Excelentíssimo Senhor Ministro-Presidente do Supremo Tribunal Federal
Autor: Governador do Estado de Alagoas
Objeto: Lei Estadual 6.153, de 11 de Maio de 2000
Dispositivos Constitucionais Violados: art. 61, § 1º (cláusula da iniciativa reservada do Chefe do Executivo), art. 2º (princípio da harmonia e independência entre os Poderes de Estado), art. 84, incs. I e VI (competência privativa do Chefe do Poder Executivo para dispor sobre a organização e atribuições da administração direta) e art. 167, inc. I, e 169, §1º, (prévia dotação orçamentária para criação de programas e cargos)
EMENTA DA INICIAL: CONSTITUCIONAL. LEI ESTADUAL DE INICIATIVA DO LEGISLATIVO QUE CRIA NOVOS CARGOS E NOVAS ATRIBUIÇÕES À SECRETARIA DE EDUCAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE. As leis estaduais que criam novos cargos e estabelecem novas atribuições às Secretarias de Estado são de iniciativa reservada (privativa) do Chefe do Poder Executivo, ex vi do art. 61, §1º da CF/88. É, portanto, formalmente inconstitucional, por afronta à cláusula da iniciativa reservada e ao princípio da independência e harmonia entre os Poderes, Lei Estadual iniciada pelo Poder Legislativo, que cria programa coordenado e orientado pela Secretaria de Educação do Estado. Precedentes do STF.
O
GOVERNADOR DO ESTADO DE ALAGOAS, RONALDO AUGUSTO LESSA SANTOS, brasileiro, Engenheiro Civil, divorciado, com endereço na Cidade de Maceió, Alagoas, Palácio Marechal Floriano Peixoto, Praça dos Martírios, telefax nº (82) 326-5724, com fundamento no art. 103, inc. V, combinado com o art. 102, inc. I, alíneas "a" e "p", todos da Constituição Federal de 1988, regulamentados pela Lei 9.868/99, vem ajuizar perante este Colendo Tribunal de Justiça, Ação Direta de Inconstitucionalidade, com pedido de Medida Cautelar, no sentido de ser declarada a inconstitucionalidade da Lei Estadual nº 6.153, de 11 de maio de 2.000, pelas razões a seguir alinhadas:1.Breves considerações acerca da norma impugnada
m 11 de maio de 2.000, a Assembléia Legislativa do Estado de Alagoas promulgou a Lei Estadual nº 6.153, que "cria no âmbito da Rede Estadual e Particular de ensino de 1º e 2º Graus do Estado o programa ´Leitura de Jornais e/ou periódicos em sala de aula´", coordenado e orientado pela Secretaria de Educação do Estado, a qual teria o prazo de 90 (noventa) dias, a contar da aprovação da Lei, para criar em seus quadros um equipe especial para possibilitar o bom desempenho do programa.Vale ressaltar que, anteriormente, ao ser o Projeto de Lei nº 67/99, que deu origem a referida Lei Estadual, submetido à sanção governamental, houve por bem o Governador do Estado vetá-lo integralmente, com base no art. 89, §1º, da Constituição Estadual, tendo em vista a manifesta inconstitucionalidade do referido Projeto de iniciativa do Poder Legislativo, mais precisamente da Deputada Estadual Fátima Cordeiro. Mesmo assim, rejeitando o veto governamental na forma do art. 89, §4º, da Magna Lei Estadual, a Assembléia Legislativa, como já se afirmou, promulgou a Lei sob o nº 6.153, no dia de maio de 2.000, publicando-a no Diário Oficial de 18 de maio de 2.000.
Eis integralmente o teor da vergastada norma:
Lei nº 6.153, de 11 de maio de 2000.
Cria no âmbito da Rede Estadual e Particular de ensino de 1º e 2º Graus do Estado o programa "Leitura de Jornais e/ou periódicos em sala de aula" e dá outras providências.
Art. 1º - Fica criado o programa "Leitura de Jornais e/ou periódicos em sala de aula", coordenado e orientado pela Secretaria de Educação do Estado.
Art. 2º - O programa será desenvolvido a partir da promulgação desta Lei, englobando o 1º e 2º graus dos estabelecimentos de ensino que compõe a rede oficial e particular do Estado de Alagoas.
Art. 3º - Com a avaliação do programa no primeiro ano de implantação, "Leitura de Jornais e/ou periódicos em sala de aula" deverá ser efetivado em caráter permanente no currículo escolar da rede oficial e particular de ensino.
Art. 4º - Estarão em condições de participar do programa "Leitura de Jornais e/ou periódicos em sala de aula" todas as empresas que, no Estado de Alagoas, editam jornais com circulação diária e cobertura mínima de assuntos políticos nacionais e locais, de assuntos internacionais, de economia, de esportes e da cultura nacional e local.
Art. 5º - O programa "Leitura de Jornais e/ou periódicos em sala de aula" terá por objeto orientar os alunos para o exercício da cidadania, mediante principalmente:
I - a formação do hábito de leitura e a convivência com o pluralismo de idéias;
II - a estimulação do senso crítico;
III - o conhecimento de assuntos que dizem respeito ao desenvolvimento da sociedade e do bem-estar coletivo do indivíduo, sua história e tradições, direitos e deveres, necessidade de aspirações, resultando a indução e preparo para a sua participação na coletividade;
IV - a vivência cultural e dos processos científicos e tecnológicos.
Art. 6º - As empresas que editam jornais no Estado ficam obrigadas a atender as unidades da rede pública de ensino com 02 (dois) exemplares semanais para cada escola, mediante solicitação por escrito da diretoria.
PARÁGRAFO ÚNICO - Cada escola da rede particular deverá adquirir, no mínimo, 04 (quatro) exemplares semanalmente, de acordo com as necessidades apresentadas pela coordenação de ensino de cada estabelecimento.
Art. 7º - Para o bom desempenho do programa, a Secretaria de Educação criará em seus quadros, no prazo de 90 (noventa) dias, contados da aprovação desta Lei, uma equipe especial para orientar os professores das escolas públicas e particulares.
Art. 8º - Fica o Poder Executivo autorizado a abrir crédito em favor das escolas públicas para permitir a aquisição de exemplares suplementares ao quantitativo que trata o artigo 6º.
Art. 9º - O Poder Executivo regulamentará a presente Lei no prazo máximo de 90 (noventa) dias, a contar da data da publicação.
Art. 10 - A presente Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 11 - Revogam-se as disposições em contrário.
SALA DAS SESSÕES DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE ALAGOAS, em Maceió, 11 de maio de 2000.
Conforme será comprovado, a referida norma estadual, malgrado o nobre escopo a que visa, viola, sem receio de equívoco, frontalmente a Constituição Federal em diversos dispositivos, padecendo, por conseguinte, de insanável vício formal de inconstitucionalidade, haja vista a sua desarmonia com o modelo federal atinente ao processo legislativo, máxime a cláusula da iniciativa reservada, bem assim por violar o princípio da separação e harmonia entre os poderes, entre outros preceitos constitucionais. É o que se demonstrará.
2.Os fundamentos jurídicos do pedido
"Admitir a interpretação de que o legislador pode a seu livre alvedrio legislar sem limites, seria pôr abaixo todo o edifício jurídico e ignorar, por inteiro, a eficácia e majestade dos princípios constitucionais. A Constituição estaria despedaçada pelo arbítrio do legislador" Paulo Bonavides (Curso de Direito Constitucional. Malheiros, São Paulo, 1993 p. 354)
A inconstitucionalidade de uma norma, de acordo com os ensinamentos da melhor doutrina, pode ocorrer tanto pela violação substancial de preceitos da Lei Fundamental quanto pela não observância de aspectos técnicos no procedimento de formação da norma (inconstitucionalidade formal).
Como explica o emérito GILMAR FERREIRA MENDES,
"costuma-se proceder à distinção entre inconstitucionalidade material e formal, tendo em vista a origem do defeito que macula o ato questionado. Os vícios formais afetam o ato normativo singularmente considerado, independentemente de seu conteúdo, referindo-se, fundamentalmente, aos pressupostos e procedimentos relativos à sua formação. Os vícios materiais dizem respeito ao próprio conteúdo do ato, originando-se de um conflito com princípios estabelecidos na Constituição" (Controle de Constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos. Saraiva, São Paulo, 1990, p. 28).
