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Ação contra Encol e Banespa para nulidade de hipoteca

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Agenda 01/04/1999 às 00:00

Esta ação visa a anular a hipoteca que até hoje grava os bens de muitos adquirentes de imóveis da Encol

EXMº. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA ____ª. VARA CÍVEL DA CIRCUNSCRIÇÃO JUDICIÁRIA ESPECIAL DE BRASÍLIA - DISTRITO FEDERAL.

XXXXXXXXXXXXX, alemão, separado judicialmente, engenheiro industrial, portador da CI n.º – SE/DPMAF/DPF, CIC n.º , domiciliado no SHN QD 02 Bloco "H" Aptº. , Brasília-DF, CEP: 70710-300;

XXXXXXXXXXXXXXX, brasileira, casada, servidora pública, portadora da CI n.º – SSP/DF, CIC n.º , domiciliada no SHIN QI Conj. 00 Casa 00 Brasília-DF, CEP: , fone: (061) ;

XXXXXXXXXXXXXX, brasileiro, viúvo, aposentado, portador da CI n.º – SSP/DF, CIC n.º, domiciliado no SHIS QI 00 Conj. 00 Casa 0 Brasília-DF, CEP: fone: ; e

XXXXXXXXXXXXXXXXXX, brasileiro, casado, empresário, portador da CI n.º – CREA/DF, CIC n.º, domiciliado no SQN Bloco Aptº. Brasília-DF, CEP:, fone: ; por seu advogado, adiante assinado, mandatos em apenso (Docs. anexos), com domicílio profissional no endereço grafado no cabeçalho desta petição, onde recebe intimações, vem, respeitosamente, à presença de V. Exª., com supedâneo nos artigos 82, 145, II, e 756, do Código Civil, c/c os artigos 5º., XXXII, 170, V, da Carta Magna de 1988, e os artigos 4º., III, 46, 47 e 51, IV, XIII e XV, da Lei n.º 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), e, ainda, os artigos 282 e seguintes, do pergaminho processual civil, propor a presente ação ordinária de

NULIDADE DE HIPOTECA
COM PEDIDO DE NULIDADE DE HIPOTECA

em face de ENCOL S/A ENGENHARIA, COMÉRCIO E INDÚSTRIA, pessoa jurídica de direito privado sediada na Rodovia GO-080, Km 02, Zona Urbana, Setor Goiânia 2, Goiânia-GO, e BANCO DO ESTADO DE SÃO PAULO S/A - BANESPA, instituição financeira sediada na Praça Antônio Prado, n.º 06, Centro, São Paulo – SP, CEP: 01010-010; pelas razões de fato e de direito adiante expendidas:


I - DOS FATOS

Conforme demonstra o quadro abaixo, os autores são adquirentes de unidades autônomas do Ed. Metropolitan Flat, sito no SHN, QD 02, Bloco "H", Brasília-DF, conforme se aduz dos anexos Contratos de Promessa de Compra e Venda e, em alguns casos, Cessões de Direitos em Promessa de Compra e Venda, construídas sob o regime de incorporação imobiliária pela primeira requerida, Encol S/A Engenharia, Comércio e Indústria.

Adquirente

Data da Aquisição

As referidas transações, como se percebe, se deram Já sob a égide da Lei n.º 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), tendo os autores já pago o preço integral dos imóveis, conforme comprovam os documentos anexos, descritos no quadro abaixo grafado.

Unidade

   
   
   
   

03. Nos Contratos de Promessa de Compra e Venda refe- ridos a primeira requerida fez constar uma cláusula, ora sob o número de cláusula 21, ora sob o número 25, ora 20, ora 13, e ora não chegando sequer a fazer constar, com os seguintes dizeres:

"FINANCIAMENTO DA OBRA

- A obra em construção e o respectivo terreno poderão ser dados em garantia de financiamento pela ENCOL, que se obriga a exonerar do gravame a unidade habitacional comprometida, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a concessão do ‘habite-se’."

(Grifo nosso)

04. Nos contratos onde a primeira requerida não fez constar tal cláusula, há a previsão para a outorga da escritura definitiva (normalmente na cláusula 23) depois de quitado o preço, o que, de fato, foi cumprido pelos autores em todos os casos ora apresentados, conforme comprovado pelos documentos anexos, demonstrado pelo quadro grafado no item 02 desta peça.

05. Houve, também, em alguns casos, a previsão da hipoteca constando na cláusula SÉTIMA de um Contrato Particular de Promessa de Permuta, que reza o seguinte:

 "CLÁUSULA SÉTIMA - A ESTENGE se obriga a anuir em todos os documentos requerimentos e demais procedimentos que forem necessários à plena viabilização da construção que será programada, e sua final incorporação, ficando a ENCOL desde já autorizada a terminalização dos projetos, especificações e memorial de incorporação, podendo firmá-los, bem como proceder à respectiva hipoteca junto ao agente financeiro idôneo, para fins de financiamento da obra, ficando certo que os ônus e custos dos possíveis débitos hipotecários serão arcados pela ENCOL, que se obriga a Outorgar a Escritura definitiva à ESTENGE, até 60 (sessenta) dias após a data da averbação do HABITE-SE, quando será liberado a hipoteca junto ao agente financeiro."

(Grifos nossos)

06. Nesse caso específico, o item 1.3, da cláusula PRI- MEIRA do Termo Aditivo ao Contrato Particular de Permuta de Imóveis, por seu turno, modificou o prazo para que a ENCOL liberasse os imóveis da hipoteca, bem como para a outorga das escrituras definitivas, senão vejamos:

"1.3 – Deverá a ENCOL providenciar a expedição e a subsequente averbação da carta de ‘Habite-se’, e liberar a hipoteca assecuratória do financiamento da obra, de sorte que até 30.09.94 seja viabilizado o registro das escrituras referidas no item 1.2"

07. Ainda nesse caso específico, o item 1.2, da cláusula PRIMEIRA do referido termo aditivo, por seu turno, prescreve o seguinte:

"1.2 – Por conveniência da ESTENGE, a ENCOL outorgar-lhe-á – ou a terceiro, que ela indicar expressamente – escrituras públicas de promessa de compra e venda das unidades anteriormente identificadas, até 60 (sessenta) dias após a celebração deste aditivo, cumprindo à ESTENGE efetuar o pagamento de todas as despesas para isso necessárias, tais como emolumentos, taxas, impostos, etc."

