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A criminalização da tortura no Brasil: história, doutrina e processo penal

24/10/2022 às 18:16
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Breve histórico sobre o processo de criminalização da tortura no Brasil e estudo de caso de um julgado do STF nesta temática.

Resumo: Foi no ano de 1991 que o Brasil assinou a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura, mas foi somente seis anos depois que houve a criminalização da mesma pelo ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, apesar de já passados 25 anos desde sua promulgação, apesar dos avanços na legislação, quer através de garantias constitucionais de direitos humanos, quer pela legislação criminal específica quanto à tortura, ainda há registros de sua ocorrência, sobretudo por parte de agentes públicos, a pretexto do exercício de atividade de repressão criminal em nome do Estado. Houve alterações recentes na lei que mudaram a competência de crimes cometidos por agentes públicos militares (incluindo os de tortura), antes julgados na Justiça Comum, e agora julgados pela Justiça Militar. Esta alteração recebeu críticas, sobretudo de entidades ligadas aos Direitos Humanos, sendo vista como risco à imparcialidade no julgamento destes criminosos, bem como há ações que questionam sua constitucionalidade. Este quadro aponta para a relevância de estudos no campo do Direito focalizando este fenômeno em nossa realidade, como forma de melhor compreendê-lo, e, com isso, fundamentar ações evitando retrocessos no combate à tortura, no Brasil.


A tortura no Brasil: breve histórico

A tendência humana em se agregar em grupos, como estratégia de sobrevivência, tornou necessário o estabelecimento de regras para regular o comportamento das pessoas e, com isso, evitar o caos. Tais regras, para que funcionem, devem, em tese, ser seguidas por todos. No entanto, no desenrolar da história das leis, observa-se que muitas delas são elaboradas com a finalidade de efetivar o poder e dominação das classes dominantes, o que ajuda a explicar, por exemplo, o motivo pelo qual determinadas práticas antes eram consideradas lícitas e, somente posteriormente, passaram a ser criminalizadas (MACHADO, 2001). É o caso da tortura, no Brasil.

Historicamente, práticas de tortura foram utilizadas no Brasil desde o período da colonização, com a finalidade de se obter informações junto a prisioneiros, confissões ou mesmo como punições. Importante ressaltar que não somente pessoas que haviam cometido crimes eram alvos de tortura, mas também escravos, contando, inclusive, com amparo legal para fazê-lo, uma vez que sua desobediência era considerada atitude contra a lei então em vigor. (MACHADO, 2001).

A Constituição de 1824, influenciada por movimentos europeus de reformas dos sistemas punitivos, introduziu mudanças que visavam coibir tortura e outros tipos de tratamentos cruéis, no entanto deixou de fora o tratamento desumano dado a escravos de maneira rotineira no país, à época. Assim, a tortura adentrou o século XX ainda não sendo considerada crime no Brasil (OLIVEIRA E SOUZA, 2013).

 Foi, então, no período do Regime Militar (1964-1985) que a tortura se consolidou em caráter institucional no Brasil, sendo utilizada como instrumento político para obter informações e punir os seus opositores. Alguns autores chegam a ressaltar que a tortura se tornou uma espécie de método científico, sendo ensinado em cursos de formação de militares e oficiais (OLIVEIRA E SOUZA, 2013), como estratégia de uso de força para impor o poder no país.

Após décadas de violência e repressão, com o advento do movimento de redemocratização e com a Constituição de 1988, direitos e garantias fundamentais, incluindo-se aí os chamados direitos humanos, passaram a ser conhecidos e defendidos, agora, com fundamento constitucional. (JESUS, 2009) Assim, em seu artigo 5º em seu art. 5º, inc. III, a Constituição Federal prevê que ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante, enquanto no inciso XLIII, deste mesmo artigo, está previsto que

a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem

 Com isso, foi inserida na Constituição Federal a noção de que, no Brasil, tortura não seria admitida a partir de então (JESUS, 2009). Considerando que, 4 anos antes da promulgação da nova Constituição, o Brasil aderiu à Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, firmada pela ONU em 10 de dezembro de 1984, a promoção e materialização desta adesão se deu por meio do Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991 (JESUS, 2009). No entanto, até aquele momento, o Brasil ainda não possuía legislação criminal que tipificasse a tortura como crime.

