Ministério Público no exercício de suas funções atuam de modo independente, sem nenhum vínculo de subordinação hierárquica, inclusive em relação à chefia da Instituição, guiando sua conduta somente pela lei e suas convicções. Assim, somente no plano administrativo se pode reconhecer subordinação hierárquica dos membros do Ministério Público à Chefia ou órgãos de direção superior da Instituição; jamais no plano funcional, onde seus atos estarão submetidos à apreciação judicial apenas nos casos de abuso de poder que possam lesar direitos."
Para garantir a eficiência da atuação do Ministério Público no cumprimento de suas funções, o constituinte de 1988 concedeu-lhe garantias que fortaleceram a Instituição e, ao mesmo tempo, lhe assinaram um caráter de absoluta independência em relação aos demais órgãos do Estado. Essas garantias, algumas administrativas e outras políticas, foram confirmadas pela Lei Complementar nº 75, de 1993, do Ministério Público da União, e pela Lei nº 8.625, de 1993, que estabelece normas gerais para a organização do Ministério Público nos Estados, de modo que seus membros podem ter efetiva independência funcional no desempenho de suas relevantes funções.
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A primeira das garantias, naturalmente, é a independência funcional, segundo a qual todos, desde o momento em que o membro ingressa no primeiro nível da carreira até o último nível, gozam de independência no exercício de suas funções."
"(..) as garantias a serem dispensadas pelos Estados, em obediência ao princípio constitucional da União, são as mesmas atribuídas ao Ministério Público Federal.
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(...) o sistema criado, para situar, constitucionalmente, o Ministério Público, sofreu uma restrição prejudicial à sua independência, com o § 29 do art. 95, que confere ao Presidente da República a livre nomeação dos chefes do Ministério Público no Distrito Federal e aos Presidentes nos Estados:
´Os chefes do Ministério Público no Distrito Federal e nos Territórios serão de livre nomeação do Presidente da República dentre juristas de notável saber e reputação ilibada, alistados leitores e maiores de 30 anos, com os vencimentos de Desembargador´.
É de esperar, no entanto, que o ´notável saber dos juristas´ distinguidos pela confiança oficial encontrem, nos seus compromissos doutrinários, os estímulos necessários para exercer a orientação e a disciplina do Ministério Público, sem converter a cooperação devida nas atividades governamentais em subordinação, além de tudo, inconstitucional. Identificando-se com o papel do Ministério Público na sociedade e no Estado, esses chefes, de certo, sem prejuízo daquela ação, guardarão eqüidistância entre os poderes políticos.
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Confirma, pois, a lei máxima, na solenidade de seus textos fundamentais, que o Ministério Público, como instrumento militante da defesa social, não patrocina interesses, mas direitos, estejam onde estiverem as vítimas e os criminosos."
"Hoje o assunto apresenta maior delicadeza e suscita dúvidas mais sérias, porquanto o Procurador-Geral passou a ser delegado da imediata confiança do Governo. Para compensar a inovação, a lei básica cercou o Ministério Público de garantias, em relação ao próprio Governo, que, com maioria de razões, não pode, direta ou indiretamente, intervir na convicção do Promotor Público. Nem o Procurador Geral, investido de ascendência hierárquica, tem o direito de violentar, por qualquer forma, a consciência do Promotor Público, impondo os seus pontos de vista e as suas opiniões, além do terreno técnico ou administrativo. Mesmo nesse, as normas, a que deve obediência o Promotor Público, não provêm do arbítrio do Procurador-Geral, mas das leis, dos regulamentos, das instruções, dos precedentes, das fontes impessoais e gerais. Quanto ao elemento intrínseco, subjetivo, dos atos oficiais, na complexidade, na sutileza, na variedade de seus desdobramentos, como a apreciação da prova, para a denúncia, a pronúncia, o pedido de condenação, a apelação, a liberdade provisória ou a prisão preventiva, é na sua consciência livre e esclarecida, elevada a um plano inacessível a quaisquer injunções ou tendências, que o Promotor Público encontra inspiração. (...) Só porque é chefe do Ministério Público, e por isso mesmo empolgado pelas generalidades, o Procurador Geral não dispõe do condão de avantajar-se, de relance, à interpretação especial, imediata, específica do interesse social em causa. Em regra, o Promotor Público melhor conhece os detalhes, a trama íntima, as circunstâncias as condições da causa, os personagens que a movimentam ou usufruem.