08. Quando da aquisição das referidas unidades autônomas pelos autores, não havia nenhum gravame que por sobre elas incidisse, assim como livres e desembaraçadas de quaisquer ônus ou gravames de natureza real também se encontravam todas as outras unidades que compõem o Ed. Metropolitan Flat.

09. Em 25 de novembro de 1992, posteriormente, portanto, às datas das promessas de venda dos imóveis, a primeira requerida fez incidir sobre as unidades autônomas em comento, assim como por todas as demais que compõem o Ed. Metropolitan Flat, gravame hipotecário em favor do segundo requerido, Banco do Estado de São Paulo S/A – BANESPA, conforme atesta a anexa Escritura Pública de Abertura de Crédito para Construção de Imóvel Comercial com Pacto Adjeto de Hipoteca e Outras Avenças lavrada em 25 de novembro de 1992 pelo 17º. Tabelionato da Cidade de São Paulo, Capital, às fls. 192, do L.º 2.706, firmada pelas duas requeridas (doc. 06).

10. A referida escritura foi registrada no Cartório do 2º. Ofício de Registro de Imóveis de Brasília-DF, constando, inclusive, na matrícula dos imóveis dos autores, conforme comprovam os registros n.ºs R.3, lançados em suas matrículas (docs. anexos).

11. A Carta de "Habite-se" foi expedida no dia 24 de ou- tubro de 1995, conforme atesta a sua cópia em apenso, sendo que até a presente data, ou seja, já transcorridos quase três anos da data que se obrigara a exonerar as unidades dos autores do gravame hipotecário, a primeira requerida, Encol S/A Engenharia, Comércio e Indústria, não adimpliu sua obrigação, uma vez que tal providência deveria ter sido tomada pela primeira requerida em 24 de abril de 1996. No caso dos dois últimos autores, tal providências deveria ter sido feita até 30/09/94, tendo já se passado, no seu caso específico, portanto, mais de quatro anos da data contratual a que se obrigara

12. Continuam, portanto, até hoje, tanto os imóveis dos autores, como as demais unidades que compõem o Ed. Metropolitan Flat, com o gravame hipotecário feito muito tempo após a assinatura dos Contratos de Promessa de Compra e Venda, restando infrutíferas todas as tentativas junto à Encol para que esta adimplisse sua obrigação.


 II – DO DIREITO

A legislação que regulamenta a incorporação imobiliária e define a figura do incorporador é a Lei n.º 4.591/64 (Lei do Condomínio e das Incorporações Imobiliárias), especificamente a partir do seu artigo 28, senão vejamos:

"Art. 28. ........................................

Parágrafo único. Para efeito desta lei, considera-se incorporação imobiliária a atividade exercida com o intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações ou conjunto de edificações compostas de unidades autônomas."

(Grifo nosso)

14. O artigo 29 da supracitada lei define a figura do incor- porador, como sendo a pessoa física ou jurídica, comerciante, ou não, que aceita propostas, compromissa ou efetiva a venda de unidades a serem construídas, em edificações em fase de construção ou apenas projetadas, coordenando e levando a termo o empreendimento.

15. A caracterização da atividade da incorporação imobili- ária e, por conseguinte, a caracterização da figura do incorporador, segundo a prefalada Lei n.º 4.591/64, é a intenção de alienar frações ideais do terreno vinculadas a unidades a serem edificadas, na fase de construção, ou mesmo antes, ainda na fase de lançamento do empreendimento no mercado.

16. Com muita propriedade, os mestres J. NASCIMENTO FRANCO e NISSKE GONDO, abordaram esse tema, consoante se observa de suas palavras, adiante transcritas, in verbis:

"No sistema legal brasileiro, caracteriza-se a incorporação quando a iniciativa do empreendimento é assumida pelo incorporador que se dispõe a vender as unidades autônomas do edifício projetado ou a ser construído. As sociedades de fato, dos co-proprietários, para a construção do edifício sob a orientação de um técnico, não configuram propriamente incorporação imobiliária, nos termos da aludida Lei 4.591, porque, para tanto, falta um elemento essencial, vale dizer a alienação, ou promessa de alienação de unidades autônomas."

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(Grifos nossos)

17. Claro está, portanto, sem sombra de dúvida, que a figura do incorporador é a do empreendedor que visa lucro operando com recursos de terceiros, quer dizer, aquele que capta recursos dos promissários compradores, aplicando-os (os recursos) na construção de unidades imobiliárias autônomas que serão, a posteriori, entregues àqueles adquirentes.

18. Claro está, também, portanto, que a atividade da primeira requerida, Encol S/A Engenharia, Comércio e Indústria, é a típica da definição legal da incorporação imobiliária, uma vez que capta recursos de terceiros mediante a alienação ou promessa de alienação de unidades imobiliárias autônomas a serem construídas e entregues a posteriori, fato esse público e notório, e que consta, inclusive, em todos os seus contratos de promessa de compra e venda, não necessitando ser provado, conforme ensina o artigo 334, do pergaminho processual civil.

19. Na qualidade de incorporadora e sob o regime de incorporação, portanto, a primeira requerida empreendeu e construiu o Ed. Metropolitan Flat. Fato inconteste também é que os imóveis dados em garantia hipotecária, gravame cuja nulidade pleiteiam aqui os autores, são integrantes de uma incorporação imobiliária.

20. É uníssono o entendimento, portanto, de que construir sob regime de incorporação significa construir para alienar, ainda no período da construção. Tendo a incorporadora registrado o memorial de incorporação do empreendimento, por imposição legal, tornou público o regime sob o qual a construção será edificada. O renomado mestre CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA abordou este assunto com bastante propriedade, senão vejamos:

"Reversamente, se alienar apartamento ou conjunto, depois de estar o prédio terminado, e como tal se considera o que tenha já o habite-se da autoridade administrativa, não procede como incorporador. A ele não se aplica a lei 4.591/64 na parte relativa ao incorporador, sendo, como é, um vendedor."

21. Sobre a publicidade do regime de incorporação sob o qual a construção será edificada, o mesmo mestre assim ensina:

"Destarte, o registro de incorporação e a averbação dos contratos têm validade contra todos, inclusive contra autoridade administrativa que licenciou a obra e com isso liberou a incorporação."

