4. DO OBJETO DA PRESENTE AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE. DA VIOLAÇÃO
À LETRA DA CARTA ESTADUAL.
4.1 DA
inconstitucionalidade DA LEI nº 6.075/97. DA VIOLAÇÃO AO ART. 105, II, "B" DA
Constituição Estadual. DO VÍCIO DE INICIATIVA.
A questionada Lei nº 6.075/97 estabelece, em seu art. 1º, § 3º, que "o não cumprimento do estabelecido no parágrafo anterior se constitui em transgressão disciplinar, sujeitando o responsável imediato pelo órgão em que o preso se encontre recolhido à repreensão e, em caso de reincidência, às penas de suspensão e demissão".
Como se nota, a referida lei clara e expressamente cria hipóteses de sanção administrativa para policiais civis, quando desobedecerem estes os preceitos de garantia à imagem e intimidade de presos, vítimas e testemunhas sob sua responsabilidade.
Ao assim dispor, invade a referida Lei matéria própria do regime jurídico especial desses agentes estatais, cuja iniciativa de lei disciplinadora, segundo a Constituição Estadual, é privativa do Governador do Estado, nos termos do art. 105, inciso II, alínea "b", da Constituição Estadual.
Assim, a Lei n.º 6.075/97, cujo projeto partiu da lavra de Deputado Estadual, fere formalmente a Constituição Estadual ao tratar de matéria de competência privativa do Governador do Estado, materializando flagrante vício de iniciativa.
Este vício, pois, traduz-se pela propositura equivocada do projeto que, posteriormente, pode vir a se transmudar em lei. A proposta de lei, assim, não é apresentada por quem tem competência para fazê-lo, acarretando a inconstitucionalidade da lei desde que iniciado o processo legislativo.
Não se venha argumentar que a sanção governamental, como a que foi aposta pelo Exmo. Chefe do Executivo Estadual à Lei ora questionada, supre o vício mencionado. A iniciativa não é algo que esteja à disposição do seu titular, podendo ele delegá-la a quem lhe aprouver; na realidade, como toda regra constitucional sobre a atividade de agentes políticos, cuida-se mais de um dever, uma obrigação funcional, que de um direito ou poder. Nesse sentido, assim se expressa a doutrina pátria, de forma quase unânime:
"Acreditamos não ser possível suprir o vício de iniciativa com a sanção, pois tal vício macula de nulidade toda a formação da lei, não podendo ser convalidado pela futura sanção presidencial [leia-se, no caso, governamental]." (MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 1997, p. 402 - grifo nosso)
"Pondere-se, contudo, com Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que sustenta a tese da não-convalidação, que a validade de qualquer ato derivado da Constituição depende de sua concordância com a Constituição. Depende, mais precisamente, da observância dos requisitos formais e substanciais estabelecidos na Constituição. E conclui: no plano estritamente jurídico, a tese da convalidação contradiz um dos postulados que a doutrina italiana aponta a respeito do ato complexo. De fato, segundo o ensinamento dessa doutrina, "não é válido um ato complexo se não são válidos todos os elementos que devem concorrer à sua formação". Destarte, não sendo válida a iniciativa, seria inválida a lei, apesar da sanção posterior" (CARVALHO, Kildare Gonçalves. Técnica Legislativa. Belo Horizonte: Del Rey, 1993, p. 118/119 - grifos nossos)
"Há inconstitucionalidade formal quando a lei foi elaborada em desacordo com as normas previstas para sua criação, incluindo-se a incompetência do órgão que a emitiu (...). Constata-se, portanto, relação entre o controle de constitucionalidade e as regras do processo legislativo, pois, se violadas, haverá a aprovação de lei inconstitucional." (CARVALHO, Kildare Gonçalves. Op. cit., p. 117 - grifos nossos)
"Tradicionalmente, inclui-se no conceito de vício formal a chamada inconstitucionalidade orgânica, consistente na falta de competência do agente de produção normativa." (RAMOS, Elival da Silva. A Inconstitucionalidade das Leis: vício e sanção. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 150 - grifos nossos)
"É com referência à reserva de iniciativa que surge a maior parte dos casos de inconstitucionalidade formal, consistindo no oferecimento de projeto de lei por parte de integrante do Parlamento em matéria de iniciativa reservada a outros Poderes." (RAMOS, Elival da Silva. Op. cit., p. 158)
Demais disso, a jurisprudência da mais alta corte do país já decidiu, em abono da Súmula nº 5, que:
"A sanção não supre a falta de iniciativa ex vi do disposto no art. 57, parágrafo único, da Constituição, que alterou o direito anterior." (Revista Trimestral de Jurisprudência, 69/629)
Ora, quando a Constituição Estadual disciplina a competência para propor lei que disponha sobre os servidores públicos do Estado e seu regime jurídico, estabelece que tal lei é de "iniciativa privativa do Governador" (art. 105, II, b, CE/89), sem o concurso de mais nenhum órgão ou pessoa. Por conta disso, como demonstrado, padece de inconstitucionalidade por vício de iniciativa a Lei n.º 6.075/97, o que, requerem as proponentes, seja declarado por esse E. Tribunal, nos termos do art. 162, §§ 2º e 5º da Constituição Estadual, c/c art. 156, §§ 1º e 2º do RITJE/PA.
4.2 DA inconstitucionalidade DA LEI nº 6.075/97. DA VIOLAÇÃO AO ART. 113, caput, e § 1º, II, DA Constituição Estadual. DA INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL DECORRENTE DE VÍCIO NO PROCEDIMENTO (INOBSERVÂNCIA DE QUORUM).
Ademais da demonstrada inconstitucionalidade da Lei n.º 6.075/97 por violação ao artigo 105, II, alínea "b" da Constituição Estadual, o mencionado texto normativo fere frontalmente o disposto no art. 113, caput, e § 1º, II da Carta Magna do Estado.
Com efeito, ao criar hipóteses de sanção administrativa para policiais civis, como já anteriormente demonstrado, adentrou a mencionada lei em matéria própria do regime jurídico especial desses agentes estatais, cujo disciplinamento é reservado pela Constituição Estadual a lei de natureza complementar.
Assim, a lei guerreada, revestindo forma de lei ordinária, disciplina questões que deveriam ser matéria de lei complementar. Desta forma, fere-se o procedimento que determina que lei complementar tem quorum reforçado (maioria absoluta), fazendo com que as disposições que a Lei nº 6.075/97 institui tenham sido julgadas por maioria simples do órgão legislador, facilitando sua aprovação.
Nesse sentido, a Constituição estipula que:
"Art. 113. As leis complementares e suas alterações serão aprovadas por maioria absoluta.
§ 1o. Dentre outras previstas nesta Constituição, consideram-se leis complementares:
(...)
II - as Leis Orgânicas do Ministério Público, da Procuradoria-Geral do Estado, da Defensoria Pública, do Tribunal de Contas do Estado , do Tribunal de Contas dos Municípios, do Magistério Público, da Polícia Civil e da Polícia Militar".
Como se disse acima, a referida lei tem status de lei ordinária, cujo quorum para aprovação é menos dificultado que o previsto para aprovação de lei complementar. Ainda conforme a CE, o quorum para aprovação de lei complementar é de maioria absoluta (art. 113, caput), havendo na aprovação da lei estadual em questão um claro vício de procedimento.
"Na fase constitutiva [do processo legislativo], a inconstitucionalidade formal apresenta-se, em geral, como decorrência da violação das normas estipuladoras de quorum para deliberação e do número de votos necessários à aprovação das proposituras." (RAMOS, Elival da Silva. Op. cit., p. 160)
"À luz da Constituição vigente, que não discrepa nesse ponto da anterior, lei complementar é a categoria de lei destinada a regular matérias expressamente indicadas, às quais o Constituinte pretendeu conferir maior estabilidade, caracterizando-se seu processo legislativo pela necessidade de maioria qualificada para a aprovação do projeto respectivo nas Casas do Congresso Nacional [ou na Assembléia Legislativa Estadual, conforme as trata em questão]" (RAMOS, Elival da Silva. Op. cit., p. 176)
"Lei complementar é, pois, toda aquela que contempla uma matéria a ela entregue de forma exclusiva e que, em conseqüência, repele normações heterogêneas, aprovada mediante um quorum próprio de maioria absoluta" (BASTOS, Celso Ribeiro. Lei complementar: teoria e comentários. São Paulo: Saraiva, 1985, p. 17)
Ora, com base em todos os argumentos ora evidenciados, é evidente que a Lei nº 6.075/97 padece de vícios formais que tornam-na expressamente inconstitucional, frente à Lei Maior do Estado do Pará. Como vícios indeléveis que são, as inconstitucionalidades demonstradas devem, pondera-se, ser declaradas por esse E. Tribunal, no exercício do controle concentrado de constitucionalidade que a própria Carta Magna Estadual lhe confere, através de seu art. 161, I, alínea "l".
Por outra, e para deixar ainda mais evidente a invasão de matéria reservada, aqui atacada, impende ressaltar, que a Lei Orgânica dos Policiais Civis do Estado do Pará já existe no ordenamento jurídico deste ente federativo. Trata-se da Lei Complementar n.º 22, de 15 de março de 1994, que "ESTABELECE NORMAS DE ORGANIZAÇÃO, COMPETÊNCIAS, GARANTIAS, DIREITOS E DEVERES DA POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DO PARÁ", como expressa o preâmbulo da mesma.
Ademais, é bom deixar claro que não se está discutindo, na presente ação, a justiça, a necessidade ou a legitimidade da proteção da imagem de presos, vítimas e testemunhas. Ir contra tal princípio de dignidade humana seria mesmo ofender a própria Constituição Estadual.
Como antes dito e necessário repisar apenas se questiona a atitude do legislador de, na tentativa de viabilizar a proteção pretendida, violar a Constituição do Estado do Pará, que proíbe a disciplina específica do regime jurídico dos Policiais Civis através de simples Lei Ordinária, ademais de todas as outras questões anteriormente tratadas.
Tanto prova que a Lei n.º 6.075/97 invadiu competência de lei complementar, que a mencionada Lei Orgânica dos Policiais Civis do Estado já prevê vários dispositivos para coibir possíveis abusos praticados por policiais, inclusive em desrespeito à imagem de presos, vítimas e testemunhas. São tais os referidos preceitos da Lei Complementar n.º 22 aplicáveis à espécie:
(...)
IV - zelar pela valorização da função policial e pelo respeito aos direitos do cidadão e da dignidade da pessoa humana;
(...)
VII - guardar sigilo sobre assuntos da administração a que tenha acesso ou conhecimento, em razão do cargo ou da função;
(...)
XIII - zelar pelos direitos e garantias fundamentais constitucionais;
(...)
CAPÍTULO II
Art. 74 - São transgressões disciplinares:
(...)
XIV - veicular por qualquer modo, notícias sobre serviço ou procedimento policial realizado ou em realização pela polícia civil, sem autorização de superior hierárquico;
(...)
XX - negligenciar ou omitir-se na guarda do preso, maltratá-lo ou usar de violência desnecessária no exercício da função policial (...);
(...)
XXXV - praticar ato lesivo da honra ou do patrimônio da pessoa natural ou jurídica, com abuso ou desvio de poder, ou sem competência legal;
(...)
SEÇÃO II
DAS RESPONSABILIDADES
Art. 75 - O policial civil responde civil, penal e administrativamente pelo exercício irregular de suas atribuições.
Art. 76 - São penalidades disciplinares:
I - repreensão;
II - Suspensão;
III - Demissão;
IV - Cassação de aposentadoria ou disponibilidade.
Art. 78 - A repreensão será aplicada por escrito, nos casos de violação de proibição constante do artigo 74, incisos IV e VI, e de inobservância de dever funcional previsto em lei, regulamentação ou norma interna que não justifiquem imposição de penalidade mais grave.
Art. 79 - A suspensão será aplicada em caso de reincidência das faltas punidas com repreensão e violação das demais proibições que não tipifiquem infração sujeita a penalidade de demissão, não podendo exceder de 90 (noventa) dias.
Art. 80 - (...)
(...)
§ 4º - São circunstâncias agravantes:
(...)
c) reincidência;
Art. 81 - A demissão será aplicada nos seguintes casos:
(...)
VII - Ofensa física, em serviço, a servidor ou particular, salvo em legítima defesa própria ou de outrém;
(...)
IX - Revelação de segredo do qual se apropriou em razão do cargo;
(...)
XIII - Transgressão dos incisos IX, XI, XIII, XIV, XV, XVI, XIX, XX, XXV, XXXIV, XXXV, do artigo 74;
Art. 84 - A demissão por infringência do artigo 81, inciso III, VII, incompatibiliza o ex-policial para nova investidura em cargo de policial civil, pelo prazo de cinco (05) anos.
Parágrafo Único - Não poderá retornar ao serviço na Polícia Civil, o ex-policial demitido por infringência do Art. 81, incisos I, II, IV, V, VI, VIII, IX, X, XI, XII e XIII.
Como já se viu, a lei estadual ordinária aqui impugnada, além de desnecessária pois trata de matéria já disciplinada por lei complementar estadual usurpou ainda competência privativa do Governador do Estado para dispor sobre o regime jurídico especial dos Policiais Civis do Estado, cuja iniciativa só ao Chefe do Executivo caberia e cujo quorum para aprovação deveria ser o próprio de lei complementar (maioria absoluta).
5. CONCLUSÃO.
É certo que a Lei Estadual nº 6.075/97, ao disciplinar de forma diferenciada como já exaustivamente demonstrado matéria constante de lei complementar estadual (Lei Orgânica dos Policiais Civis), criou uma verdadeira INSEGURANÇA JURÍDICA. Afinal,
"Se o autor se lança à empresa legislativa com uma propositura imperfeita, na expectativa de que outro parlamentar ou as comissões técnicas ou, ainda, o executivo, venham a participar na superação das imperfeições da matéria por ele apresentada, pode ter frustrada essa colaboração por uma tramitação omissa, cujo resultado será a introdução de um ato legislativo defeituoso no mundo jurídico." (GODOY, Mayr. Técnica Constituinte e Técnica Legislativa. São Paulo: LEUD, 1987, p. 130)
Esta insegurança, além de todos os motivos acima elencados, materializa-se por não se saber até o momento, enquanto não declarada por esse E. Tribunal a inconstitucionalidade do texto normativo ora guerreado, qual Lei (se a Orgânica ou a Ordinária) deve ser aplicada aos casos concretos submetidos à sua realidade. Daí, nasce a necessidade do presente apelo a esta Corte Constitucional Estadual, para que, além de disciplinar a matéria, declarando a inconstitucionalidade da Lei nº 6.075/97, conceda a suspensão cautelar dos efeitos da lei guerreada, comunicando em seguida tal decisão à Assembléia Legislativa do Estado, na conformidade das regras legais pertinentes.
Nestas condições, pedem as proponentes que essa E. Corte de Justiça receba e processe a presente Ação Direta de Inconstitucionalidade, na forma do art. 162 e §§ da Constituição Estadual, c/c arts. 152 e seguintes do RITJE/PA, para:
- liminarmente, deferir medida cautelar para suspensão imediata da execução da lei impugnada, conforme possibilita a própria Carta Magna Estadual;
- após deferida a medida pugnada, determinar a citação dos Exmos. Srs. Procurador-Geral do Estado e Procurador-Geral da Assembléia Legislativa, para que venham perante esse Tribunal defender os termos da lei atacada, conforme procedimento ditado pelo art. 162, § 4º da Constituição Estadual, c/c art. 153, § 2º do Regimento Interno desta Corte.
Assim, pedem ainda as proponentes que, cumpridas estas etapas processuais, prossiga o feito em seus ulteriores de direito até final decisão que declare incidentalmente a inconstitucionalidade da Lei nº 6.075/97 frente à Carta Magna Federal, conforme razões expendidas nos itens 3, 3.1 e 3.2; caso assim não entenda esse E. Tribunal o que somente se admite como mote ao debate requerem as proponentes a declaração expressa de total inconstitucionalidade da Lei nº 6.075/97 em face à Constituição Estadual de 1989, de acordo com as razões expressas nos itens 4, 4.1 e 4.2 da presente, em tudo observadas as formalidades legais.
São os termos em que, apresentando o pedido em três vias (art. 152, RITJE/PA), com os documentos anexos, pedem e esperam deferimento.
Belém, 12 de novembro de 1997.
Advogado - OAB/PA nº 6795