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Esmeraldino Bandeira confundiu as ordens e instruções relativas ao exercício das funções, que se restringem à orientação geral dos serviços, à sua presteza, à sua eficiência, com os atos processuais dependentes do prudente arbítrio, da convicção pessoal, do juízo individual e em relação aos quais as atribuições do Promotor Público não resultam de ordens ou instruções de quem quer que seja, mas da lei e da prova, segundo a concepção própria do dever. Os pareceres dos Promotores Públicos são atos de sua exclusiva responsabilidade e, portanto, autônomos. A eles, e não a outrem, o fato e o direito parecem dessa ou daquela forma."
Sendo assim, a restrição da Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de Goiás é nitidamente inconstitucional, por violação ao princípio da Independência Funcional, podendo, inclusive, ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade.
E no que pertine ao princípio do Promotor Natural, frise-se que a questão já foi até objeto de deliberação perante o Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do HC 67.759-RJ, que teve início em 28.06.1990, e foi concluído em 06/08/1992, antes, portanto, da vigência da Lei nº 8.625, de 12.02.1993, que, conforme está escrito em sua epígrafe, instituiu "a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público", além de dispor "sobre normas gerais para a organização do Ministério Público dos Estados e dá outras providências".
Embora tendo sido indeferido, naquele precedente, o habeas corpus, ficou explícito que a Constituição Federal acolheu o princípio do Promotor Natural, quando estipula o princípio da independência funcional de cada membro da Instituição e sua inamovibilidade, que vieram a ter a disciplina legal que ainda carecia o ordenamento jurídico naquele momento.
A ementa do v. acórdão (HC 67.759-RJ) bem espelha a orientação adotada, nestes termos:
"HABEAS CORPUS´ - MINISTÉRIO PÚBLICO - SUA DESTINAÇÃO CONSTITUCIONAL - PRINCÍPIOS INSTITUCIONAIS - A QUESTÃO DO PROMOTOR NATURAL EM FACE DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 - ALEGADO EXCESSO NO EXERCÍCIO DO PODER DE DENUNCIAR - INOCORRÊNCIA - CONSTRANGIMENTO INJUSTO NÃO CARACTERIZADO - PEDIDO INDEFERIDO.
- O postulado do Promotor Natural
, que se revela imanente ao sistema constitucional brasileiro, repele, a partir da vedação de designações casuísticas efetuadas pela Chefia da Instituição, a figura do acusador de exceção. Esse princípio consagra uma garantia de ordem jurídica, destinada tanto a proteger o membro do Ministério Público, na medida em que lhe assegura o exercício pleno e independente do seu oficio, quanto a tutelar a própria coletividade, a quem se reconhece o direito de ver atuando, em quaisquer causas, apenas o Promotor cuja intervenção se justifique a partir de critérios abstratos e pré-determinados, estabelecidos em lei. A matriz constitucional desse princípio assenta-se nas cláusulas da independência funcional e da inamovibilidade dos membros da Instituição.- O postulado do Promotor Natural limita, por isso mesmo, o poder do Procurador-Geral que, embora expressão visível da unidade institucional, não deve exercer a Chefia do Ministério Público de modo hegemônico e incontrastrável. Posição dos Ministros CELSO DE MELLO (Relator), SEPÚLVEDA PERTENCE, MARCO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO. Divergencia, apenas, quanto a aplicabilidade imediata do princípio do Promotor Natural: necessidade da "interpositio legislatoris" para efeito de atuação do princípio (Ministro CELSO DE MELLO); incidência do postulado, independentemente de intermediação legislativa (Ministros SEPÚLVEDA PERTENCE, MARCO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO).
- Reconhecimento da possibilidade de instituição do princípio do Promotor Natural mediante lei (Ministro SYDNEY SANCHES). - Posição de expressa rejeição a existência desse princípio consignada nos votos dos Ministros PAULO BROSSARD, OCTAVIO GALLOTTI, NÉRI DA SILVEIRA e MOREIRA ALVES. (HC 67759-RJ, Rel.: Min. CELSO DE MELLO, Julg.: 06/08/1992, Tribunal Pleno, DJU 01-07-1993, p. 13142).
Na oportunidade, como visto, apenas os Ministros PAULO BROSSARD, OCTÁVIO GALLOTTI, NÉRI DA SILVEIRA e MOREIRA ALVES rejeitaram a existência do princípio do Promotor Natural, enquanto os Ministros CELSO DE MELLO (Relator), SEPÚLVEDA PERTENCE, MARCO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO sustentaram a sua existência, tendo havido divergência apenas quanto à sua imediata aplicabilidade, porque ainda não objeto de regulamentação pela legislação infraconstitucional.