22. In casu, o memorial de incorporação foi registrado em 22 de setembro de 1992, conforme demonstra as Averbação n.º. 1, assentada nas matrículas dos imóveis, no Livro 2 – Registro Geral, averbação essa adiante transcrita, in verbis:

"Av. 1/xxxxx – Certifico que, o imóvel objeto desta Matrícula está sendo edificado sob o regime de incorporação, nos termos da Lei n.º 4.591, de 16/12/64 e de acordo com MEMORIAL DE INCORPORAÇÃO depositado neste Cartório e registrado sob o n.º R.4/38946, Matrícula n.º 38946. DOU FÉ. Em, 22/09/1992. Técnico Judiciário, ‘duas assinaturas ilegíveis’."

23. O fato de haver registrado o memorial de incorporação do Ed. Metropolitan Flat antes da data da avença firmada entre os réus – a prefalada Escritura Pública de Abertura de Crédito para Construção de Imóvel Comercial com Pacto Adjeto de Hipoteca e Outras Avenças – somado ao fato de que houveram alienações também anteriores à referida avença, criou o efeito de subtrair da primeira requerida – Encol – o poder de disponibilidade para instituir gravame hipotecário sobre a totalidade das unidades autônomas que compõem o Ed. Metropolitan Flat.

24. Por outro lado, em razão da publicidade dada ao memorial de incorporação, em razão do seu registro no Cartório do 2º. Ofício do Registro de Imóveis de Brasília, não poderia, efetivamente, o segundo requerido – BANESPA – escudar-se sob a alegação de que agira de boa-fé, ou seja, que não tinha conhecimento de que as unidades autônomas do Ed. Metropolitan Flat, que aceitara como garantia real, estavam submetidas ao regime de incorporação imobiliária.

25. Conforme se aduzirá adiante, houve, por parte do segundo requerido, também, má-fé, uma vez que as unidades do Ed. Metropolitan Flat estavam sendo construídas para alienação, ainda no período da construção, e que, por tal motivo, não poderiam em hipótese alguma ser aceitas como garantia real, eis que o banco era, como de fato é, terceiro estranho à incorporação.

II.2 – DA CAPACIDADE DE HIPOTECAR E DAS COISAS HI- POTECÁVEIS

O artigo 756, da Lei Adjetiva Civil, prescreve o seguinte:

"Art. 756

. Só aquele que pode alienar, poderá hipotecar, dar em anticrese ou empenhar. Só as coisas que se podem alienar poderão ser dadas em penhor, anticrese ou hipoteca."

(Grifo nosso)

27. Do referido dispositivo legal, aduz-se, sem necessidade de maiores interpretações, que a capacidade de hipotecar é, portanto, mera conseqüência do poder de alienar. Claro está, portanto, que somente pode dar em hipoteca aquele que tem o poder de disponibilidade sobre o bem hipotecado.

28. Para alguém legitimar-se como alienante, deverá, obri- gatoriamente, atender a certos requisitos e, da mesma forma, para poder hipotecar, deverá cumprir as mesmas exigências, uma vez que a hipoteca é, sem sombra de dúvida, o início de um ato de alienação, pelo fato de que basta haver o descumprimento da obrigação principal para haver a excussão e a conseqüente venda judicial do bem hipotecado.

29. O consagrado mestre TITO FULGÊNCIO aborda com precisão esse tema, consoante se observa de suas palavras adiante transcritas, in verbis:

"É assim a hipoteca um desmembramento da propriedade, uma espécie de alienação..."

30. O mesmo mestre ainda exemplifica os bens que não podem ser dados em hipoteca, porque são coisas que não podem ser alienadas: - as fora do comércio, os bens públicos, os imóveis dotais, os bens dados ou legados com a cláusula de inalienabilidade, os da legítima gravada com cláusula de inalienabilidade e os cuja alienação é considerada fraudatória de execução ou de credores.

31. Já J. M. DE CARVALHO SANTOS leciona:

"Na verdade, qualquer bem dado em garantia fica sujeito a ser alienado se, no vencimento, não é a dívida resgatada. O devedor precisa, portanto, contar com isso, e, ao se obrigar, constituindo o vínculo real, admitir essa possibilidade. Ora, basta haver essa possibilidade para que se exija, com fundamento, que só possa constituir direito real de garantia quem puder alienar, mesmo porque o contrato pressupõe a eventual alienação."

(Grifo nosso)

32. Sobre o mesmo tema, segue ainda, com a mesma propriedade o renomado mestre:

"Só as coisas que se podem alienar poderão ser dadas em penhor, anticrese, ou hipoteca. Passa o Código, agora a determinar quais os bens que podem constituir objeto dos direitos reais de garantia, esclarecendo que só as coisas que se podem alienar poderão constituir objeto de tais direitos.

Nada mais razoável. Porque se, como vimos, os bens que constituem a garantia estão sujeitos à excussão judicial para a solução das dívidas que garantem, se não forem pagas no vencimento, necessariamente, se tais bens não podem ser alienados, não poderão ser objeto da garantia. Mesmo porque, em última análise, o efeito derradeiro da garantia real é a alienação da coisa, constitui seu objeto."

(Grifo nosso)

33. Ora, emérito julgador, se somente os bens alienáveis podem ser dados em hipoteca, claro está, então, que não poderia a primeira requerida – Encol – gravar de ônus hipotecário as unidades prometidas à venda aos autores, uma vez que ao firmar contratos de promessa de compra e venda, tendo por objeto as unidades autônomas que compõem o Ed. Metropolitan Flat, perdeu a incorporadora a disponibilidade sobre tais bens, ficando impedida de aliená-los.

34. Não obstante fosse a primeira requerida – Encol – a detentora do domínio do terreno e das unidades que compõem o Ed. Metropolitan Flat nele construído, não mais possuía o poder de dispô-las, como também não detinha mais o poder de constituir hipoteca sobre os mesmos.