Todo este cenário político e legislativo criou, finalmente, condições propícias para a discussão e implementação da Lei da Tortura em território nacional, o que acabou por se efetivar, no entanto, somente alguns anos mais tarde. No cenário internacional, o Brasil foi um dos últimos do mundo ocidental a incluir a tipificação criminal da tortura em seu ordenamento jurídico. Deste modo, apesar da previsão estabelecida pela Constituição Federal de 1988, foi somente quase uma década depois que a lei da Tortura foi efetivamente promulgada, e isto se deu, em parte, pela excessiva demora da tramitação do texto que a originou (OLIVEIRA & SOUZA, 2013). 


A Lei 9455/97 : aspectos doutrinários

A chamada Lei da Tortura foi promulgada no Brasil no dia 7 de abril de 1997, pelo então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso. A definição legal de tortura, trazida pela lei 9455/97, em seu artigo 1º, é a que segue:

I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa; II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

A pena cominada a referido crime é de 2 a 8 anos de reclusão.

No que tange aos tipos criminais, do ponto de vista de seu enquadramento, a forma pela qual a legislação descreveu e tipificou os crimes de tortura, permite considera-lo um crime comum, ou seja, a qualquer pessoa pode ser imputado referido crime (NUCCI, 2020).

Neste aspecto, conforme Oliveira e Souza (2013), a lei brasileira se diferencia da Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penais Cruéis, que por sua vez classifica referido crime como sendo ato praticado por agentes do Estado, restringindo sua penalidade aos mesmos (crime próprio). No Brasil, por sua vez, a mesma lei pode servir tanto para punir funcionários públicos no exercício de sua função, como pessoas comuns (crime comum).

Assim sendo, o sujeito ativo do crime de tortura é qualquer pessoa que venha a praticar atos típicos caracterizadores do tipo penal. O sujeito passivo, por sua vez, é a pessoa contra a qual a tortura é empregada, ou ainda outras pessoas eventualmente prejudicadas pela tortura (JESUS, 2009).

No entanto, a lei brasileira prevê um aumento de pena de um sexto a um terço caso seja cometida por agente público, conforme parágrafo 4º do artigo 1º, bem como prevê que a condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada (parágrafo 5º do artigo 1º). Assim sendo, assim como a pena prevista, também a competência para o julgamento do crime de tortura depende do agente; o crime será julgado pela Justiça Comum (Estadual ou Federal), no entanto, será de competência da Justiça Militar caso seja cometido por agente militar em serviço, mediante alterações efetuadas pela lei 13491/17 (GONÇALVES & BALTAZAR, 2020).

A doutrina mostra que a tortura, no Brasil, é tipificada, na maioria dos seus tipos, como crime cujos meios de execução envolvem violência (desforço físico sobre a vítima) e/ou grave ameaça (promessa de mal grave, injusto e iminente). Inclusive, a consumação se dá no momento em que a vítima é submetida a grave sofrimento físico ou  mental, decorrente da atitude do agente, ainda que este não consiga o que buscava (confissão, informações, etc). Outrossim, o crime de tortura absorve delitos menores, decorrentes dos seus meios de execução, tais como maus-tratos, lesões corporais leves, constrangimento ilegal, entre outros (JESUS, 2009).

A partir da análise do texto legal, depreende-se que foram descritos vários ilícitos diferentes ligados à prática da tortura, cada qual com suas próprias características. (GONÇALVES & BALTAZAR, 2020). Conforme referidos autores, a lei 9455/97 preconiza os seguinte tipos de crimes de tortura:

- Tortura-prova, para a prática de crime e discriminatória: Estes três tipos de tortura estão descritos no inciso I do artigo 1º da referida lei e se assemelham quanto aos meios de execução (emprego de violência e grave ameaça) e quanto aos sujeitos ativo (qualquer pessoa que cometa o ato típico) e passivo (qualquer pessoa contra quem a violência ou grave ameaça sejam executadas), sendo a forma tentada possível nos três tipos, no entanto diferem quanto aos elementos subjetivos. Assim sendo, no crime de tortura-prova o objetivo é obter informação, declaração ou confissão do sujeito passivo, enquanto na tortura para prática de crime é levar o sujeito passivo a cometer ação ou omissão criminosa, e, na tortura discriminatória, a motivação tem origem na discriminação racial ou religiosa (GONÇALVES & BALTAZAR, 2020).

 - Tortura-castigo: previsto no inciso II do artigo 1º, se refere a um crime de ação livre, ou seja, qualquer ação omissão (tais como privação de alimentos, cuidados, privação de liberdade, ou comportamentos violentos ou ameaçadores, entre outros). O elemento subjetivo associado é a motivação de expor a vítima a grave sofrimento a título de castigo ou como caráter preventivo; assemelha-se ao crime de maus tratos, mas se refere a ações extremadas e que causem intenso sofrimento. Trata-se, conforme a doutrina, de crime próprio, ou seja, o sujeito ativo deve possuir autoridade, guarda ou vigilância sobre o sujeito passivo. Sua modalidade tentada somente é prevista na forma comissiva, e não na omissiva (GONÇALVES & BALTAZAR, 2020).

- Tortura do preso: prevista no parágrafo primeiro do artigo primeiro da Lei de Tortura, se refere a uma situação bastante específica, ou seja, o sujeito passivo é, necessariamente, uma pessoa presa ou submetida a medida de segurança. Nesse caso, dentre os elementos do tipo estão a adoção de medidas não previstas na Lei de Execuções Penais ou similares, tais como solitária, aplicação de choques, sala escura, entre outros, podendo ser executado por qualquer pessoa (crime comum). Sua forma tentada é possível, quando praticado o ato previsto em lei, mas não alcançado o resultado de infringir sofrimento por circunstâncias alheias à vontade do agente (GONÇALVES & BALTAZAR, 2020).

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- Omissão perante a tortura: conforme a doutrina, trata-se de um equívoco na legislação, uma vez que a pessoa que se omite durante a execução da tortura responde pelo crime mais grave, e não pela forma atenuada (GONÇALVES & BALTAZAR, 2020). Outrossim, os autores mencionam que não constitui crime de tortura e somente se aplica a quem teria o dever de evitar a tortura, ou seja, somente a agentes públicos (crime próprio). 


Lei de Tortura: aspectos processuais

As ações penais nos crimes de tortura são de natureza pública incondicionada (GONÇALVES & BALTAZAR, 2020). Já quanto às qualificadoras, conforme sua previsão legal, se aplicam, sobretudo, aos casos em que resultam em lesão grave ou morte, sendo consideradas exclusivamente preterdolosas, ou seja, somente são aplicadas caso haja dolo na tortura e culpa no resultado agravador (JESUS, 2009).

No que se refere às causas de aumento de pena para os crimes de tortura, para além das já mencionadas (quando o sujeito ativo é agente público), caso o crime seja cometido contra criança, adolescente, gestante, portador de deficiência ou pessoa com mais de 60 anos, ou ainda, caso seja cometido mediante sequestro, haverá aumento de pena de um sexto a um terço (conforme previsão expressa na Lei de Tortura).

Em relação ao regime inicial, deveria ser necessariamente o fechado, segundo a legislação dos crimes hediondos (lei 8072/90), pois a tortura é equiparada a esses. Entretanto, mediante entendimento do Supremo Tribunal Federal, tal dispositivo é inconstitucional, portanto, na fixação do regime inicial da tortura, deverão ser seguidas as demais regras comuns do Código Penal.

No que se refere à progressão de regime, a lei 11.464/07 veio normatizar a progressão de regime de  cumprimento  da  pena  privativa  de  liberdade para os crimes hediondos ou equiparados. Nesse contexto, um réu condenado por crime não hediondo mas comparado a este, teria a possibilidade de progredir de regime mais gravoso para outro mais brando após cumprimento de um sexto da pena e bom comportamento. Porém, a lei dos Crimes Hediondos alterou essas regras, e a progressão de regime para esta natureza de delitos passou a ser de cumprimento de 2/5 da pena (primário) e de 3/5 (reincidente)  (SOUTO, 2021).

Mas, com a entrada em vigor do chamado Pacote Anticrime (lei 13964/19), essas regras foram novamente alteradas e a progressão de regime somente poderá ser obtida por agentes condenados por crimes hediondos ou equiparados mediante o cumprimento de, pelo menos 40% da pena, ou, ainda, 60% caso o agente seja reincidente em crime hediondo ou equiparado (VILELA & SILVEIRA, 2021).

Especificamente, a partir do Pacote Anticrime, mediante a alteração introduzida no parágrafo primeiro do artigo 112 da Lei de Execuções Penais, eventuais progressões de regime somente ocorrerão mediante boa conduta carcerária, submetida a comprovação do diretor do estabelecimento. Outrossim, eventual determinação judicial de progressão de regime será sempre motivada e precedida de manifestação do MP e do defensor, assim como livramento condicional, indulto e comutação de penas (NUCCI, 2020). Para condenados por crimes hediondos ou equiparados com resultado morte, fica vedada a saída temporária, mediante alterações inseridas pela mesma lei. 

No que se refere a benefícios processuais penais, observa-se que, pelo fato de se tratar de um crime equiparado a hediondo e, no geral, cometido com uso de violência e/ou grave ameaça, não se aplicaria a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos (artigo 44, Inciso I do Código Penal). Também por este motivo, não é cabível o benefício da transação penal, uma vez que tal benefício se estende a crimes com menor potencial ofensivo (artigos 72 e 79 da lei dos Juizados Especiais).

No que se refere ao benefício de suspensão condicional da pena (Sursis), conforme sua previsão expressa pelo artigo 77 do Código Penal, pode ser concedida em casos de pena privativa de liberdade não superior a dois anos. Considerando que a pena cominada para os crimes de tortura é de 2 a 8 anos, a sursis, portanto, também não se aplica.

No que tange ao benefício de suspensão condicional do processo, observa-se que, conforme sua previsão expressa pelo artigo 89 da lei 9099/95, segundo o qual somente se aplica a casos em que a pena cominada para o crime em questão seja igual ou inferior a um ano. Assim sendo, também não teria aplicação nos casos de crimes de tortura.

Quanto à possibilidade de livramento condicional, houve também alterações mediante o Pacote Anticrime, sobretudo nos incisos VI-a e VIII do artigo 112 da LEP. Assim, a partir dos quais, condenados pela prática de crime hediondo ou equiparado, com resultado morte, não poderão mais obter livramento condicional, quer sejam primários ou condenados reincidentes em referida modalidade de crime (VILELA E SILVEIRA, 2021).

Por outro lado, não está vedada a concessão de livramento condicional a pessoas condenadas pela prática de crime hediondo ou equiparado, desde que não haja resultado morte, devendo, no entanto, seguir as exigências dispostas no artigo 83 do Código Penal, pela redação dada pela lei 13964-19. Assim, somente pode ser obtido mediante o cumprimento de 2/3 da pena e desde que o réu não seja reincidente específico em crime desta natureza.


Análise de caso concreto

CRIME DE TORTURA - CONDENAÇÃO PENAL IMPOSTA A OFICIAL DA POLÍCIA MILITAR - PERDA DO POSTO E DA PATENTE COMO CONSEQUÊNCIA NATURAL DESSA CONDENAÇÃO (LEI Nº 9.455/97, ART. 1º, § 5º)– INAPLICABILIDADE DA REGRA INSCRITA NO ART. 125, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO, PELO FATO DE O CRIME DE TORTURA NÃO SE QUALIFICAR COMO DELITO MILITAR - PRECEDENTES - SEGUNDOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO - INOCORRÊNCIA DE CONTRADIÇÃO, OBSCURIDADE OU OMISSÃO - PRETENSÃO RECURSAL QUE VISA, NA REALIDADE, A UM NOVO JULGAMENTO DA CAUSA - CARÁTER INFRINGENTE - INADMISSIBILIDADE - PRONTO CUMPRIMENTO DO JULGADO DESTA SUPREMA CORTE, INDEPENDENTEMENTE DA PUBLICAÇÃO DO RESPECTIVO ACÓRDÃO, PARA EFEITO DE IMEDIATA EXECUÇÃO DAS DECISÕES EMANADAS DO TRIBUNAL LOCAL - POSSIBILIDADE - EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NÃO CONHECIDOS. TORTURA - COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM – PERDA DO CARGO COMO EFEITO AUTOMÁTICO E NECESSÁRIO DA CONDENAÇÃO PENAL . - O crime de tortura, tipificado na Lei nº 9.455/97, não se qualifica como delito de natureza castrense, achando-se incluído, por isso mesmo, na esfera de competência penal da Justiça comum (federal ou local, conforme o caso), ainda que praticado por membro das Forças Armadas ou por integrante da Polícia Militar. Doutrina. Precedentes . - A perda do cargo, função ou emprego público  que configura efeito extrapenal secundário constitui consequência necessária que resulta, automaticamente, de pleno direito, da condenação penal imposta ao agente público pela prática do crime de tortura, ainda que se cuide de integrante da Polícia Militar, não se lhe aplicando, a despeito de tratar-se de Oficial da Corporação, a cláusula inscrita no art. 125, § 4º, da Constituição da República. Doutrina. Precedentes. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO - UTILIZAÇÃO PROCRASTINATÓRIA - EXECUÇÃO IMEDIATA - POSSIBILIDADE . - A reiteração de embargos de declaração, sem que se registre qualquer dos pressupostos legais de embargabilidade (CPP, art. 620), reveste-se de caráter abusivo e evidencia o intuito protelatório que anima a conduta processual da parte recorrente . - O propósito revelado pelo embargante, de impedir a consumação do trânsito em julgado de decisão que lhe foi desfavorável  valendo-se, para esse efeito, da utilização sucessiva e procrastinatória de embargos declaratórios incabíveis, constitui fim que desqualifica o comportamento processual da parte recorrente e que autoriza, em consequência, o imediato cumprimento da decisão emanada desta Suprema Corte, independentemente da publicação do acórdão consubstanciador do respectivo julgamento. Precedentes.