No precedente, embora defendendo o entendimento no sentido de que a Constituição Federal hospedou o princípio do Promotor Natural, o Ministro CELSO DE MELLO indeferia o habeas corpus impetrado contra o afastamento do Promotor Titular, num caso concreto, em curso perante a Vara da Justiça onde tinha assento, continuando competente para todos os demais feitos, menos aquele para o qual foi designado outro Promotor de Justiça, ao que tudo indica, por motivos de descontentamento pessoal do Procurador-Geral de Justiça.
Já o Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, que defendia o entendimento de que a Constituição Federal não havia hospedado o princípio do Promotor Natural, deferia o habeas corpus, porque entendia maltratados outros princípios constitucionais, como o da inamovibilidade. Embora admitindo que a Constituição Federal não veda a avocação e a designação especial, "que são instrumentos da unidade e da indivisibilidade da instituição, que a Constituição preservou", deve-se dar-lhes "disciplina legal cerceadora do arbítrio". Lembra que, como acentuou o Relator, "o exercício desses poderes, pelo Procurador-Geral, ‘só se justificará, pois, nos limites estritos da lei e com respeito absoluto às atribuições funcionais do membro do Ministério Público, as quais constituem objeto de precisa discriminação legal’ (item 33 do voto).
Registra o Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, em seu voto, que o Relator, Ministro CELSO DE MELLO, evidenciou, "de modo conclusivo, a incompatibilidade entre os princípios e garantias constitucionais do Ministério Público e o exercício indiscriminado pelo Procurador-Geral dos poderes de avocação e substituição" (item 50 do voto).
Na seqüência, o Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE defendeu o entendimento no sentido da eficácia imediata da nova ordem constitucional, independente da complementação pela legislação infraconstitucional, conforme itens 51, 52, 53, 56, 57, 59, 61 e 62 de seu voto, a seguir transcritos:
"51. Daí me parecer que – não obstante a positivação de todas as virtualidades dos princípios referidos e de sua conciliação dependa da obra complementar de concretização legislativa -, enquanto ela não sobrevenha, da vigência mesma da Constituição irradia-se o efeito paralisante – derrogatório ou invalidante, como se queira – de normas (ou, pelo menos, da interpretação anterior de normas) preexistentes, contrárias à nova sistemática.
52. Aliás, ninguém duvidará de que é de eficácia negativa plena e imediata o inciso que outorgou aos membros do Ministério Público a inamovibilidade.
53. Se esta – como entende o Ministro Celso de Mello, com a minha adesão -, é incompatível com a substituição por ato individual sem parâmetros legais predeterminados, do Promotor com atribuições legais para o caso -, na ausência das normas infraconstitucionais, que o disciplinem, o que se há de paralisar não é a garantia, mas, sim, o poder de designação que, repito o Relator, dado o condicionamento imposto pelo novo sistema constitucional, "só se justificará (...) nos limites estritos da lei".
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56. Aliás, de logo se me afigura que não é mais praticável, sob a Constituição vigente, que os poderes de devolução e substituição se possam confiar ao exercício unipessoal do Procurador-Geral, com alheamento do colegiado superior do Ministério Público.
57. Parece crucial, com efeito, que, sendo a garantia da inamovibilidade a condicionante básica dos referidos poderes hierárquicos, de seu exercício não se pode subtrair a participação do órgão colegiado ao qual se cometeu o papel decisivo no juízo do interesse público na remoção do membro do Ministério Público, que se admitiu como ressalva da mesma garantia.
58. O raciocínio tem a ver com um precedente do Tribunal, que me é muito caro, porque página relevante de momento decisivo da minha vida. Refiro-me ao MS 19.615, de 18.9.69, rel. o em. Ministro Eloy da Rocha, cuja ementa lhe resume bem o raciocínio – RTJ 54/216:
´Promoção, por antiguidade, de membro do Ministério Público da Justiça do Distrito Federal; recusa de indicação do mais antigo. Não é admissível a transferência, ao Chefe do Ministério Público, de atribuição excepcional, conferida ao Conselho, pela L. 3.434, de 20.7.58, só exercitável em condições especialmente previstas na lei, isto é, quando a vontade do órgão colegiado se manifestasse pela maioria qualificada de 2/3 dos votos. Vulneração do princípio da carreira do Ministério Público e negação do direito à classificação segundo a antiguidade´.
59. Mutatis mutandis, no sistema vigente, não podem remanescer na esfera da decisão solitária do Procurador-Geral poderes excepcionais que afetam a garantia da inamovibilidade, se a segurança desta foi entregue, na Lei Fundamental, ao contrário do que sucedia na ordem constitucional anterior – (CF 69, art. 95, §1º, in fine), à decisão da maioria qualificada de um colegiado da instituição: foi essa a fórmula constitucional de proscrição, no campo delicado dessa garantia básica, da margem de subjetivismo e de arbítrio que é inerente a toda decisão individual discricionária.