35. Uma vez que a primeira requerida – Encol – compromissou à venda as unidades que compõem o Ed. Metropolitan Flat, restou-lhe apenas, utilizando a expressão do Ministro Sálvio de Figueiredo, do Superior Tribunal de Justiça, um "domínio vazio", completamente destituído do jus disponendi e, ainda menos, do jus abutendi, conforme as palavras do Ministro Athos Carneiro, do mesmo STJ, senão vejamos:

"Tenho a impressão de que levar nosso raciocínio para o terreno do direito registral importará na aplicação das normas jurídicas dentro de um, digamos assim, tecnicismo exagerado. É certo que, num plano puramente registral, o imóvel penhorado ainda é, tecnicamente, integrante do patrimônio do promitente-vendedor. Mas, inclusive, com freqüência, é difícil que o credor ignore que sobre aquele imóvel, cuja penhora postula, se exerce o direito de outra pessoa, do promitente-comprador e possuidor de boa fé. O promitente-vendedor ainda é dono do imóvel, mas o é sob aquele minus derivado das obrigações que assumiu, de outorga da escritura definitiva, em virtude do contrato quitado de promessa de compra e venda. O patrimônio do cidadão não é constituído só de seus direitos, mas também das suas obrigações. E o promitente-vendedor tem a obrigação de garantir a posse transferida contratualmente ao promitente-comprador, que a exerce em nome próprio."

(Grifo nosso)

II.3 – DO ATO NULO EM RAZÃO DA ILICITUDE DO OBJETO

Ambos os requeridos praticaram ato nulo em razão da ilicitude do objeto, exatamente na forma capitulada nos artigos 82 e 145, II, do Código Civil, pelo fato de haverem realizado o negócio jurídico de dar e receber em garantia hipotecária as unidades autônomas que compõem o Ed. Metropolitan Flat, incluídas aí as adquiridas pelos autores, empreendimento que, repise-se, foi construído sob o regime de incorporação imobiliária e cujas unidades autônomas ora sub judice já haviam sido anteriormente compromissadas à venda.

37. Conforme ensina o renomado doutrinador R. LI- MONGI FRANÇA, "objeto ilícito é aquele proibido por lei".

38. Quis o legislador, através do artigo 756, c/c os artigos 82 e 145, II, todos da Lei Adjetiva Civil, tornar ilícito e bombardear de nulidade ato jurídico como o praticado pelos requeridos, consubstanciado no fato de um haver oferecido e o outro aceitado garantia real representada por unidades autônomas imobiliárias que não poderiam ser hipotecadas, uma vez que não mais poderiam ser alienadas, pelo fato de que foram construídas sob o regime de incorporação imobiliária e, inclusive, em razão de que já estavam ditas unidades anteriormente compromissadas à venda.

39. Firmaram, portanto, ambos os requeridos avença cujo objeto é ilícito, pois, sob a ótica das regras civis citadas, é nula a cláusula contratual que impôs o gravame hipotecário sobre imóveis sobre os quais a primeira requerida – Encol – já não tinha mais disponibilidade, incluídos aí os dos autores, e que, inclusive, nem mais poderia alienar pelo fato de que, mesmo antes da hipoteca, já os havia compromissado à venda.

40. A oneração fraudulenta feita pela primeira requerida por sobre os imóveis anteriormente adquiridos pelos autores constitui, inclusive, ilícito penal, pois tal conduta está tipificada como crime de estelionato, conforme dispõe o inciso II, do § 2º., do artigo 171, do Código Penal, atitude essa, inclusive, passível de representação criminal junto ao Ministério Público.

41. Não há a necessidade de qualquer perquirição se houve ou não por parte dos requeridos a intenção de praticar ato contrário à lei ou de fraudar a lei. Como o ato nulo é absolutamente ineficaz, nenhuma eficácia jurídica tem o ato de dar e receber as unidades dos autores em garantia real, da forma como fizeram os requeridos.

42. No mínimo há de se perquirir se está ou não caracterizado, por um lado, o concilium fraudis, no âmbito civil, em razão da avença firmada entre os requeridos e, por outro lado, o animus nocendi da Encol de violar deliberadamente as garantias do consumidor asseguradas pela Lei n.º 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor).

43. Sendo o objeto da avença firmada entre a Encol e o BANESPA manifestamente ilícito, ou seja, a hipoteca das unidades imobiliárias que compõem o Ed. Metropolitan Flat, construídas sob o regime de incorporação imobiliária, anteriormente compromissadas à venda, eivado de nulidade está, portanto, o ato jurídico firmado pelos dois requeridos, inexistindo, via de conseqüência, o direito real de garantia.

44. O renomado mestre J. M . DE CARVALHO SANTOS, se posiciona de forma absolutamente clara sobre esse assunto, senão vejamos:

"Para a existência da nulidade, é ponto que merece atenção, não se exige que haja a intenção de fraudar a lei. Não pode haver divergência razoável sobre o assunto. Por isso que, assim como no ato contrário à lei não exige aquela intenção, bastando o fato da contrariedade em si, de igual forma a intenção não é essencial para constituir a nulidade, mas apenas poderá servir de prova ou demonstração da fraude, em se tratando de ato em fraude da lei. E a prova está em que, se houver apenas a intenção e não se certificar a contrariedade, ninguém poderá vislumbrar qualquer nulidade, quer se trate de ato contrário à lei, quer de ato em fraude da lei."

(Grifos nossos)

45. Tendo transacionado sobre imóveis que já pertenciam a terceiros, os requeridos agiram com indisfarçável dolo e malícia, tornando irremediavelmente viciada a higidez da garantia hipotecária oferecida pela Encol, aceita deslealmente e com sofreguidão pelo BANESPA. É importante explicar ao preclaro Juízo que os autores não se insurgem aqui contra o contrato de financiamento firmado entre os requeridos, mas, tão-somente contra a hipoteca, pelos já apontados vícios que a eivam de ilicitude e ineficácia.

46. Importante, também, frisar que as nulidades que tornam ineficaz a garantia hipotecária não produz reflexos sobre a dívida, que permanece inalterada, exatamente como prescreve o artigo 153, da Lei Adjetiva Civil: "A nulidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal." E como a garantia hipotecária, in casu, é acessória em relação à dívida assumida pela Encol junto ao BANESPA, restando caracterizada a nulidade daquela, esta remanesce incólume, subsistindo autonomamente, exatamente nos termos do dispositivo legal apontado.

47. Claro está, portanto, que da nulidade do ato e da conseqüente ineficácia da hipoteca, resulta a lógica de que não existe, in casu, direito real de garantia. A evidente nulidade do ato priva-o dos efeitos jurídicos que teria, se houvesse sido praticado legalmente. E, uma vez declarada a sua ineficácia, deverá produzir efeitos ex tunc.

48. Soma-se à violação pela primeira requerida dos vários dispositivos legais apontados o não cumprimento desta de sua obrigação nos contratos firmados com os autores, uma vez que deixara de transferir para estes o domínio dos imóveis que adquiriram, livre e desembaraçados, ao negar a outorga das escrituras definitivas das unidades autônomas, para que pudessem registrá-las junto ao competente CRI, deixando de cumprir, portanto, o que reza o item 39 (ou 35, ou 23, dependendo do contrato) dos Contratos de Promessa de Compra e Venda de Unidades Imobiliárias. No caso dos dois últimos autores, o item 1.2, da cláusula PRIMEIRA do Termo Aditivo ao Contrato Particular de Permuta de Imóveis

49. Além disso, ínclito Julgador, a primeira requerida agiu ainda com evidente má-fé, subrepção e perfídia contratuais, uma vez que, valendo-se dos nulos e abusivos poderes que lhe são conferidos no item 25 (ou 21) – já transcrito no item 03 desta peça –, à inteira revelia dos autores e dos demais adquirentes, deu todo o Ed. Metropolitan Flat, juntamente com o terreno onde se encontra edificado e todas as unidades autônomas que o compõem, em garantia hipotecária ao segundo requerido.

50. A avença firmada entre ambos os requeridos, além de ter sido feita posteriormente à data da assinatura dos Contratos de Promessa de Compra e Venda das unidades dos autores, fez incidir sobre tais bens imóveis um ônus abusivo, iníquo e absolutamente indevido.

51. Fato tão ou mais grave quanto haver firmado avença cujo objeto é ilícito, ou seja, dar em garantia imóveis que havia anteriormente compromissado à venda, é o fato de que o empréstimo concedido pelo segundo requerido à primeira requerida veio a ser tomado para atender a interesses outros desta última, completamente desvirtuados e desvinculados do interesse dos adquirentes do Ed. Metropolitan Flat, empreendimento que, na data da assinatura da prefalada Escritura Pública de Abertura de Crédito para Construção de Imóvel Comercial com Pacto Adjeto de Hipoteca e Outras Avenças (doc. anexo), já se encontrava com a maior parte das unidades autônomas que o compõem prometidas à venda.

52. É importante frisar, também, que a primeira requerida comercializou de forma irregular, durante mais de um ano, unidades do Ed. Metropolitan Flat, uma vez que o registro do memorial de incorporação só foi feito em 22 de setembro de 1992, atos esses, portanto, ao total arrepio dos artigos 32 e 33, da Lei n.º 4.591/64, que prescreve que as unidades só podem ser comercializadas após o arquivamento do Memorial de Incorporação junto ao Cartório de Registro de Imóveis.

53.

Esse ato por parte da primeira requerida, o de comercializar unidades autônomas do empreendimento em comento antes do registro o memorial de incorporação constitui contravenção relativa à economia popular, punível na forma do artigo 10, da Lei n.º 1.521/51, conforme disposto no artigo 66, I, da Lei n.º 4.591/64.

54. É curioso notar que os requeridos firmaram a Escritura Pública de Abertura de Crédito para Construção de Imóvel Comercial com Pacto Adjeto de Hipoteca e Outras Avenças (doc. 06) logo após o registro tardio do memorial de incorporação (dois meses e três dias após), o que evidencia que tal providência – o registro do memorial de incorporação – só fora feita para atender exigências da instituição financeira, que, obviamente, não aceitaria como garantia um imóvel em situação irregular.

55. Dita operação bancária teve a única e exclusiva finalidade de "resolver" os problemas de ordem financeira da primeira requerida, que já se encontrava em grave crise, com sérios desequilíbrios em seu fluxo de caixa, e a de satisfazer a avidez por lucro fácil do segundo requerido, questões essas que nada dizem respeito aos autores e aos demais adquirentes de unidades autônomas do Ed. Metropolitan Flat.

56. MM. Juiz, a primeira requerida tinha pleno conheci- mento de que não mais detinha o direito de livremente dispor das unidades autônomas adquiridas pelos autores, bem como das outras negociadas com os demais promissários compradores. E, se não mais podia aliená-las, não podia, da mesma forma, hipotecá-las. E o segundo requerido, de igual forma, jamais poderia alegar o desconhecimento da situação real dos imóveis que concordou receber como garantia real, porque tinha pleno conhecimento de que o empreendimento, quando da avença firmada com a primeira requerida, já estava com a maioria de suas unidades autônomas compromissadas à venda, uma vez que o empreendimento foi construído sob o regime de incorporação imobiliária.

57. Não pode, pois, a instituição financeira aqui figurante como segunda ré no pólo passivo da lide, alegar ignorância de que o empréstimo pleiteado com espeque na oferta dos imóveis em garantia hipotecária não se destinava à conclusão ou acabamento da obra, mas, sim, única e exclusivamente, com o fim de socorrer as dificuldades de caixa da primeira requerida.

58. O segundo requerido, mesmo tendo plena ciência de que o empreendimento estava sendo construído sob o regime de incorporação imobiliária e que várias unidades autônomas já estavam compromissadas à venda, por força de contratos protegidos pelas Leis n.º 4.591/64 e 8.078/90 (CDC), fatos esses públicos e notórios, dispôs-se a compactuar com a primeira requerida em seus propósitos de fraudar as legítimas expectativas dos promissários compradores.

59. A própria imprensa noticiou esses fatos, conforme se pode observar da reportagem nesse sentido publicada no jornal "Correio Braziliense" do dia 02/12/97, na seção "Últimas", página 2, do 1º. Caderno, jamais contestada por ambos os requeridos, ou por qualquer outro credor hipotecário da primeira requerida. Segue, adiante a transcrição da reportagem:

"HIPOTECAS

Pedro Paulo de Souza (Presidente do Conselho de Administração da Encol e sócio majoritário da empresa) fez hipotecas irregulares com os imóveis da Encol. É o que afirma Paulo Viana sobre seu cliente. Segundo o advogado, as hipotecas não poderiam ter sido realizadas sem a concordância dos condôminos, para quem os imóveis foram vendidos e, portanto, são inválidas. ‘Os bancos sabiam que a hipoteca era errada’, disse Viana. Souza hipotecou os imóveis porque os bancos exigiam garantias para rolar dívidas antigas."