Tratando da inconstitucionalidade formal, esclarece o grande constitucionalista e doutor em direito pela Universidade de Münster que "os vícios formais traduzem defeito de formação do ato normativo, pela inobservância de princípio de ordem técnica ou procedimental ou pela violação de regras de competência. Nesses casos, viciado é o ato nos seus pressupostos, no seu procedimento de formação, na sua forma final" (Ob Cit. p. 32).
A Lei Estadual 6.153/00, que foi iniciada por ato do Poder Legislativo, padece forçosamente de vício formal de inconstitucionalidade, haja vista a não observância de um pressuposto fundamental à sua formação, qual seja, a iniciativa reservada, pois, competindo ao Chefe do Poder Executivo Local a iniciativa das leis referentes à organização administrativa das Secretarias de Estado e suas respectivas atribuições, não poderia a Casa Legislativa, por si só, deflagrar procedimento legislativo tendente a criar novas atribuições à Secretaria de Educação. Vejamos.
2.2.O vício de iniciativa e a observância obrigatória por parte dos Estados das normas referentes ao processo ao processo legislativo
"A cláusula de reserva pertinente ao poder de instauração do processo legislativo traduz postulado constitucional de observância compulsória pelos Estados-membros. Incide em vício de inconstitucionalidade formal a norma legal estadual que, oriunda de iniciativa parlamentar, versa matéria sujeita a iniciativa constitucionalmente reservada ao Chefe do Poder Executivo" (ADIMC 766-RS, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27/05/94)
A iniciativa para deflagração do processo legislativo pode ser ampla (geral) ou reservada, na forma estatuída na Lei Fundamental.
No tocante aos casos em que se admite a iniciativa geral, qualquer ente legitimado constitucionalmente possui capacidade para iniciar o processo de formação de uma lei. No âmbito federal, podem iniciar esse processo o Presidente da República, Deputado, Senador, Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, do Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal, os Tribunais Superiores (quando se tratar de normas atinentes ao Judiciário) e o Procurador-Geral da República (quando se tratar de normas referentes ao Ministério Público Federal) e os cidadãos, na forma estabelecida pela Constituição (art. 61, da CF/88).
A iniciativa reservada, por sua vez, que tem por escopo concretizar o princípio da separação e harmonia entre os Poderes, é disciplinada em artigos esparsos na Carta Magna. Assim, o art. 61, em seu §1º, da CF/88, cuida em elencar as hipóteses de iniciativa privativa (i.e., reservada) do Presidente da República, nos seguintes termos:
"Art. 61...... ............................................................
§1º - São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:
I - fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas;
II - disponham sobre:
a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta
e autárquica ou aumento de sua remuneração;b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios;
c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade, aposentadoria;
d) organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;
e) criação, estruturação e atribuições dos Ministérios e órgãos da administração Pública;
f) militares das Forças Armadas, seu regime jurídico, provimento de cargos, promoções, estabilidade, remuneração e transferência para a reserva" - grifaram-se as partes que nos interessam.
É preciso esclarecer que os dispositivos da Constituição Federal relativos ao processo legislativo são de compulsória observância pelos demais entes da Federação, na conformidade do entendimento do Colendo Supremo Tribunal Federal. Fulgura, no caso, o princípio da simetria, pelo qual as normas constitucionais federais que regulam o processo legislativo, por demarcarem as relações entre os poderes e serem normas cogentes, de ordem pública, são limitações implícitas que hão de ser, forçosamente, observadas pelos Estados-membros, Distrito Federal e Municípios [1]. É o que se infere do art. 25, da Constituição Federal, que dispõe:
"Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição" - grifou-se.
A lição da professora e juíza federal cearense GERMANA DE OLIVEIRA MORAES é no mesmo sentido:
"O Supremo Tribunal Federal, cônscio de que ´esse tema revela-se essencial à organização político-administrativa do Estado brasileiro e que da resolução dessa questão central emergirá a definição do modelo de Federação a ser efetivamente observado nas práticas institucionais´ (Min. Celso de Mello, ADIN nº 216-PB, in RTJ 146/p. 368), já se manifestou pelo menos duas vezes sobre essa questão, quando determinou a suspensão liminar de preceitos inscritos em Constituições estaduais que não hajam observado os padrões jurídicos federais, de estatura constitucional, concernentes ao processo legislativo (ADIN 216-3 PB, Rel. Min. Francisco Rezek, in DJ de 07.05.93, RTJ/STF 146/388 e LEX STF 169/32 e RTJ STF 138/64)" (O Controle Jurisdicional da Constitucionalidade do Processo Legislativo. Dialética, São Paulo, 1998, p. 64).
De fato, o Supremo Tribunal Federal, desta feita na Ação Direta de Inconstitucinalidade nº 805 (extraído da Revista de Direito Administrativo nº 215. Renovar, Rio de Janeiro), foi incisivo ao tratar da matéria:
"PROCESSO LEGISLATIVO. CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. DIREITO DE INICIATIVA. Processo Legislativo: emenda de origem parlamentar, da qual decorreu aumento da despesa prevista, a projeto do Governador do Estado, em matéria reservada do Poder Executivo. Inconstitucionalidade, visto serem de observância compulsória pelos Estados as regras básicas do processo legislativo da Constituição Federal - entre as quais as atinentes à reserva de iniciativa - dada a sua implicação com o princípio fundamental da separação e independência dos Poderes" (grifou-se).
E mais:
"I. Processo legislativo da União: observância compulsória pelos Estados de seus princípios básicos, por sua implicação com o princípio fundamental da separação e independência dos Poderes: jurisprudência do Supremo Tribunal" (ADI nº. 774-RS, rel. Min. Sepúlveda Pertence)
"I. Processo legislativo: modelo federal: iniciativa legislativa reservada: aplicabilidade, em termos, ao poder constituinte dos Estados-membros. 1. As regras básicas do processo legislativo federal são de absorção compulsória pelos Estados-membros em tudo aquilo que diga respeito — como ocorre às que enumeram casos de iniciativa legislativa reservada — ao princípio fundamental de independência e harmonia dos poderes, como delineado na Constituição da República" (ADIn nº 276, rel. Sepúlveda Pertence)
Em face disso, percebe-se facilmente que o procedimento de formação da Lei Estadual 6.153/00 é viciado desde de a origem (nulidade ab initio ou ab ovo), porquanto somente o Governador do Estado (Chefe do Poder Executivo Local) poderia iniciá-lo, nunca a própria Casa Legislativa. É que a norma estadual, ao criar o programa "Leitura de Jornais e/ou periódicos em sala de aula", atribuiu à Secretaria de Educação do Estado a competência para coordená-lo e orientar a sua criação (art. 1o da Lei Estadual 6.153/00). Ora, a partir do instante em que se pretende ver promulgada uma Lei na qual se conferem atribuições a uma Secretaria de Estado (que corresponde ao Ministério, na órbita federal), a iniciativa para a proposição do Projeto que dará origem a essa Lei perpassa, forçosamente, ao chefe do Poder Executivo, que detém, privativamente, a prerrogativa de iniciar o procedimento de formação de Leis que tenham por objeto fixar atribuições de Secretaria de Estado e dispor sobre organização administrativa, serviços públicos e pessoal de administração do Poder Executivo. A norma que não atende a esse pressuposto de validade há de ser considerada inconstitucional e, portanto, expurgada do ordenamento jurídico.
A formação da Lei Estadual ora guerreada, portanto, seria subordinada à vontade exclusiva do Governador do Estado, que é o titular privativo da iniciativa das Leis de que trata, mutatis mutandis, o art. 61, § 1º, da Constituição Federal. Em outras palavras: somente o Governador do Estado poderia propor o início de um processo legislativo, cujo objeto fosse conferir ou modificar as atribuições da Secretaria de Educação. Aliás, completando o dispositivo constitucional já citado, o art. 84 da Magna Carta enumera as competência privativas do Presidente da República, entre as quais destacam-se:
"Art. 84 - Compete privativamente ao Presidente da República:
I - omissis...
II - exercer, com auxílio dos Ministros de Estado, a direção superior da administração federal;..... ...............
VI - dispor sobre a organização e o funcionamento da administração federal, na forma da lei; (...)" [2] - grifou-se.