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61. É significativo, aliás, que a submissão do exercício da avocação ou da designação especial à anuência prévia ou ao referendo dos colegiados superiores da instituição tenha sido a solução proposta por ambos os projetos referidos, de Lei Orgânica, do Ministério Público da União (art. 49, VI e VIII) e da lei nacional de bases do Ministério Público dos Estados (art. 10, IX, g).
62. De qualquer sorte, o Sr. Presidente, seja essa ou não a solução que validamente se possa construir para a espera da complementação legislativa que o tema reclama, basta, no caso concreto, a impossibilidade de conciliar os princípios da nova estruturação do Ministério Público, gizados com mestria pelo em. Relator, com a sobrevivência de substituições arbitrárias, de aparência casuística e com indícios veementes de desvio de poder, como a que se questiona na impetração".
O Ministro MARCO AURÉLIO, em seu voto no HC n° 67.759-RJ, a que estamos nos referindo, defende o entendimento no sentido de que a designação de membro do Ministério Público Estadual para substituir aquele com lotação e exercício em certo ofício é ofensiva à garantia constitucional de que "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente" (inciso LIII do art. 5º). Daí sustenta que a Constituição Federal impede a designação de "um acusador para o caso concreto (...) face ao descontentamento individual do Senhor Procurador-Geral com a atuação daquele que se mostrou e continuou a se mostrar apto em relação à totalidade dos demais processos em tramitação na Vara em que lotado como Titular" (voto, p. 194).
Do voto do Ministro MARCO AURÉLIO podem ser transcritos os seguintes fundamentos pelos quais entende ser vedada a remoção do Promotor Natural relativamente às suas atribuições em cada processo e em todos aqueles em tramitação no ofício para o qual é designado:
"As garantias do Ministério Público, tais como as pertinentes aos magistrados, extravasam, como já foi dito, o campo dos interesses respectivos para alcançar o dos que integram a vida gregária e, até aqui, ninguém colocou em dúvida as relativas aos segundos, especialmente as que cogitam da inamovibilidade, da vitaliciedade e da irredutibilidade de vencimentos.
A rigor, frente à Carta, a substituição do Promotor Titular, ou seja, daquele que a priori é destinatário de atribuição que o torna legitimado à atuar em nome do Estado, somente pode ocorrer nas hipóteses de suspeição, impedimento, ausência em virtude de faltas, férias ou licença e na pertinência do artigo 28 do Código de Processo Penal. Estes são, em síntese, os casos que encontram agasalho na ordem jurídica em vigor. Extravagante é a substituição verificada à livre discrição do Procurador-Geral, mormente a ponto de desautorizar o membro do Ministério Público que vem atuando e de alcançar, solapando-a, a segurança dos jurisdicionados. Conflita com a noção que se tem do devido processo legal a variação da figura do acusador em meio à tramitação do processo e, portanto, sem que tenha tomado conhecimento com anterioridade. A independência do Ministério Público não se coaduna com quadro que revele a existência de um superórgão retratado na pessoa do Procurador-Geral que, enfim, nada mais é do que um membro da importante instituição e que logrou, no campo político, a confiança maior e, por isso mesmo, de cunho subjetivo, indispensável ao exercício da função. Os esforços deste destacado membro devem estar dirigidos ao fortalecimento da Instituição, a angariar a confiança dos cidadãos e, com isto, é de todo incompatível a interferência de ofício e sem justificativa ligada ao interesse público que implique o afastamento daquele a quem se atribuiu, anteriormente e de forma genérica, a incumbência de atuar em nome do Estado".
Portanto, temos que, da mesma forma que é vedado ao Procurador-Geral designar um Promotor para substituir o Promotor Titular numa determinada Vara, contra a vontade deste, é igualmente vedado delegar competência para determinado membro do Ministério Público recorrer, no caso em que tal delegação implique a exclusão de idêntica atribuição do Procurador de Justiça designado para ter atribuições perante determinado órgão colegiado de um Tribunal, não havendo igualmente poder para avocar determinado processo com a finalidade de impedir o exercício do poder-dever de interpor recurso. A lei que assim o autoriza carece de validade e eficácia perante a Constituição Federal, devendo ser declarada sua inconstitucionalidade, incidenter tantum, por esta Corte Superior de Justiça, no presente caso, observado o disposto nos arts. 480 e seguintes do Código de Processo Civil, 97 da Constituição Federal e 199 e 200 do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça.