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A cassação do mandato político por quebra de decoro parlamentar

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O crescimento das sociedades políticas e o elevado grau de complexidade dos problemas coletivos culminaram por inviabilizar a prática da democracia direta, na qual são coincidentes as figuras do titular e do destinatário do poder político.

Neste contexto de desenvolvimento social, e para operacionalizar a própria noção de democracia, criou-se a idéia da representação, a ser concretizada pelo mandato político, instrumento dos mais caros ao Direito Público, por traduzir o elo de fidúcia a vincular representantes e representados.

Em tema de mandato político, deve-se destacar que é da natureza dos governos Republicanos a sua temporariedade. A idéia mesma de República abomina os conceitos de hereditariedade ou vitaliciedade, razão por que, numa República democrática, os mandatos hão de ser concedidos por um prazo previamente estabelecido.

Entre nós, os mandatos são, em regra, de 4 anos [01], permitida a reeleição uma única vez para os cargo executivos. A própria limitação da idéia de reeleição visa a impedir que os mandatos políticos, essencialmente limitados no tempo quando se está em uma República, se perenizem indefinidamente, aniquilando um dos próprios requisitos do conceito de democracia que é a alternância de poder (ou, nas palavras da Constituição da República de Timor Leste, o Princípio da Renovação – art. 64).

A regra, portanto, é a de que os mandatos parlamentares sejam extintos por efeito do mero decurso do tempo. É como se a Constituição estabelecesse uma presunção de que o prazo de 4 anos é suficiente para que o titular do mandato implemente todas as políticas que o alçaram à condição de representante popular. E mais: ultrapassado o referido lapso temporal de 4 anos, o representante popular já se encontra apto, por expressa determinação constitucional, para se submeter ao juízo de aprovação popular.

Contudo, muito embora esta seja a regra, trata-se de norma que a própria Constituição cuidou de excepcionalizar. Ou seja, casos há em que a própria Carta Política estabeleceu que o mandato concedido a determinado representante deve ser abortado, cassado, antes mesmo que chegue a seu termo natural. São as tão faladas hipóteses de extinção e cassação do mandato parlamentar, previstas, respectivamente, nos incisos III, IV e V do art. 55 e nos incisos I, II e VI do mesmo art. 55 da Lei Fundamental da República.

Deve-se salientar, aqui, que tais espécies de perda do mandato parlamentar são absolutamente excepcionais e, como tais, devem sempre ser interpretadas restritivamente. A regra, como seu viu, é que os mandatos pereçam pelo advento de seu termo legal.

Cumpre registrar, no ponto, que esta excepcionalidade que deve sempre revestir os casos de cassação/extinção de mandato tanto mais se evidencia quando se considera que, em casos tais, um poder outorgado diretamente pelo povo está sendo revogado não pelo povo, mas, isto sim, por outros parlamentares. É dizer: o povo outorga o mandato político, mas, como hoje no Brasil não se adota o instrumento do recall (que já existiu em algumas Constituições Estaduais, como as de São Paulo, Rio Grande do Sul e Santa Catarina), não é ele quem cassa este mandato, mas, sim, outros parlamentares. Ou, ainda: a eleição se dá de forma direta (art. 14), mas a cassação se dá de forma indireta; sem participação popular, portanto.

Deve-se ter em mente, por isso mesmo, que a idéia de cassação de mandato parlamentar traz em si a gravíssima conseqüência de ruptura da vontade popular que foi expressa em voto. Razão por que todas as hipóteses de extinção anômala do mandato parlamentar devem ser interpretadas de modo restritivo.

Impende perquirir, portanto, considerada esta grave conseqüência política que decorre da cassação de mandato, quais os motivos de se prever constitucionalmente esta medida.

Nesta perspectiva, deve-se pontuar que as razões de tal previsão decorrem da antevisão constitucional de algumas hipóteses nas quais princípios constitucionais de igual estatura colocam-se em situação de antagonismo. A moralidade e a probidade, por exemplo, podem entrar em rota de colisão com o direito à representação. Ou seja, a continuidade mesma no exercício de determinado mandato parlamentar, pelos desvios eventualmente registrados, pode configurar fator de corrosão da essência de valores fundamentais, afetando a própria idéia de Constituição. E mais. É avesso à noção de democracia, a continuidade de um mandato que não prima pela defesa dos direitos e garantias fundamentais.

Desse modo, assim como a Constituição estabeleceu uma presunção de que em 4 anos é possível se concretizar grandes aspirações, também fixou que em determinadas hipóteses pode-se abreviar o mandato de determinado representante, pois seu comportamento indica que de suas práticas nada decorrerá em proveito do povo, implicando, tão-somente, no desrespeito aos direitos fundamentais e na corrosão aos ideais democráticos.

Porque se há um direito do cidadão à representação, também há o mais elevado direito a uma representação digna, proba e honrada.

E é neste panorama que se insere a discussão tão atual (especialmente em tempos de crise política) em torno do conceito de decoro parlamentar, sabido que a quebra deste decoro constitui-se em causa de cassação de mandato político (art. 55, II da CF).

Nos dizeres do saudoso Pinto Ferreira, a perda do mandato, por quebra de decoro, qualifica-se como um modo individual (pois que atinge apenas específico parlamentar) de fim anormal (porque destoante da regra geral, segundo a qual os mandatos se extinguem com o advento de seu prazo) de mandato legislativo (Comentários à Constituição Brasileira, 1992, Saraiva, 3º vol., p. 29).

Cumpre registrar, neste ponto, que a Constituição da República não nos oferece um conceito preciso daquilo que seja decoro parlamentar. Na busca por tal definição, portanto, deve-se indagar quais as razões de sua previsão e quais os bens jurídicos que pretende tutelar.

Pois bem, antes de mais nada, deve-se consignar que a idéia mesma de decoro parlamentar insere-se dentro do conjunto das regras constitucionais que compõem o Estatuto dos Congressistas, ou seja, daquelas normas que estabelecem as prerrogativas e as vedações incidentes aos titulares de mandato parlamentar.

Assim, o art. 53, em toda a sua extensão, prevê, dentre outras coisas, a inviolabilidade parlamentar (imunidade material), as imunidades formais e a prerrogativa de foro; prerrogativas, portanto.

Já o art. 54 cuida das proibições, seguindo-se o art. 55, que estabelece as hipóteses de perda de mandato.

É de se acentuar, por relevante, que muito embora as imunidades e as vedações façam parte deste mesmo corpo homogêneo de regras constitucionais especialmente voltadas aos congressistas, há, entre elas diferenças ontológicas.

As imunidades parlamentares, fruto do direito inglês (freedom from speach e freedom from arrest), longe de se destinarem a conferir uma esfera de proteção pessoal aos parlamentares, buscam, ao contrário disso, revestir os mandatos parlamentares de determinados atributos que os permitam ser exercidos com desenvoltura e independência. Ao contrário do que pode fazer crer, as imunidades parlamentares não se qualificam como privilégios pessoais, mas como prerrogativas institucionais, voltadas ao bom desempenho da função de representar.

Busca-se, assim, proteger o bom exercício do mandato parlamentar, garantindo-se ao congressista o livre exercício do direito de criticar e denunciar (imunidade material quanto aos crimes de opinião), protegendo-lhe de prisões arbitrárias que possam, inclusive, comprometer o quorum de votações no Parlamento (imunidade formal relativa à prisão) e preservando-lhe de processos abusivos (possibilidade de sustação de processo por crime posterior à diplomação).

A idéia, portanto, é conferir ao parlamentar todos os instrumentos que o permitam bem exercer o seu mister.

E é exatamente atento a esta função, a esta natureza das imunidades parlamentares, que o Supremo Tribunal Federal deu determinadas interpretações restritivas a tais prerrogativas. Entendeu-se, por exemplo, que nem todas as opiniões externadas por congressistas estavam compreendidas pela imunidade material, mas apenas aquelas que guardassem um vínculo funcional, um nexo de implicação, com o exercício da função congressional. Pois se a Constituição buscou proteger o exercício do mandato, não haveria razões para se cobrir com o manto da imunidade manifestações feitas no âmbito meramente privado de determinado parlamentar. Opiniões, por exemplo, externadas numa reunião de condomínio, sem qualquer relação, portanto, com o efetivo exercício do mandato, não deveriam estar compreendidas no âmbito da cláusula de inviolabilidade.

Do mesmo modo, entendeu-se que não estavam compreendidas no conceito de imunidade material declarações feitas no contexto de campanha político-eleitoral, na qual o indivíduo está a atuar não como parlamentar, mas como candidato. Candidato que, por isto mesmo, deve competir em pé de igualdade com seus outros adversários, sob pena de desequilíbrio do próprio processo eleitoral.

Também por inspiração desta mesma lógica, o Supremo Tribunal Federal entendeu que parlamentares licenciandos ou investidos nos cargos de Ministros ou Secretários de Estado também não gozavam das imunidades parlamentares [02]. E isto pelo simples motivo de que as imunidades parlamentares destinam-se à proteção do exercício do mandato, não incidindo, portanto, aos que, embora titulares, não estejam exercendo esta função.

Agora, e o decoro parlamentar? Qual o bem jurídico que ele pretende tutelar? Como interpretar a idéia mesma de decoro parlamentar para se descobrir a quem ele se impõe?

Como anteriormente dito, o conceito de decoro é fluido, indeterminado. A Constituição Federal, contudo, já nos oferece um indicativo a pautar o ato de interpretação. Quando trata das imunidades, a Carta Política se refere às "imunidades DE Deputados ou Senadores" (art. 53, § 8º). Ou seja, as imunidades são prerrogativas exercidas e titularizadas pelos parlamentares enquanto tal. Já quando cuida do decoro, a Constituição menciona "decoro parlamentar" (art. 55, II), e não decoro do parlamentar. Tudo a sinalizar que o verdadeiro titular deste comportamento decoroso, que o real destinatário da norma constitucional, não é o deputado ou o senador per si, mas, isto sim, a própria INSTITUIÇÃO DO PARLAMENTO. É ele, Parlamento, Congresso Nacional, quem tem o direito a que se preserve, através do comportamento digno de seus membros, sua imagem, sua reputação e sua dignidade. Saímos do exercício do mandato parlamentar (objeto de proteção pelas imunidades) e chegamos à honra objetiva do Parlamento, que deve ser protegida de comportamentos reprováveis por parte de seus membros.

Nesta linha de raciocínio, podemos conceituar decoro parlamentar, nas palavras de Miguel Reale, como sendo a "falta de decência no comportamento pessoal, capaz de desmerecer a Casa dos representantes (incontinência de conduta, embriaguez, etc.) e falta de respeito à dignidade do Poder Legislativo, de modo a expô-lo a críticas infundadas, injustas e irremediáveis, de forma inconveniente..." (RDP – 10, P. 89).

Em linhas semelhantes, Pinto Ferreira define a falta de decoro como "o procedimento do congressista atentatório dos princípios de moralidade, ofensivos à dignidade do Parlamento, maculando o comportamento do bonus pater famílias". Prossegue o sobredito doutrinador com a afirmação de que "a perda do mandato de deputado ou senador é (...) um poder discricionário que tem a Câmara de expulsar os seus membros, quando sua conduta venha a ferir a própria honorabilidade da Assembléia. Conquanto o deputado ou o senador tenha todas as condições para continuar em seu cargo, a própria Câmara ajuíza que ele é indesejável ou intolerável, surgindo a cassação como uma medida disciplinar" (p;25 e 28).

Desta linha não destoa o mestre das Arcadas, Prof. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, para quem é "atentatória ao decoro parlamentar a conduta que fira aos padrões elevados de moralidade, necessários ao prestígio do mandato, à dignidade do Parlamento...".

Nesta busca por uma definição daquilo que venha a constituir o decoro parlamentar, imprescindível a menção ao brilhante voto proferido pelo ilustre Ministro Paulo Brossard, no julgamento do MS 21.360. Nesta ocasião, o culto Ministro, com toda a experiência de um parlamentar, optou por parafrasear Santo Agostinho, quando afirmou que "é mais fácil descrever situações que a configuram, do que definir o que seja falta de decoro parlamentar, de modo a servir a todas as situações".

Pois bem, de todas estas ponderações, extrai-se um elemento comum: ato incompatível com o decoro parlamentar é aquele que, por sua natureza mesma, afronta o padrão ético e os valores morais da coletividade, do homem médio, comprometendo a própria idéia que o corpo social tem do Parlamento. Como se a prática de condutas impróprias por parlamentares trouxesse como efeito colateral a própria danificação da imagem social desfrutada Legislativo. É a instituição, pagando pelos atos dos indivíduos que congrega.

Daí porque o bem jurídico tutelado pela norma do art. 55, II da Carta Política é a confiabilidade, a honorabilidade, do Parlamento. É ele, Parlamento, o real titular da norma constitucional relativa ao decoro dos congressistas [03].

E é exatamente por isso, também, que só ele, Parlamento, no exercício de típico poder censório, tem competência para decidir qual conduta considera ofensiva à sua honra objetiva e qual conduta reputa admissível, tolerável. Este juízo, portanto, em cada caso concreto, daquilo que seja ou não incompatível com o decoro parlamentar, é exclusivo de cada Casa do Poder Legislativo, sem nenhuma interferência de qualquer outro poder, incluindo-se, aí, o Poder Judiciário. Porque não cabe ao Poder Judiciário interferir no Parlamento a ponto de substituir-lhe no julgamento e na preservação de sua própria imagem, ditando-lhe determinado padrão moral.

Outro não é o entendimento do Supremo Tribunal Federal que, desde sua primeira manifestação sobre o tema (RMS 4.241, Rel. Min. Luiz Gallotti) até sua recente jurisprudência (RE 113.314; MS 21.443; MS 23.529), não tem admitido revisão judicial de julgamento político atinente à cassação de mandato parlamentar por quebra de decoro.

Cumpre enfatizar, no ponto, que não se defende aqui seja vedado ao Poder Judiciário o controle sobre todos os atos inerentes ao procedimento de cassação dos mandatos políticos. Não e não! Até porque a própria Constituição, quando cuidou da ritualística inerente aos processos de cassação de mandato, estabeleceu garantias mínimas aos processados, como o direito ao voto secreto, ao quorum da maioria absoluta e à ampla defesa (CF, art. 55, § 2º). Não obedecidos, portanto, os requisitos formais impostos pela própria Constituição, abertas estão as portas para a intervenção do Poder Judiciário. Intervenção, esta, que se legitima pela violação de dispositivo da Lei Fundamental da República.

Mas as exigências constitucionais restringem-se à forma de que se deve revestir o procedimento de cassação do mandato político. Porque quanto ao mérito da questão, ou seja, quanto à específica definição do que venha a ser o decoro parlamentar, a Constituição limita-se a exemplificar duas hipóteses (abuso das prerrogativas e percepção de vantagens indevidas - § 1º do art. 55 da CF), reservando ao Regimento Interno das casas legislativas a definição de outras situações em que se verificará este desvio de procedimento.

É dizer: foi a própria Constituição Federal quem optou por transferir para a esfera reservada do Parlamento a definição daquilo que venha a ser considerado incompatível com o decoro. Trata-se, portanto, de matéria que, por força de determinação constitucional, ganhou o atributo de interna corporis, ou seja, de assunto restrito ao corpo parlamentar, infenso, portanto, à ingerência de qualquer dos outros poderes.

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E mais. Por sua natureza política e pelo objetivo a que se propõe (preservação da confiabilidade e da honra objetiva do parlamento) o processo de cassação de mandato por quebra de decoro assume feições próprias, desvinculadas das exigências formais e materiais inerentes aos processos judiciais em geral.

Por este modo de ver as coisas, determinada Casa Legislativa pode entender pela cassação do mandato de determinado parlamentar, muito embora sejam frágeis, tênues, os elementos de prova carreados contra o congressista-cassado. E este proceder é absolutamente legítimo e, consoante já enfatizado, não pode ser revisto pelo Poder Judiciário.

É que o processo de cassação de mandato por quebra de decoro pretende proteger ou restabelecer a imagem, a honra objetiva do Parlamento. E esta honra objetiva, como é da natureza mesma das coisas, pode ser atingida por situações e comportamentos ainda não terminantemente comprovados. Isto porque a opinião pública, a sociedade civil, não necessitam de provas irrefutáveis acerca de determinado episódio para que, analisando este mesmo episódio, formem um juízo de desvalor sobre a confiabilidade e a dignidade do Parlamento.

Assim, muito embora determinadas acusações não encontrem respaldo probatório o suficiente para ensejar uma condenação criminal (dados os rigores formal e material que permeiam a esfera judicial), elas, acusações, podem, sim, dotar-se de um potencial altamente lesivo à imagem do Congresso Nacional, legitimando, por isso, a cassação de mandato por quebra de decoro.

É claro, como já dito, que este modo de extinção do mandato deve ser sempre excepcional. Também não se ignora que a previsão constitucional de cassação de mandato por quebra de decoro pode abrir brechas para que "perseguições políticas" culminem com uma ruptura do mecanismo de representação popular.

Já em 1946, após a introdução da noção de decoro parlamentar na Constituição desse mesmo ano (por efeito de proposta apresentada pelo então Deputado Aliomar Baleeiro), Sampário Dória advertia: "Basear no decoro parlamentar, para fazer deputado ou senador perder o mandato, é dar asas a vinditas políticas. Porque no conceito de decoro, há parcela de apreciação individual, de fugidio e de imponderável, no precisar a conveniência, a propriedade, a relação do ato com as circunstâncias..." (Comentários à Constituição de 1946, 1960, vol 2, p. 235).

De fato, e como já realçado, há algo de indeterminado no conceito constitucional de decoro parlamentar. E a razão desta particularizada indeterminação é muito simples: como a idéia de decoro prende-se à preservação da respeitabilidade e da dignidade do Parlamento, trata-se de noção vinculada aos padrões éticos e morais de determinadas sociedades.

É dizer: o próprio conceito de decoro parlamentar é histórico, variável ao longo do tempo, acompanhando as evoluções de padrões morais por que passam as sociedades em geral. Neste panorama, precisar no texto Constitucional o que venha a ser decoro significa limitar temporalmente a própria eficácia da norma constitucional, impedindo que ela, norma constitucional, por seu grau de abstração e indeterminação conceitual, possa adaptar-se, enquadrar-se, às oscilações dos padrões sociais verificáveis com o passar do tempo.

Apenas para se ilustrar esta mobilidade temporal do conceito de decoro parlamentar, registre-se o célebre caso do Deputado Barreto Pinto, primeiro a sofrer a sanção da perda do mandato por quebra de decoro. Cuidava-se, então, de foto veiculada no Jornal "O Cruzeiro" (edição de 29/06/1946), na qual alguns Deputados apareciam trajando camisa, gravata e fraque, na parte superior, e somente cuecas, na parte inferior. Um verdadeiro horror para a época!

O fato, pois, é que o decoro parlamentar foi instituído para preservar a honra objetiva da Instituição do Parlamento contra condutas moralmente e socialmente impróprias eventualmente praticadas por seus integrantes. Trata-se, pois, de um juízo "personalíssimo", privativo do Congresso, pois somente ele, Congresso, pode aferir, em cada caso, se a permanência, na Casa, de algum parlamentar tem, ou não, este efeito maléfico sobre a imagem da Instituição.

Após tudo o que foi dito sobre o decoro parlamentar, algumas dificuldades que o tema poderia gerar culminam por desaparecer.

Por exemplo: um ato, para ofender o decoro, precisa necessariamente estar vinculado ao exercício do mandato parlamentar?

É dizer: assim como se verifica nas imunidades parlamentares (que só incidem em casos de efetivo exercício de mandato), a quebra do decoro só ocorreria se o ato questionado guardasse vínculo, nexo de implicação, com o exercício do mandato? Ou, ainda: para que um ato ofenda o decoro parlamentar, é preciso que ele decorra da atividade do congressista enquanto tal?

A resposta é inquestionavelmente negativa.

Cumpre registrar, aqui, que, consoante acima alinhavado, não se deve confundir imunidades parlamentares com decoro parlamentar.

De fato, as imunidades parlamentares foram concebidas para proteger o bom exercício do mandato parlamentar. É nele, exercício do mandato, que reside a finalidade mesma da instituição de tais prerrogativas. Prerrogativas que deixam de incidir sempre que não se cuidar de efetivo exercício de mandato parlamentar.

Já o decoro parlamentar visa a assegurar e preservar a própria imagem que se tem do Poder Legislativo. E esta imagem, desenganadamente, pode ser afetada por atos de congressistas que não guardem qualquer relação com o efetivo exercício do mandato parlamentar.

Nesta linha, no extremo, pode o Congresso Nacional entender que a permanência, na Casa, de parlamentar acusado de estupro afeta, sim, a própria honorabilidade do Parlamento. Trata-se, portanto, de ato completamente destacado da atividade parlamentar (suposta prática de estupro), mas, ainda assim, potencialmente apto a danificar a honra objetiva do Parlamento.

Outros exemplos poderiam ser dados, todos eles evidenciadores de que tanto atos públicos, praticados por parlamentares enquanto tal, como atos de índole meramente privada, são virtualmente capazes de atingir o Congresso Nacional. Tanto é assim, que as vedações constitucionais impostas aos parlamentares também se referem a atos que não guardam qualquer relação com o mister congressional. Veja-se, por exemplo, que, desde a expedição do diploma, Deputados e Senadores não poderão firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária. Típica limitação que, inspirada pelo princípio da moralidade administrativa, atinge a esfera privada, negocial, empresarial, do parlamentar (CF, art. 54, I, "a").

Nesta seara, portanto (a do decoro parlamentar), os atos da vida particular dos congressistas têm a aptidão de se projetar externamente, refletindo na própria honra da Instituição da qual fazem parte. Porque a idéia mesma de honra não tolera fragmentação, sendo inconcebível imaginar-se que determinado indivíduo, de comportamento execrável como empresário, marido e pai, conserve, unicamente quanto à função de parlamentar, a imagem de honradez e respeitabilidade.

Irretocáveis, sob tal aspecto, as palavras da antropóloga Carla Costa Teixeira, que, em trabalho apresentado durante o Doutoramento na Universidade de Brasília (Decoro Parlamentar – A Legitimidade da Esfera Privada no Mundo Público – Série Antropologia), assim analisou a relação que se estabelece entre a vida particular do congressista e a preservação do decoro do parlamento:

"A conceitualização de decoro parlamentar dá-se, portanto, em torno de dois eixos: tipificação de atos impróprios ao exercício do mandato; e avaliação da (in)dignidade ou des(honra) do comportamento do parlamentar. O primeiro limita-se a normatizar o desempenho de um papel social específico – o de representante político; o segundo, pretende abarcar a totalidade da conduta do sujeito em questão, esteja ele ou não no exercício de funções políticas. Ao minimizar a fragmentação de papéis (...) escapa-se "da armadilha que implicaria isolar a identidade de parlamentar das demais identidades que o sujeito possui, principalmente, numa cultura que não faz tal distinção em sua vida cotidiana. Neste sentido é que proponho ser a figura do ‘decoro’ potencialmente redefinidora de um espaço para a esfera privada e pessoal na vida política brasileira, que – ao contrário dos ‘favorecimentos político’ – vem reforçar o funcionamento das instituições representativas nos termos das chamadas democracias modernas. Pois, aqui, não se tratou de banir as relações pessoais da esfera política – como o senso comum no combate à corrupção propõe ou supõe – mas, antes, de reincorpora-las de modo distinto....

Pitt-Rivers dá a seguinte definição de honra: ‘A honra é o valor da pessoa a seus próprios olhos, mas também aos olhos da sua sociedade (1977:1). Assim, a honra é um conceito valorativo que atua nas relações entre personalidades sociais, ou seja, entre indivíduos que adquirem significado referido a totalidades sociais. Logo, vigora entre indivíduos relacionais e não entre indivíduos anônimos. Pois a honra é uma imagem pretendida que se refere à dignidade e prestígio social desejado pelo sujeito. Conecta ideais sociais e indivíduos através do desejo destes de personificarem estes ideais a fim de obterem reputação e reconhecimento sociais. E nisto, ressaltam alguns autores, residiria a fraqueza do valo-honra nas sociedades complexas: o anonimato relativo nas grandes metrópoles, aliado à multiplicidade de sistemas de valores dificultariam o controle e a sanção da opinião pública, tão cara ao mecanismo (pretensão/reconhecimento) da honra.

O traço específico, porém, da dinâmica da honra se mantém no caso analisado: o predomínio das relações presonalizadas, da totalidade sobre a parte, do reconhecimento do sujeito em sua integridade – a diferença é que aqui outros mecanismos são acionados na sua produção. Pois isto é fundamental na singularidade da honra, enquanto identidade social pretendida, frente às outras dinâmicas de identificação social (como as de gênero e de raça, por exemplo). Na identidade parlamentar, o anonimato inexiste, seja quanto ideal ou prática, pois a valorização do sujeito se dá a partir do seu pertencimento ao corpo de parlamentares; a pretensão/reconhecimento de uma imagem (prestígio e dignidade) é fundamental no desempenho de sua função; a condição de deputado federal integral todas as demais inserções sociais do sujeito. Integra, mas não as anula. Esta distinção é fundamental, caso contrário, estaríamos frente a um relacionamento do tipo de considera apenas um determinado papel social, o que não se verifica nesta situação. Pois é imprescindível à honra/decoro parlamentar que em todas as circunstâncias da vida cotidiana o sujeito tenha uma conduta digna: nas suas obrigações como pai, marido, filho, empresário/trabalhador, contribuinte e, por fim, representante político. Não é possível postular meia honra – em apenas uma esfera social – pois a honra rejeita a fragmentação do sujeito; a honra é sempre pessoal...".

Atos estranhos à função parlamentar, portanto, também podem configurar quebra de decoro, pois podem igualmente macular a imagem do Congresso Nacional. Assim, por exemplo, atitudes altamente reprováveis de determinado indivíduo enquanto membro de uma família ou sócio de uma empresa, por afetarem a integralidade de sua honra, têm potencialidade de lesionar a honra objetiva da Casa Parlamentar como um todo.

Por iguais razões, atos ANTERIORES à titularidade do mandato podem dar ensejo à cassação do parlamentar, sempre que o juízo de desvalor decorrente da conduta questionada possa se projetar no tempo, comprometendo, prospectivamente, a própria imagem do Parlamento na atual legislatura. É dizer: um membro do Poder Legislativo pode ter seu mandato cassado, por quebra de decoro, ainda que o comportamento supostamente indigno tenha sido praticado anteriormente à diplomação do Congressista para o atual mandato. Para que isto ocorra, é preciso que a Casa Legislativa, num juízo censório que lhe é privativo, entenda que a atual presença, em seus quadros, de indivíduo cuja honradez já foi desfigurada por ato anterior, representa sério risco ao prestígio social da instituição.

Mais do que isso, o comportamento impugnado, precedente à diplomação para a legislatura em curso, pode, ou não, vincular-se a exercício de mandato anterior. Ou seja, a conduta tida como lesiva pode ter sido praticada no exercício de mandato já extinto, ou, ao contrário disso, no âmbito da esfera pessoal do parlamentar.

É dizer: para que um parlamentar seja cassado por ato praticado anteriormente à sua diplomação, não é preciso que seu comportamento tenha se externado quando do exercício de um outro mandato antecedente.

Na realidade, e consoante já enfatizado, a regra do decoro parlamentar não tem como objetivo tutelar o exercício do mandato, mas, isto sim, a honra objetiva do Parlamento. Razão por que qualquer conduta, seja ela associada, ou não, ao exercício de mandato, seja anterior ou posterior à diplomação para o cargo, pode dar causa a procedimento de cassação por quebra de decoro, sempre que a imagem social do Legislativo estiver correndo risco de corrosão.

Consigne-se, por oportuno, que a prática vem corroborando o entendimento aqui defendido. Como exemplo, de se mencionar o MS (24.458-MC, Rel. Min. Celso de Mello – "Caso Pinheiro Landim") e o MS 23.388, Rel. Min. Néri da Silveira – "Caso Talvane Neto"), nos quais o Supremo Tribunal Federal reconheceu a legitimidade constitucional da instauração de processo de cassação, por quebra de decoro, em razão de conduta praticada em legislatura anterior. No primeiro dos precedentes (MS 24.458), o Ministro Celso de Mello consignou que o princípio da unidade de legislatura, "que faz cessar, a partir de cada novo quadriênio, todos os assuntos iniciados no período imediatamente anterior... não se reveste de efeito preclusivo, em tema de cassação de mandato legislativo". Ou seja, legitimou-se o procedimento de cassação de mandato, mesmo que a quebra de decoro tenha ocorrido anteriormente à investidura no mandato presente.

Também a prática congressual referenda a tese aqui defendida. E vai mais além, consagra a absoluta desnecessidade, para fins de cassação por quebra de decoro, de que a conduta questionada guarde nexo de contemporaneidade com a titularidade do mandato parlamentar. Ou seja, não há nem que se exigir que a conduta supostamente desonrosa tenha sido praticada quando já se era parlamentar, considerada a possível sucessividade de mandatos. Atos anteriores e completamente desvinculados da vida parlamentar podem, sim, dar ensejo a procedimento de cassação de mandato por quebra de decoro, desde que tais atos sejam revestidos desta força prospectiva, que projeta para o futuro os efeitos danosos à honra, derivados do comportamento indigno.

A propósito, cumpre registrar o parecer oferecido à Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania pelo saudoso Senador Josaphar Marinho (Parecer nº 89/1995), no caso atinente ao também Senador Ernandes Amorim, então acusado de manter vínculos com o narcotráfico, anteriormente à sua investidura na função parlamentar:

"... Demais, como o próprio Senador quer, correta e impositivamente, a ‘completa elucidação dos fatos’, fica afastada, pela lógica e pela ética, a alegação, que poderia ser levantada, de se tratar de supostos acontecimentos anteriores e estranhos ao mandato...

Ora, as ações que concernem ao decoro parlamentar e à previsão de perda do mandato devem ser, em tese, contemporâneas do exercício da função (art. 55, II e § 1º da CF). Não há negar, porém, que atos e fatos passados, sobretudo se recentes, podem projetar-se no tempo e alcançar e perturbar o procedimento do parlamentar – e atingir a instituição – como o testemunha a atitude presente do Senador Ernandes Amorim, ao insistir na investigação, em sua defesa e para obstar ‘suspeição sobre a lisura dos integrantes da Mesa Diretora’. É que os atos e fatos podem situar-se num dia determinado, e seus efeitos se prolongarem diferentemente, com reflexos diversos sobre as pessoas neles envolvidas, e à feição de continuidade.

O texto da Constituição, aliás, ao cuidar da perda de mandato, alude a ‘procedimento’ que for declarado incompatível com o decoro parlamentar, com amplitude suficiente a não permitir que o formalismo exagerado estrangule a realidade. E a Resolução nº 20, de 1993, do Senado, que institui o Código de Ética e Decoro Parlamentar, criando a ‘declaração de atividades econômicas ou profissionais’, a ser apresentada às comissões, abrange as atividades ‘atuais ou anteriores’, o que indica que estas podem servir à caracterização do procedimento do Senador’(sem grifos no original).

Assim, é desnecessário, para a configuração da quebra de decoro parlamentar, qualquer relação de contemporaneidade entre a prática do ato tido como indecoroso e a titularidade do mandato ou, ainda, qualquer vínculo material de implicação entre a conduta desabonadora e o exercício das funções congressuais. Ao contrário disso, o processo de cassação por quebra de decoro pode validamente se instaurar sempre que a Casa Legislativa, num juízo que lhe é absolutamente privativo, entender que conduta imputada a parlamentar pode comprometer, por sua gravidade mesma, o prestígio social desfrutado pela Instituição.

Resta, ainda, perquirir se parlamentar investido nos cargos de Ministro de Estado ou Secretário de Estado, por exemplo, pode, ou não, sofrer processo de cassação de mandato por quebra de decoro. É dizer: parlamentar que não se encontra no efetivo exercício da função parlamentar pode, ou não, ter seu mandato cassado por quebra de decoro?

A resposta a tal indagação passa, necessariamente, pelo art. 56 e respectivos incisos da Constituição Federal. Segundo tal dispositivo, a licença por motivos pessoais (por prazo limitado) ou por motivos de saúde, além da investidura nos cargos de Ministro de Estado, Secretário de Estado ou chefe de missão diplomática, entre outros, não gera a perda do mandato parlamentar. É dizer: muito embora o congressista esteja investido no cargo de Ministro, não exercendo, portanto, suas funções congressuais, ele, deputado/senador, continua titular de seu mandato. Ou seja, há a titularidade do mandato, muito embora não haja o efetivo exercício.

Neste panorama, temos que é plenamente possível a cassação do mandato de parlamentar fora do exercício de suas funções, o que terá efeitos, inclusive, sobre o status jurídico do suplente.

Em boa verdade, e como já assinalado, a verificação da quebra ou não do decoro parlamentar pressupõe um juízo "de relação". Ou seja, uma análise entre a conduta do congressista (ou, nos dizeres do inciso II do art. 55 da Constituição da República, entre o "procedimento" do congressista) e aquilo que socialmente se espera de um parlamentar (que funcionaria como um parâmetro de confronto). De modo que, se o comportamento do parlamentar se revelar apto a frustrar as legítimas expectativas da sociedade, no que concerne à moral, à ética e à correição de seus representantes, afetando, de modo conseqüencial, a própria credibilidade de toda a Instituição Parlamentar, legitimada está a abertura da via excepcional da cassação do mandato.

Cabe repetir, aqui, que não só atos inerentes à função de parlamentar podem gerar esta frustração social no que concerne aos valores morais de seus congressistas. Isto porque a própria noção de moral não é fragmentária, o que faz com que um específico ato individual, praticado, por exemplo, no âmbito empresarial, possa projetar para todas as demais esferas (ou papeis) do sujeito a pecha da imoralidade, não sendo de se conceber, por isso mesmo, que uma pessoa seja ética na sua função de parlamentar, muito embora absolutamente aética em sua outra prática profissional.

Assim, atos praticados enquanto Secretário ou Ministro de Estado por aquele que ainda titulariza mandato parlamentar podem ensejar a perda deste mandato, mesmo que o indivíduo em questão ainda não tenha retornado ao Corpo Legislativo.

Isto porque as hipóteses do art. 56 da Carta Política referem-se, todas elas, a um afastamento meramente temporário do exercício das funções congressuais. Ou seja, trata-se de situações nas quais o retorno do parlamentar à Casa Legislativa é potencial, dependendo, muitas vezes, apenas de um ato de vontade do próprio parlamentar. E é este retorno, a se dar a qualquer momento, que legitima a Casa Legislativa a instaurar procedimento por quebra de decoro. Abre-se o processo para que seja tolhido, aniquilado, o direito do parlamentar de retornar à Instituição. Porque seu retorno, seu reingresso (que não pode ser impedido por nenhum outro parlamentar), pode trazer para a Casa efeitos maléficos em sua honra.

É como se a Casa agisse preventivamente (se o congressista ainda estiver licenciado ou investido nos cargos elencados no inciso I do art. 56 da Carta Política) ou repressivamente (caso o parlamentar já tenha reassumido suas funções parlamentares).

Assim, por exemplo, pode-se imaginar um caso de parlamentar licenciado por motivos pessoais que, durante sua licença, cometa sucessivos crimes de estupro. Nesta hipótese, é de todo o interesse do Parlamento que o congressista perca definitivamente o seu mandato e, como conseqüência, perca o direito que lhe assiste de, a qualquer momento, retornar à Instituição. Porque este retorno pode, sim, comprometer de modo sensível a honorabilidade do Congresso Nacional ou de uma de suas Câmaras.

Do mesmo modo, determinado parlamentar investido nas funções de Ministro de Estado, Secretário de Estado ou Governador de Território, acusado da prática de atos configuradores de improbidade administrativa, pode perder o direito de reassumir o exercício de seu mandato a qualquer momento (cassação preventiva, motivada pelo fundado receio de que o indivíduo retorne ao Parlamento trazendo consigo toda pecha de imoralidade decorrente do exercício de outra função pública: a de Ministro ou Secretário de Estado, ou qualquer das outras elencadas no inciso I da Carta Magna).

Além do que, caso já tenha retornado ao convívio com seus pares, pode sofrer processo de cassação, como todo e qualquer parlamentar, desde que de seus atos esteja sendo comprometida a honra objetiva do Poder Legislativo (não é de se exigir, portanto, qualquer vínculo de contemporaneidade entre o ato indecoroso e o exercício ou a titularidade do mandato parlamentar).

Nem se alegue, aqui, que este entendimento deformaria o número dos Deputados que integram a Câmara, pois permitiria a simultânea cassação do parlamentar licenciado e também do suplente que, em virtude da licença, assumiu o exercício do mister parlamentar.

Neste ponto, deve-se anotar que o suplente não é titular de mandato parlamentar. Não e não! Só é titular de mandato parlamentar aquele que obteve o número de votos necessários à conquista de um dos 514 assentos no Congresso. Este é o titular do mandato político pelos próximos 4 anos.

O suplente, de seu turno, tem o direito tão-somente a ser convocado nos casos de vaga, investidura nas funções públicas previstas no art. 56, I da Constituição ou de licença superior a 120 dias (CF, § 1º do art. 56 da CF). Exceto no caso de vaga, em que o suplente assume o exercício e também a titularidade do mandato, nas demais hipóteses o suplente goza apenas do exercício temporário do mandato parlamentar. É dizer: não é o efetivo titular do mandato, mas tão-somente aquele que exerce este mandato até que ele, titular, reassuma as suas funções.

Assim, exceto nos casos de vaga, há uma separação entre titular do mandato (que está licenciado ou investido em outros cargos públicos) e exercente do mandato (que é o suplente convocado para temporariamente ocupar uma cadeira no Parlamento). Separação esta que decorre da previsão constitucional no sentido de que Deputados e Senadores não perderão seus mandatos nas hipóteses dos incisos I e II do art. 56 da Carta Política.

De todo inconcebível, portanto, a alegação de que parlamentares investidos em outros cargos não poderiam ser cassados, eis que o princípio da separação dos poderes veda o exercício simultâneo de funções em mais de um poder. É que, nos casos do inciso I do art. 56, e por força de expressa determinação constitucional, não há o exercício simultâneo de funções em poderes diferentes. Não! O que há é o exercício efetivo de funções em um Poder, por pessoa que é titular (embora não exerça) de mandato parlamentar. Não há a simultaneidade de exercício porque, como já dito, a figura do titular se destaca da figura do exercente nos casos dos incisos I e II do art. 56 da Magna Carta. Além do que a cassação do mandato parlamentar, como já acentuado, não exige que a pessoa processada esteja no exercício de suas funções legislativas.

E isto não quer dizer que, toda vez que algum parlamentar se licencia ou assume a cargo de chefe de missão diplomática temporária, o número de parlamentares na Câmara se altera, devendo computar-se tanto o licenciado como o efetivo exercente. Não! O número de cadeiras prossegue o mesmo, muito embora uma cadeira esteja temporariamente sendo ocupada por quem não é seu titular. Só e só.

Por este modo de ver as coisas, não há qualquer óbice a que se abra procedimento por quebra de decoro contra parlamentar licenciado ou investido dos cargos do inciso I do art. 56. Nesta hipótese, ele, parlamentar, perde seu direito de voltar à Casa Legislativa, e o suplente, como conseqüência, conquista a titularidade do mandato que, em virtude da cassação, tornou-se vago. O número de membros da Câmara, como se vê, permanece inalterado. E mais: caso o parlamentar já tenha retornado às suas funções congressuais, o procedimento continua o mesmo. É dizer: poderá ser aberto o procedimento de cassação, desde que em risco a honra objetiva do Parlamento.

Mas a experiência do Congresso Nacional já foi até mais longe. Em boa verdade, a Câmara dos Deputados já "cassou", por quebra de decoro, um suplente de parlamentar, ou seja, quem sequer era titular de mandato legislativo.

Trata-se da Resolução nº 61/1994, da Câmara dos Deputados, que decreetou "a perda da qualidade de suplente e do conseqüente direito do exercício do mandato de Deputado Federal, por parte do Suplente Feres Nader...". Neste caso, diante da iminência da cassação do titular do mandato, também iminente era a convocação de seu suplente, razão por que reconheceu-se, em favor desse mesmo suplente, "a existência de um mandato potencial" (Relator perante a CCJ, Deputado José Abrão – Diário do Congresso Nacional de 14/04/1994). Mandato potencial que, se concretizado, comprometeria a imagem da Instituição. Nesta ocasião, consagrou-se a idéia (aqui defendida) de que até mesmo preventivamente pode agir a Casa Legislativa, quando iminente o ingresso em seu corpo de indivíduo que desmerece a Instituição. Eis, em síntese, como se manifestou o Relator do procedimento, Deputado José Abrão [04]:

"É incontestável caber à Câmara dos Deputados – e só a ela, Câmara dos Deputados – a obrigação de zelar pela sua dignidade. No caso em exame, não há como falar em controle judicial: o Sr. Feres Nader já foi diplomado pela Justiça Eleitoral. Nem há como tentar encontrar alguma solução regimental capiciosa: esta Casa já tomou e aceitou, na legislatura em curso, o compromisso do Representado. Assim, ocorrendo vaga, como iminente está, o Sr. Nader tomará posse automaticamente, pois esta Câmara ver-se-á obrigada a convoca-lo: a convocação é ato vinculado que não dá margem a qualquer conformação por parte da Mesa diretora desta Casa.

Porém, não seria lícito ou razoável, em se admitindo procedentes as acusações opostas contra o Sr. Feres Nades, admitir-se a inércia da Câmara dos Deputados, que por conformar-se com a posição de refém das circunstâncias, quer por pretensamente não dispor de instrumentos para defender-se.

Caso tenha a Câmara dos Deputados sido atingida em sua dignidade pela conduta do Sr. Feres Nader (...) estamos convencidos de que subsiste a esta Casa do Congresso Nacional, a despeito das aparentes dificuldades que se possam apresentar, o poder-dever de preservar a sua dignidade perante seus representados. Esse poder-dever é conseqüência inafastável da aplicação do princípio basilar que permeia todo o processo do sistema jurídico brasileiro, qual seja, o de que a quem é conferido um poder ou um dever, também são conferidos os meios para exercê-lo.

Incrível seria a Câmara dos Deputados não dispor de poderes bastante para proteger sua probidade. Seria absurdo que, ante a impossibilidade de cassar mandato inexistente, não restasse qualquer outra alternativa à Câmara, a não ser a de, passivamente, aguardar a assunção de quem já houvesse demonstrado comportamento indigno, desmerecedor do cargo, incompatível com a respeitabilidade exigível de representante popular. É inadmissível a Câmara dos Deputados cingir-se ao constrangimento de receber em seu seio um parlamentar de conduta ignóbil, para que somente após o seu retorno, pudesse proceder ao exame dos fatos e, em verificando fundadas as acusações, afastasse do deputado indigno....".

A idéia, portanto, em tema de cassação de mandato parlamentar por quebra de decoro, é a preservação da intangibilidade do bem jurídico que se pretende tutelar, qual seja, a respeitabilidade, a honorabilidade, da Instituição Parlamentar. Este, portanto, o objeto das sucessivas normas constitucionais, que, desde 1946 (art. 48, § 2º) [05], admitiram [06] a medida extrema da cassação do mandato político ante a quebra deste decoro.

De se frisar, finalmente, que, ao contrário do que pode parecer, a honra objetiva e a imagem do Parlamento são apenas os objetivos imediatos, mais evidentes, da norma inscrita no inciso II do art. 55 da Carta Política. Mais do que isso, a inspirar esta previsão está o objetivo permanente de velar pelo funcionamento das instituições democráticas e pela crença na democracia como o único regime capaz de assegurar o pleno exercício dos direitos fundamentais.


Notas

01 Excetue-se o mandato de 8 anos dos Senadores da República.

02 Exceto a prerrogativa de foro, que acompanha o parlamentar, mesmo quando não há o efetivo exercício de seu mandato.

03 Está a reforçar esta idéia a redação do art. 17, inciso VI, alínea "g" do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, que estabelece competir ao Presidente da Casa, "zelar pelo prestígio e decoro da Câmara, bem como pela dignidade e respeito às prerrogativas de seus membros....". Daí se percebe que o prestígio e o decoro que se pretendem proteger são titularizados pela Câmara dos Deputados, pela Casa dos Representantes do Povo, muito embora a dignidade e o respeito às prerrogativas dos parlamentares também sejam bens jurídicos regimentalmente protegidos.

04 Diário do Congresso Nacional, de 14 de abril de 1994, Seção I.

05"Em contraste com outras Constituições estrangeiras, as do Brasil, até então, não previam a punição dos parlamentares indisciplinados ou de procedimento incompatível com as suas funções. A de 1946, no art. 48, § 2º, estatuiu que perderia o mandato, por 2/3 dos votos de seus pares, o Deputado ou Senador cujo procedimento fosse reputado incompatível com o decoro parlamentar".BALEEIRO, Aliomar. SOBRINHO, Barbosa Lima. Constituições Brasileiras – Volume V (1946), Senado Federal, p. 20.

06 A cassação do mandato parlamentar por quebra de decoro encontra-se no art. 37 da Constituição de 67 e no art. 35 da Carta de 69.

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Sobre a autora
Maria Cláudia Bucchianeri Pinheiro

advogada. professora de pós-graduação do IDP/LFG. mestra em direito e estado pela Universidade de São Paulo. membro da ABLIRC - ass. bras. de liberdade religiosa e cidadania

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINHEIRO, Maria Cláudia Bucchianeri. A cassação do mandato político por quebra de decoro parlamentar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1449, 20 jun. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10038. Acesso em: 22 dez. 2024.

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