60. Tais fatos, amplamente divulgados pela imprensa, não deixam dúvidas de que tanto a diretoria da Encol, como a do BANESPA, tinham plena consciência de que as garantias hipotecárias oferecidas pela primeira e aceitas pelo segundo eram fraudulentas.

61. Repise-se, mais uma vez, que os imóveis dos autores, assim como os demais que compõem o Ed. Metropolitan Flat, dados em hipoteca, são integrantes de uma incorporação imobiliária, nos exatos termos previstos no artigo 28, da Lei n.º 4.591/64, já transcrito no item 13 desta peça. Indubitável, portanto, que construir sob o regime de incorporação significa construir para alienar, ainda no período de construção.

62. O segundo requerido – BANESPA –, por seu turno, não pode escudar-se sob a alegação de que agira de boa fé, de que desconhecia o fato de que as unidades que compõem o empreendimento que aceitara como garantia real estavam sendo construídas sob o regime de incorporação imobiliária. Além da própria publicidade dada ao memorial de incorporação, com seu registro no CRI, a própria avença firmada por ele e a Encol prevê e reconhece que o empreendimento estava sendo erigido sob o regime de incorporação. Diz o seguinte o item 6 da referida avença:

"6 – CONSTRUÇÃO: Pelo memorial de incorporação registrado sob o n.º R-4, na matrícula n.º 38946, do Livro 2 – Registro Geral, do Cartório do 2º. Ofício do Registro de Imóveis do Distrito Federal, a DEVEDORA promoveu a incorporação, de acordo com a lei n.º 4.591/64, de 16 de dezembro de 1964..."

63. Não poderá, portanto, como já dito, o segundo reque- rido alegar desconhecimento da real situação dos imóveis que anuiu em receber como garantia real, uma vez que não lhe cabe nem lhe é lícito alegar ignorância quanto aos registros públicos, que têm por fim dar publicidade aos negócios jurídicos imobiliários. Da mesma forma, não pode alegar o segundo requerido que desconhecia a realidade do mercado imobiliário e a evidente situação periclitante de patrimônio e iliquidez em que se encontrava, já à época, a primeira requerida.

64. É terminantemente inaceitável, tanto jurídica, como moralmente, que a primeira requerida – Encol –, ao invés de entregar aos autores e aos demais adquirentes as unidades autônomas livres e desembaraçadas de quaisquer ônus ou gravames de natureza real, exatamente como se obrigara a fazer com a assinatura dos contratos de promessa de compra e venda, tenha feito incidir sobre os referidos imóveis um ônus iníquo, fraudulento, ilegal, abusivo e indevido, com o objetivo de, tão-somente, "resolver" seus problemas financeiros, que nada dizem respeito aos promissários compradores de boa fé, dentre eles os autores. Estes e os demais, por seu turno, cumpriram sua parte na avença, tendo quitado no prazo ajustado – vários até antecipadamente – o preço integral das unidades autônomas que adquiriram.

65. Em razão da exposição supra aduzida, somada à manifesta nulidade do ato da primeira requerida de gravar ônus hipotecário sobre imóveis sobre os quais já não mais tinha disponibilidade e que, por conseqüência, não podiam mais ser alienados, o que é do inteiro conhecimento do segundo réu, em razão do registro do memorial de incorporação, é imperioso que, através desta ação, seja declarada a nulidade da hipoteca dada pela primeira requerida – Encol – e aceita pelo segundo requerido – BANESPA –, tendo como garantia as unidades autônomas prometidas à venda aos autores, pela evidente caracterização, por um lado, do concilium fraudis no âmbito civil e, de outro lado, do animus nocendi da primeira requerida de violar deliberadamente as garantias asseguradas pelo Código de Defesa do Consumidor.

II.4 – DO DIREITO, DA DOUTRINA E DA JURISPRUDÊNCIA, SOB A ÓTICA DA LEI N.º 8.078/90 (CDC)

66.

O Direito Contratual pátrio vem sofrendo transformações significantes, em função das modificações sociais ocorridas desde o século passado. Antes, até o Código Civil de 1917 – que adotou a teoria contratual clássica, da total igualdade e liberdade das partes –, em quaisquer circunstâncias, a prevalência era sempre a do pacta sunt servanda e da presunção de igualdade das partes. Com a complexização das relações sociais, de consumo e, via de conseqüência, das contratuais, proliferaram os chamados contratos de massa, tendo a dinâmica contratual perdido o caráter eminentemente individualista e liberal, passando, então, a assumir um sentido de ordem mais abrangente, mais social.

67. Há muito tempo os contratos perderam o chamado momento volitivo, onde as partes tinham plena liberdade de discutir o que pretendiam contratar. Proliferaram os chamados contratos de adesão, onde uma das partes, normalmente grandes empresas, elaboram previamente as cláusulas e condições de seus contratos negociais, não dando margem a qualquer discussão ou negociação para a outra parte aderente. Aquele que se dispuser a negociar com essas empresas, terá que simplesmente anuir com as cláusulas e condições pré-impostas sem qualquer colaboração, sugestão ou interferência de sua parte. Nesses tipos de contrato, fica tolhida a liberdade de contratar, macula-se a autonomia da vontade da parte aderente, violando-se o princípio do equilíbrio contratual, numa verdadeira coação à essa parte de menor poder a celebrar o negócio, quer pela necessidade, quer pela inexistência de escolha efetiva.

68. No denominado contrato de adesão, muito embora remanesça a faculdade do indivíduo de decidir se e com quem contrata, não existe a liberdade de que a parte chamada a aderir participe efetivamente da discussão do conteúdo do contrato, conforme ensina KARL LARENZ. Já o mestre ORLANDO GOMES, por sua vez, assim se posiciona sobre o assunto:

"O que mais chama a atenção é a circunstância de que o texto do contrato, redigido por uma das partes, não pode ser discutido pela outra, que tem de aceitá-lo tal e qual, se quer realizar o negócio jurídico. O livre consentimento é substituído pela adesão. As negociações preliminares são eliminadas, nenhum debate se travando sobre as cláusulas prefixadas por um dos contratantes potenciais."

69. É indubitável que os contratos de promessa de compra e venda elaborados pela primeira requerida, como os que firmaram os autores, são contratos de adesão. Ditos contratos envolvem uma relação de consumo e, como tais, estão protegidos pela Lei n.º 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor). São, portanto, os contratos firmados entre os autores e a primeira requerida contratos de adesão, nos exatos termos previstos no artigo 54, da Lei n.º 8.078/90.

70. Tal caracterização, inclusive, é objeto de inúmeras decisões judiciais em ações análogas, jamais tendo sido questionada pela primeira requerida, como se observa da exemplificação abaixo:

"No venerando acórdão sob comento, depreendemos que se trata de um instrumento particular de compra e venda de imóvel, modelo impresso, em que as cláusulas contratuais foram impostas por um dos contratantes ao outro, que aderiu. É, sem dúvida, contrato de adesão. Quando mais não fosse, acrescentamos que até mesmo o financiamento concedido para aquisição de imóveis pelo Sistema Financeiro da Habitação é, segundo Orlando Gomes, um ‘negócio jurídico que igualmente se estipula sob a forma de um contrato de adesão’."

II.5 – DA BOA FÉ, DA EQUIDADE, DO EQUILÍBRIO E DA GARANTIA NAS RELAÇÕES DE CONSUMO

Conforme estatui o artigo 4º., inciso III, da Lei n.º 8.078/90, o princípio da boa fé, da equidade e equilíbrio deve estar presente em toda e qualquer relação de consumo. Todos os doutrinadores dessa matéria são uníssonos ao afirmar que esse princípio deve sempre estar presente nas relações contratuais, conforme observamos dos ensinamentos do mestre NELSON NERY JÚNIOR, adiante transcritos, in verbis:

"Mesmo que as partes nada tenham convencionado sobre esse princípio, deixando de ser objeto das tratativas contratuais, ou, ainda, não constando do instrumento do contrato de consumo, reputa-se existente o que denominamos cláusula geral de boa fé. Essa cláusula geral foi adotada implicitamente pelo CDC, como se depreende da interpretação dos arts. 4º., III, e 51, IV, este último dizendo ser nula de pleno direito a cláusula que seja incompatível com a boa fé e a equidade, preceito, aliás, aceito universalmente."

72. Com a já falada complexização das relações de consu- mo, passou-se a adotar o princípio da boa fé objetiva, numa atuação em que cada parceiro contratual tem que agir tomando em conta o outro e suas conveniências. A jurista CLÁUDIA LIMA MARQUES ainda acrescenta:

"... respeitando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes."

73. O princípio da boa fé objetiva nas relações contratuais de massa, em especial, e in casu, nos contratos de adesão, assegura ao consumidor deveres anexos de conduta do fornecedor/vendedor. Também sobre isso, os doutrinadores se posicionam no mesmo diapasão, conforme pode-se observar dos ensinamentos da prefalada jurista, que também faz várias citações, segundo suas palavras, adiante transcritas, verbis:

"Esta visão dinâmica e realista do contrato () é uma resposta à crise da teoria das fontes dos direitos e obrigações, pois permite observar que as relações contratuais durante toda a sua existência (fase de execução), mais ainda, no seu momento de elaboração (de tratativas) e no seu momento posterior (de pós-eficácia), fazem nascer direitos e deveres outros que os resultantes da obrigação principal. Em outras palavras, o contrato não envolve apenas a obrigação de prestar, mas envolve também uma relação de conduta! A relação contratual nada mais é do que um contato social (), um contato na sociedade que une, vincula pessoas, contato onde necessariamente não se pode esquecer ou desrespeitar os deveres gerais de conduta, os deveres de atuação conforme a boa-fé e conforme o direito. Estes deveres de conduta (Verhaltenspflichten) obrigam-nos a todos, todos os dias, nas relações extracontratuais e muito mais nas relações contratuais. Liberar os contratantes de cumprir seus deveres gerais de conduta significaria afirmar que na relação contratual os indivíduos estão autorizados a agir com má-fé, a desrespeitar os direitos do parceiro contratual, a não agir lealmente, a abusar no exercício de seus direitos contratuais, a abusar de sua posição contratual preponderante (Machtposition), autorizando a ‘vantagem excessiva’ ou a lesão do parceiro contratual somente porque as partes firmaram um contrato, escolhendo-se mutuamente de maneira livre no mercado. A relação contratual não libera os contraentes de seus deveres de agir conforme a boa-fé e os bons costumes; ao contrário, a vinculação contratual os impõem, os reforça ! (...)

Assim, apesar de no Brasil consagrarmos a expressão alemã de deveres anexos ou secundários, enquanto contratuais, tratam-se de verdadeiras obrigações (obrigações acessórias, como os denominam os franceses), a indicar que a relação contratual obriga não somente ao cumprimento da obrigação principal (a prestação), mas também ao cumprimento das várias obrigações acessórias ou dos deveres anexos àquele tipo de contrato. O código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078/90, trouxe como grande contribuição à exegese das relações contratuais no Brasil a positivação do princípio da boa-fé objetiva, como linha teleológica de interpretação, em seu art. 4º., III, e como cláusula geral, em seu art. 51, IV, positivando em todo o seu corpo de normas a existência de uma série de deveres anexos às relações contratuais."

74. Essa nova visão socialista da teoria geral dos contratos – mais coerente e adequada à realidade das relações sociais e contratuais modernas, diga-se de passagem – considera o contrato como um instrumento que o Direito oferece para possibilitar a autoregulamentação dos interesses particulares. Não é, portanto, a vontade dos contraentes que se impõe à ordem jurídica; é a ordem jurídica, atuando pelas suas fontes (lei, costumes, analogia e princípios gerais de direito), que a reconhece e eventualmente a legitima, impondo limites à autonomia volitiva dos particulares.

75. O direito que rege as atuais relações socializadas dos contratos repensou e redescobriu o papel da lei, que deixa de ser meramente interpretativa ou supletiva, para ser cogente, protegendo determinados interesses sociais e servindo como elemento limitador do poder da vontade, conforme preceitua o artigo 1º., do Código de Defesa do Consumidor. E, se o objetivo da lei, regulamentando de forma cogente esse novo modelo sócio-jurídico, é proteger a boa fé do consumidor nas suas relações contratuais, é óbvio que o mesmo princípio deverá prevalecer sobre quaisquer manobras que visem, de qualquer forma, burlar os objetivos das avenças regulamentadas pela Lei n.º 8.078/90, enganar o consumidor ou tornar sem efeito as garantias legais conferidas àquela relação de consumo.

76. Claro está, portanto, que, para que se prevaleça o objetivo e o espírito da Lei n.º 8.078/90, há que se proteger o consumidor tanto dentro do contrato quanto fora dele, conforme se aduz do artigo 4º. da carta legal citada. Não há como admitir-se, portanto, que um fornecedor/vendedor possa escudar-se de um ônus contratual regulado pelo CDC – direito de ordem pública – utilizando-se maliciosamente de um outro contrato, de índole privada, e de um instituto de direito civil. O interesse particular, no que pertine às relações coletivas, difusas e de consumo, não pode se sobrepor ao público, principalmente quando se verifique a existência de sinais evidentes de fraude e de má-fé.

II.6 – DAS CLÁUSULAS ABUSIVAS NOS CONTRATOS

São os contratos de adesão, como os firmados entre os autores e a primeira requerida, terreno fértil para a inserção de cláusulas abusivas, em cujo socorro vem, não só o Código de Defesa do Consumidor, mas, também, o próprio Código Civil, em sua Lei de Introdução, e a uníssona doutrina e jurisprudência pátria.

78. As cláusulas abusivas, conforme ensina o mestre GUILHERME FERNANDO NETO, "não ferem somente o interesse do particular; atentam contra os interesses da coletividade" () e ensejam a proliferação de práticas econômicas nefastas, como a criação de cartéis, "em virtude das cláusulas contratuais gerais poderem ser elaboradas conforme acordo entre as empresas de determinado setor, favorecendo o nascimento de um monopólio de fato" ().

79. O mestre ORLANDO GOMES, de forma contundente, aborda o tema, dizendo que "a singularidade de sua estruturação [do contrato de adesão] não permite seja interpretado do mesmo modo que os contratos comuns, porque é relação jurídica em que há predomínio categórico da vontade de uma das partes", sendo de aceitar-se, "como diretriz hermenêutica, a regra segundo a qual, em caso de dúvida, as cláusulas do contrato de adesão devem ser interpretadas contra quem as ditou" ().

80. Transformou-se em lugar comum a inclusão de cláusulas constitutivas de mandatário em contratos de financiamento para aquisição da casa própria e de incorporação imobiliária, o que denota de forma evidente e notória que determinados grupos econômicos desvirtuaram o papel que lhes cabia no contexto social, desviando-se, na faculdade de predispor as cláusulas contratuais, do respectivo fim.

81. Tais cláusulas, em nome dos "poderes" que são "outorgados" nesses contratos de adesão a essas empresas, introduzem novas condições ou gravames no contrato, ou "autorizam-nas" a realizarem novas avenças, exteriores ao contrato, mas sobre ele incidentes, normalmente de forma contrária aos interesses da parte aderente.

82. Os doutrinadores são uníssonos ao afirmar que essas cláusulas abusivas, em contratos de consumo, não têm como prosperar. O grande mestre CAIO MÁRIO discorre com bastante propriedade sobre o assunto, senão vejamos:

"Numa sensível aproximação com os requisitos etiológicos do instituto da lesão, o Código do Consumidor fulmina de nulidade as cláusulas que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas ou exageradamente desvantajosas para o consumidor, atendendo contra a boa-fé ou a equidade (art. 51, n.º IV); e ainda as que ameaçam o ‘equilíbrio contratual’, isto é, afrontam o princípio da justiça comutativa."

83. Prossegue, ainda o renomado mestre em sua dissertação a respeito da matéria:

"Acobertando este último [o consumidor] contra os riscos de uma tecnicalidade hermenêutica rigorosa, que venha a desaguar na sua desproteção, o art. 47, quando desenvolve os princípios destinados à ‘proteção contratual’ (capítulo VI da lei), enuncia um preceito que se impõe às partes, e particularmente ao juiz perante quem se litigar: ‘As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor’. Vale dizer: levada ao juiz uma questão, cujo deslinde repouse na interpretação do contrato, cabe ao hermeneuta aplicar as regras de seu entendimento, tendo em vista a desigualdade econômica dos contraentes. Ao enunciar o preceito contido no art. 47, não foge o Código de Defesa do Consumidor daquele princípio geral enunciado no art. 5º. da Lei de Introdução ao Código Civil: ‘Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum’. Ao determinar, no art. 47, do Código do Consumidor, a interpretação favorável ao consumidor, atendeu ao prescrito na Lei de Introdução, que, no dizer de Oscar Tenório, ‘confiou ao juiz a missão de vender óbices criados por leis prenhes de individualismo’ (Lei de Introdução ao Código Civil, n.º 200, p. 162, da edição de 1965)."

84. Se o contrato é de adesão e envolve relação de consumo – como ocorre in casu –, nem mesmo o princípio da autonomia da vontade terá o condão de legitimar cláusula abusiva em seu bojo, uma vez que, em decorrência da sistemática da Lei n.º 8.078/90, tais dispositivos não nulos de pleno direito.

85. DORALICE MARIANO DA SILVA, também com muita ênfase e propriedade, se manifesta sobre o tema, conforme se vê de suas palavras, adiante transcritas, in verbis:

"Ademais, o Código de Defesa do Consumidor alterou substancialmente o princípio pacta sunt servanda. Portanto, o princípio da autonomia da vontade choca-se com o controle das cláusulas abusivas instituído pelo referido Código e não pode ser invocado pela parte que se encontra em condições de exercer o monopólio das cláusulas contratuais, mesmo porque a massificação dos contratos torna praticamente impossível a liberdade contratual do consumidor."

Sobre o autor
Ronald W. Mignone

advogado em Brasília

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIGNONE, Ronald W.. Ação contra Encol e Banespa para nulidade de hipoteca. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 30, 1 abr. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16020. Acesso em: 24 dez. 2024.

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