Excelentíssimo Senhor Desembargador Federal Presidente do Tribunal Regional Federal da 2a Região
THIAGO BOTTINO, advogado, inscrito na OAB/RJ sob o no 102.312, com escritório na Av. xxxxxxxx, Rio de Janeiro, vem a Vossa Excelência, nos termos do artigo 5º, inciso LXVIII, da Constituição Federal, e artigos 647 e seguintes do Código de Processo Penal impetrar a presente ordem de
H A B E A S C O R P U S
rogando a concessão de LIMINAR para suspender o andamento da ação penal até o julgamento deste writ, impetrado em favor de FULANA, brasileira, casada, desempregada, portadora da carteira de identidade nº xxxxxxxxx, residente na xxxxxxxxxxxxxxx, denunciada nos autos da ação penal de número xxxxxxxxxxxxx, em trâmite perante o juízo da 5a Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, ora apontado como autoridade coatora.
I – PRELIMINARMENTE
Da intimação para sustentação oral
O Impetrante manifesta a intenção de sustentar oralmente a ordem pleiteada, requerendo, para tanto, sua intimação por publicação, na forma dos artigos 174 e 175 do Regimento Interno desse Egrégio Tribunal Regional Federal. Trata-se de medida que mais se coaduna com o princípio constitucional da ampla defesa e o pleno exercício do múnus público do Impetrante (art. 133, CF).
A importância da sustentação oral para a amplitude da defesa, bem como o entendimento de que a supressão dessa faculdade é caracterizadora de constrangimento ilegal, já foi proclamada pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal, como se vê dos acórdãos abaixo.
"HABEAS-CORPUS. RECURSO ORDINÁRIO.
- Ordem concedida para que a Corte de origem proceda a novo julgamento da causa, assegurada ao recorrente a sustentação oral.
(STJ – RHC 10.932-SP – 6a Turma – Rel. Min. Fontes de Alencar – DJ 01/04/2002)
"RECURSO DE HABEAS-CORPUS. Cerceamento de defesa. SUSTENTAÇÃO ORAL OBSTADA.
1. Embora a sustentação oral seja mera faculdade deferida à defesa, se o defensor manifesta expressamente seu interesse em valer-se desse ato facultativo e tal oportunidade lhe é obstada, tem-se configurado o cerceamento de defesa. Precedentes.
2. Recurso de habeas-corpus provido.
(STF – RHC 79.783-1 – 2a Turma – Rel. Min. Maurício Corrêa – DJ 12/05/2000)
II – DOS FATOS
A Paciente foi denunciada por suposta prática do delito tipificado no art. 297, do Código Penal (Doc. nº 1), sendo a inicial recebida pela autoridade coatora, que designou interrogatório para o dia 13 de agosto de 2002 (Doc. nº 2).
FULANA foi funcionária (por cerca de dez anos) da empresa XXXXX Ltda. Essa empresa contratou com o ENTE PÚBLICO "TAL" a venda de produtos e serviços de informática. O contrato estabelecia que os produtos adquiridos seriam pagos imediatamente, enquanto os serviços prestados seriam pagos mês a mês, logo após a respectiva prestação (Doc. nº 3, fls. 5/6).
Iniciados em janeiro de 1999, os serviços foram regularmente prestados durante seis meses, ininterruptamente. Já a contra-prestação do ENTE PÚBLICO "TAL" caracterizou-se pela impontualidade; o atraso no pagamento (descumprimento da obrigação contratual) ocorreu em todas as parcelas, como se vê na tabela abaixo.
Mês da prestação do serviço |
Data da nota fiscal |
Data do pagamento |
Tempo de atraso no pagamento |
Janeiro/99 |
21/01/99 |
22/03/99 |
60 dias (Doc. nº 3, fls. 25) |
Fevereiro/99 |
02/03/99 |
28/04/99 |
60 dias (Doc. nº 3, fls. 57) |
Março/99 |
22/03/99 |
28/04/99 |
30 dias (Doc. nº 3, fls.57) |
Abril/99 |
23/04/99 |
24/06/99 |
60 dias (Doc. nº 3, fls.75) |
Maio/99 |
21/05/99 |
28/07/2000 |
1 ano e 2 meses |
Junho/99 |
21/06/99 |
28/07/2000 |
1 ano e 1 mês |
Por exemplo, a nota fiscal emitida em 21/01/99, referente aos serviços executados no mês de janeiro (Doc. nº 3, fls. 21) somente foi paga com um atraso de dois meses (Doc. nº 3, fls. 25). Vale frisar, ainda, que os softwares revendidos ao ENTE PÚBLICO "TAL", no valor total de R$ 36.700,00 (trinta e seis mil e setecentos reais), também foram pagos com atraso de dois meses (Doc. nº 3, fls. 20 e 25).
Para o recebimento dos valores junto ao ENTE PÚBLICO "TAL", a empresa deveria apresentar, na data do recebimento, determinados documentos, entre eles uma certidão negativa de débito do INSS, a qual é conferida àqueles que se encontram em situação regular perante a autarquia, tendo validade de seis meses a partir da emissão.
A empresa XXXXX Ltda. estava em situação regular até o dia 28 de março de 1999 (certidão emitida regularmente em 28 de setembro de 1998, Doc. nº 3, fls. 09), portanto em condições de receber as parcelas referentes aos meses de fevereiro e março. Ocorre que tais parcelas deixaram de ser pagas pelo ENTE PÚBLICO TAL na data aprazada, de modo injustificado, impedindo a empresa de receber pelos serviços prestados há dois meses.
Quando o numerário foi enfim disponibilizado, tendo sido a empresa avisada por meio de telefonema, verificou-se que estava vencida aquela certidão, de forma que seria necessário requerer a emissão pelo INSS de uma nova CND.
Porém, devido ao período de dificuldades financeiras que já vinha atravessando há algum tempo (que se comprova pelos extratos de conta bancária da empresa, Doc. nº 4), a empresa estava impossibilitada de obter tal certidão naquele mês de abril de 1999, pois não tivera condições materiais de manter o pagamento ao INSS em dia. Frise-se que a dificuldade na situação financeira da empresa fora, definitivamente, agravada pela falta de pontualidade nos pagamentos do ENTE PÚBLICO "TAL".
Precisando receber os valores que lhe eram devidos pelos serviços já prestados, a Paciente apresentou, em nome da empresa, uma certidão materialmente adulterada. A adulteração consistiu na modificação da data de expedição da certidão, estendendo sua validade de 28 de março para 28 de abril de 1999. Em razão da apresentação da certidão adulterada, a empresa finalmente logrou receber os valores devidos há quase três meses e que eram tão necessários ao restabelecimento do equilíbrio financeiro da empresa.
A primeira providência da Paciente, responsável pela administração financeira da sociedade, foi justamente regularizar a situação da empresa junto ao INSS, o que pode ser constatado pelo seguinte fato: o ENTE PÚBLICO "TAL" efetuou pagamento no dia 28/04/1999, e a empresa (que não estava regular junto ao INSS até então) obteve uma nova CND em 05 de maio de 1999 (Doc. nº 3, fls.69/71), sete dias depois. Foi esse documento permitiu à empresa receber, de modo regular, a parcela vincenda de abril/99 (Doc. nº 3, fls.65/66; 79).
Quando constatada a adulteração do documento utilizado (em consulta ao site da Previdência na Internet, Doc. nº 3, fls.71), as parcelas devidas remanescentes (referentes aos meses de maio e junho de 1999) foram abruptamente suspensas pelo ENTE PÚBLICO "TAL", apesar da empresa reunir as condições para o recebimento dos valores, sendo instaurado um procedimento administrativo para apurar o fato.
Na defesa escrita oferecida no procedimento administrativo, a empresa confirmou a adulteração do documento, a qual foi feita pela Paciente em atitude desesperada, desinteressada e absolutamente destituída de má-fé (Doc. nº 3, fls.102/103). A conduta da Paciente deveu-se principalmente à premência de receber os valores devidos pelo ENTE PÚBLICO "TAL", que estavam atrasados e à inexistência de prejuízo para a Administração Pública.
Foi pedido, ainda, que o TR ENTE PÚBLICO "TAL" E quitasse as parcelas devidas, o que só ocorreu após a conclusão do procedimento administrativo (mais de um ano depois da prestação dos serviços). Verifico-se, como é óbvio, que os serviços sempre foram regular e eficientemente prestados, não havendo razão para o ENTE PÚBLICO "TAL" continuar escusando-se do pagamento devido; e, ainda, que inexistira qualquer prejuízo para os cofres públicos.
Após a confirmação da adulteração pela Paciente, foi instaurado inquérito policial com o escopo de averiguar se ela havia agido por sua própria iniciativa ou se o fez orientada por seus empregadores, questão que já tinha sido esclarecida na defesa administrativa, e que foi corroborada no inquérito (Doc. nº 5).
III – ATIPICIDADE DA CONDUTA IMPUTADA – PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA – INEXISTÊNCIA DE PREJUÍZO.
Conforme leciona MAURICIO RIBEIRO LOPES (Princípio da insignificância no direito penal. São Paulo: RT, 1997, p. 82), foi Claus Roxin quem primeiro enunciou o princípio da insignificância (geringfügigkeitsprinzip), segundo o qual os delitos de baixa ou nenhuma lesividade social devem ser objeto de intervenção mínima do direito penal.
No Brasil, o princípio da insignificância é acolhido pela mais lúcida doutrina sobre o tema, valendo citar, por todos, o magistério do MINISTRO FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, (Princípios básicos de direito penal. 4a ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 133).
"Segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas".
Tal construção doutrinária encontra guarida na jurisprudência pátria, inclusive dos Tribunais Superiores:
"JUSTA CAUSA. INSIGNIFICÂNCIA DO ATO APONTADO COMO DELITUOSO.
Uma vez verificada a insignificância jurídica do ato apontado como delituoso, impõe-se o trancamento da ação penal por falta de justa causa. A isto direcionam os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade". (STF - HC n° 77.033/PE. 2a Turma. Rel. Min. Marco Aurélio. DJU 11/09/98)
Especificamente no que tange aos delitos de falsidade, a aplicabilidade do princípio da insignificância não se altera, como se vê dos julgados promanados desse Egrégio Tribunal Regional Federal da 2a Região:
"Penal – Crime de Falsidade Ideológica – Aplicação do Princípio da Insignificância
1) Passaporte brasileiro apresentando características de adulteração, utilização com finalidade de conseguir ingresso em território estrangeiro para obtenção de trabalho.
2) A ocorrência da deportação e a ausência de prejuízo justificar a aplicação do Princípio da Insignificância, com a conseguinte absolvição da ré.
3) Apelo a que se dá provimento."
(ACR nº 95.02.19393-8 – 3ª Turma – Rel. Des. Federal Valmir Peçanha – DJU 30.03.1998)
Os mais ilustres doutrinadores, que examinaram o tema, também afirmam que a falsidade deve, necessariamente, caracterizar um resultado danoso, um prejuízo, ou uma vantagem ilícita, pois do contrário não haverá ofensa a qualquer bem jurídico.
NELSON HUNGRIA, em sua obra mais consagrada (Comentários ao Código Penal, Vol IX, Forense: Rio de Janeiro, 1959, p. 257), leciona que a adulteração de documento não pode ser considerada criminosa quando desacompanhada da intenção de causar prejuízo, ou seja, de obter uma vantagem ilícita. Narra o doutrinador:
"Se não existe falsum sem a consciência de que se cria o risco de conculcar uma relação jurídica em detrimento alheio, não pode ser ele reconhecido quando se procede, não de lucro captando, mas de damno vitando. Fixando a segunda das hipóteses acima, ponderam, convincentemente, Chaveau et Helie, depois de acentuarem que a falsidade é um meio, pelo menos in potentia, para prejudicar outrem: ‘... se ela visa a um fim que não é criminoso e não acarreta prejuízo a quem quer que seja, o crime falha em um de seus elementos, e não tem mais existência em face da lei. Em verdade, na espécie, a falsidade não é uma simples alteração material desacompanhada de fraude, desde que o credor procura obter o pagamento de seu crédito com um meio imoral, contra a vontade do devedor. Mas nem toda fraude é constitutiva do crime: cumpre que ela tenha o efeito de tornar possível um prejuízo. Ora, na hipótese de que se trata, depara-se com uma alteração material mas em vão se procuraria a possibilidade de causar um prejuízo, pois a falsidade aí apenas proporciona o reembolso de um débito legítimo.’" (Grifamos)
No mesmo diapasão, ensina o jurista Sylvio Amaral, em premiada monografia exclusiva sobre o tema (Falsidade documental, 3a ed., RT: São Paulo, 1989, p. 69):
"É que a alteração consumada, para fundamentar a figura delituosa, precisa ser de verdade juridicamente relevante para o agente ou para a vítima, ou para ambos. A falsificação inócua, sem qualquer repercussão na órbita dos direitos ou das obrigações de quem quer que seja, não constitui ilícito penal, embora contenha em si ostensivamente o requisito da alteração da verdade documental.
O falso documental é crime contra a fé pública. Este sentimento de confiança coletiva só preocupa o Estado enquanto gira em torno de atos ou fatos capazes de gerar direitos e obrigações entre os cidadãos ou entre estes e o Estado, pois o exercício harmônico desses direitos pelos indivíduos é precisamente o escopo fundamental da organização política, que não colima, em última análise, senão o estabelecimento de um clima de respeito recíproco dos homens aos direitos de cada um.
O malefício que não cria, não modifica, não perturba, nem extingue direito algum, não afeta a fé pública, no conceito de lei, ainda que realmente viole a crença de toda uma coletividade em torno de determinado documento. Mesmo no Direito anglo-americano, substancialmente diverso do nosso em tantos temas fundamentais, vige o princípio acolhido pelos sistemas de que deriva a lei brasileira, da indiferença do Estado perante a alteração dolosa da verdade que não produz conseqüências estimáveis." (grifamos)
De fato, sendo inquestionável que a adulteração realizada pela Paciente não foi capaz de criar, alterar ou suprimir qualquer direito, bem como que de tal conduta não adveio nenhum prejuízo, seja para o ENTE PÚBLICO "TAL", seja para o INSS, fica evidente que a ausência de resultado material e de ofensa concreta a bem jurídico relevante tornam o fato atípico.
IV – INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA.
Além da inexistência de resultado material, que afasta a tipicidade da conduta e não recomenda a ativação do aparelho repressivo estatal, verifica-se no caso concreto a presença de uma causa excludente de culpabilidade, também indicadora da falta de justa causa para a persecução criminal da Paciente. Leciona Miguel Reale Junior (Teoria do Delito. RT: São Paulo, 2000, p. 151/157) que a inexigibilidade de atuação conforme a lei surge quando o agente opta pela preservação de um bem jurídico em detrimento de outro.
"Não há renúncia por parte do direito, mas uma revaloração deste, diante de uma situação em que estão presentes determinados requisitos objetivamente determinados. A não exigibilidade não se reduz às situações em que o instinto de conservação determina a ação, mas implica uma valoração acerca de um conflito de valores, o valor da norma e o valor posto como motivo de agir em determinada situação."
O exercício de ponderação de bens que se faz sopesando o delito praticado e o bem jurídico que se quis proteger já foi várias vezes aplicada por esse Tribunal Regional Federal, como se vê do exemplo abaixo colhido:
"Penal. Passaporte falso. Absolvição.Inexigibilidade de Conduta Diversa. Insuficiência de Provas
1 – Não é punível a conduta do brasileiro que utiliza passaporte falso apenas para tentar livrar-se da marginalidade social e econômica a que está fadado no Brasil buscando melhores condições de vida em outro país, caracterizada, nesta hipótese, a inixigibilidade de comportamento diverso;
2 – Inexistindo quaisquer outras provas, a simples confissão do co-réu não é suficiente para fundamentar uma condenação."
(ACR nº 98.02.07729-1 – 4ª Turma – Rel. Des. Rogério de Carvalho – DJU 22.10.1998)
No caso concreto, a empresa XXXXX Ltda não era capaz de honrar seus débitos com a previdência social (dentre vários outros) por impossibilidade material. Vinha operando com endividamento e em situação periclitante, como comprovam os extratos bancários de contas da empresa. Por outro lado, era credora de valores do ENTE PÚBLICO "TAL", que, reconhecidamente devedor, deixava de honrar os compromissos.
Inaplicável, em casos como este, a medida repressiva e punitiva do Direito Penal. É incoerente com os princípios que balizam e orientam o Direito Penal perseguir penalmente um agente que, diante de circunstâncias anormais, atuou de forma típica quando não se podia exigir um comportamento de acordo com a norma jurídica. Trata-se de situação em que o comportamento adotado pelo agente não pode ser reprovado pela norma jurídica, cujo conseqüência é a descaracterização da ilicitude da conduta.