Percebe-se, com isso, que, nos termos instituído pela Constituição Federal, compete ao Poder Executivo a direção da administração pública (art. 84, inc. II). Em âmbito estadual, cabe, portanto, ao Governador a avaliação, a cada tempo, das condições do erário público para a assunção e cumprimento de programas, cuja coordenação será feita por uma Secretaria de Estado. Vincular o Poder Executivo, à revelia de sua vontade e ao léu das veleidades do legislativo, a modificar o quadro e as atribuições de uma Secretaria, viola o mais basilar princípio de um Estado de Direito, que é o da independência e harmonia entre os Poderes. Configura, em suma, prerrogativa do Chefe do Executivo, a cada vez, de acordo com a conveniência, oportunidade e disponibilidade de recursos, a iniciativa das leis referentes à organização e atribuições dor órgãos da administração direta, inclusive, obviamente, as Secretarias de Estado.
É preciso ressaltar que nem mesmo a sanção governamental retiraria da norma a pecha de inconstitucionalidade formal de que é maculada desde a origem, haja vista o posicionamento sufragado pelo Pretório Excelso no sentido de que a sanção aposta pelo Chefe do Executivo a projetos eivados pela usurpação de iniciativa reservada não possui eficácia convalidatória, isto é, não tem o condão de tornar o projeto válido [3].
Vislumbra-se, com isto, a manifesta inconstitucionalidade formal da malsinada Lei Estadual, tendo em vista a invasão, pelo legislador ordinário estadual, de competência assegurada pela Constituição Federal, ao Chefe do Poder Executivo.
2.3.O direito de iniciativa e a o princípio da separação e harmonia entre os poderes
"O constituinte, ao determinar que apenas quem administra pode ter a atribuição para a iniciativa, reduziu o risco de uma utilização mais política que econômica ou financeira da faculdade de criação de cargos ou aumento de vencimentos" Ives Gandra Martins [4]
O que se observa, desta forma, é que existe mesmo um direito constitucional, cujos titulares são os Chefes dos Poderes Executivos Federal e Locais, de deflagrarem os processos legislativos naquelas matérias a eles reservadas pelo art. 61, §1º, da Constituição Federal. A par desse direito, existe sinalagmaticamente um dever por parte das Casas Legislativas Federais e Locais de não principiar os debates de questões atinentes privativamente à iniciativa dos Chefes do Executivo. E por que isso ocorre? Por que há matérias elencadas que são de competência privativa do Presidente da República ou dos Governadores de Estados?
A essa pergunta nos responde os sábios juristas CELSO RIBEIRO BASTOS e IVES GANDRA MARTINS:
"É que sobre tais matérias tem o Poder Executivo melhor visão do que o Legislativo, por as estar gerindo. A Administração da coisa pública, não poucas vezes, exige conhecimento que o Legislativo não tem, e outorgar a este poder o direito de apresentar os projetos que desejasse seria oferecer-lhe o poder de ter iniciativa sobre assuntos que refogem a sua maior especialidade.
Se tal possibilidade lhe fosse ofertada, amiúde, poderia deliberar de maneira desastrosa, à falta de conhecimento, prejudicando a própria Administração Nacional" (Ob. Cit. p. 387).
Na hipótese discutida nos presentes autos, a Assembléia Legislativa, usurpando a privativa atribuição do Governador do Estado, discutiu, aprovou e promulgou uma Lei, cuja iniciativa competia unicamente ao Chefe do Executivo. (Lembre-se que a norma confere novas atribuições à Secretaria Estadual de Educação, impondo, ainda, a criação de uma equipe especial visando melhor cumprir o programa, na forma dos arts. 1º e 7º da norma fulminada). Tal usurpação por parte da Assembléia Legislativa cerceia a atuação discricionária do Governador de Estado na instauração - que lhe é privativa - do correspondente procedimento de formação da Lei, configurando uma clara violação ao princípio da separação e harmonia entre os Poderes, que a cláusula de iniciativa reservada visa justamente preservar. A presente ação, por conseguinte, tem por desiderato não só tutelar e salvaguardar a harmonia da ordem jurídica objetiva, mas, da mesma forma, visa a propiciar a defesa da esfera de direitos, ou seja, da ordem jurídica subjetiva decorrente da norma consagradora da cláusula da iniciativa reservada, cujo exercício fora usurpado pela Assembléia Legislativa.
Conforme o ilustrado MIN. CELSO DE MELLO já manifestou, em voto proferido na ADIn 1666-1 - AL (D.J. 16.06.92), a vulneração ao princípio constitucional da iniciativa reservada de formação das leis
"opera uma situação de claro conflito hierárquico-normativo entre a regra impugnada e o postulado proclamado pela Carta da República, que impõe, em caráter condicionante, a subordinação jurídica dos Estados-membros, no desempenho de suas funções constituintes decorrentes, aos princípios nela proclamados, dentre os quais avulta, por sua irrecusável importância, o princípio da privatividade na instauração do processo legislativo, que constitui, por sua essência mesma, um dos consectários mais expressivos do postulado da separação de poderes que, hoje, configura um dos núcleos temáticos irreformáveis da nova ordem constitucional" (p. 50).
Realmente, houve, in casu, uma indevida interferência por parte do Poder Legislativo na organização do Poder Executivo. Por via de conseqüência, o dispositivo estadual indigitado é irremediavelmente incompatível com o princípio da independência e harmonia entre os Poderes do Estado, expresso no art. 2º da Constituição Federal.
2.4.A prévia dotação orçamentária e a iniciativa reservada do chefe do executivo em matéria orçamentária
"Ninguém pode, duradouramente, despender mais do que ganha - senão no limite de reservas anteriormente constituídas que, nesse caso, se dissolverão progressivamente, e do crédito que, porventura, tenha o dilapidador de recursos, que igualmente se extinguirá, ante excessos de sua utilização. Quer as reservas existentes, quer o crédito de que disponha o pródigo, repita-se, rapidamente se esgotarão, quando forem utilizados imoderadamente" Ives Gandra Martins [5]
A par do que foi exposto, a norma estadual macula ainda a Constituição Federal em dois dispositivos: no art. 167, inc. I, e 169, §1º.
Eis o que dispõe os referidos textos constitucionais:
"Art. 167 - São vedados:
I - o início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual; (...)" [6].
"Art. 196...... ....................................................................
§ 1º - A concessão de qualquer vantagem ou aumento de remuneração, a criação de cargos, empregos e funções ou alterações de estrutura de carreiras, bem como a admissão ou contratação de pessoal, a qualquer título, pelos órgãos e entidades da administração direta ou indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo poder público, só poderão ser feitas:
I - se houver prévia dotação orçamentária suficiente para atender às projeções de despesa de pessoal e aos acréscimos dela decorrentes;
II - se houver autorização específica da lei de diretrizes orçamentárias, ressalvadas as empresas públicas e as sociedades de economia mista" [7] (grifamos).
Esclareça-se que as Leis Orçamentárias (plano plurianual, diretrizes orçamentárias e orçamentos anuais) são todas de iniciativa do Poder Executivo, por força do art. 165 da CF/88.
Como explicam CELSO RIBEIRO BASTOS e IVES GANDRA MARTINS:
"O princípio se justifica. As Casas Legislativas estão preparadas para o exercício de funções pertinentes à produção de leis, mas não possuem o nível de informações pertinentes à Administração. Conhecem as questões administrativas à distância, exercendo, de um lado, nítido papel de fiscalização e de representação popular, mas estando inabilitadas para o conhecimento próprio das necessidades cotidianas da Administração, inclusive no que diz respeito aos problemas que lhe são peculiares" (Comentários à Constituição do Brasil. 6ª vol. Tomo II, Saraiva, 1995, p. 176/177).
Dito isto, infere-se que a Lei Estadual 6.153/00, ao criar um programa, impondo a contratação de novos servidores e, inevitavelmente, o dispêndio de quantias pecuniárias por parte do Estado, violou o princípio da prévia dotação orçamentária e tolheu do Chefe do Executivo a competência para dirigir e conduzir a execução orçamentária.
Impõe-se, em face de tudo o que foi exposto, a imediata eliminação da Lei Estadual vergastada do ordenamento jurídico, mediante a declaração de sua inconstitucionalidade, e o conseqüente reconhecimento de sua nulidade.