(STF - AI: 769637 MG, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 25/06/2013, Segunda Turma, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-205 DIVULG 15-10-2013 PUBLIC 16-10-2013)

O caso em epígrafe trata de decisão emitida pelo Supremo Tribunal Federal, sob a então presidência do ministro Celso de Mello (2013), envolvendo embargos de declaração, questionando a conformidade do julgamento, pela Justiça Comum, de crime de tortura contra adolescente cometido por policial militar em serviço.

Para além das questões processuais em questão, mediante as quais os embargos declaratórios acerca de temas já julgados anteriormente por essa mesma corte estavam sendo, aparentemente, utilizados como forma de protelar a execução das penalidades já sentenciadas, ressalta-se o entendimento em relação à competência pelo julgamento do crime de tortura cometido por policial militar.

Considerando a legislação vigente à época, o entendimento da Corte foi no sentido de que o crime de tortura não se enquadraria no rol de crimes militares a serem julgados pela Justiça especializada Militar, e sim pela Justiça comum. Nos fundamentos da decisão proferida, foram citados outros julgados anteriores na mesma direção, repetidamente afastando a jurisdição militar acerca dos crimes de tortura, ainda que cometidos por policiais militares no exercício de sua função.

A decisão proferida remete, portanto, à existência de jurisprudência a respeito, mediante a qual fica destacado o entendimento de que policiais militares, sob o argumento de reprimir crimes em nome do estado, perpetrando danos físicos a adolescentes sujeitos a seu poder, estariam cometendo desempenho funcional abusivo e praticando crime de tortura. Nas palavras do ministro:

Torna-se importante insistir na afirmação, Senhores Ministros, de que a tortura, além de expor-se a um juízo de reprovabilidade ético-social, revela, no gesto primário e irracional de quem a pratica, uma intolerável afronta aos direitos da pessoa humana e um acintoso desprezo pela ordem jurídica estabelecida. Trata-se de conduta cuja gravidade objetiva torna-se ainda mais intensa, na medida em que a transgressão criminosa do ordenamento positivo decorra do abusivo exercício de função estatal. (BRASIL, 2013, P. 5)

Como precedentemente salientado, e considerando a circunstância de o crime de tortura não se qualificar como delito castrense, não se aplicará ao policial militar, quando condenado pela prática dessa infração penal, a cláusula constitucional fundada no § 4º do art. 125 da Constituição, a significar, portanto, que o servidor público militar perderá a sua graduação (se praça) ou o seu posto e patente (se oficial) como consequência natural e direta do próprio juízo condenatório fundado na Lei nº 9.455/97, que tipifica o crime de tortura. (BRASIL, p. 10)

    Assim sendo, o julgado em questão, com caráter jurisprudencial, refletiu normas legais vigentes na época e reiterou valores constitucionais fundamentais, mostrando-se condizente com o ordenamento jurídico brasileiro, ao considerar o crime de tortura como de competência da justiça comum, independentemente de sua autoria.

Entretanto, apesar da relevância do tema e do entendimento dos ministros da corte suprema brasileira, com o advento da lei 13491/17, mudanças importantes ocorreram neta seara. Referida lei, promulgada pelo então presidente da República, Michel Temer, fez alterações no Código Penal Militar (CPM- decreto-lei 1001 de 21 de outubro de 1969). Assim sendo, mediante a nova redação que deu do artigo 9º, a lei 13491/17 estabeleceu que, a partir de então, passou-se a considerar crimes militares, mesmo em tempos de paz, aqueles previstos no CPM e inclusive os previstos na legislação penal.

Referida lei, em seu histórico, foi concebida em caráter de lei temporária, com a finalidade de incidir sobre homicídios praticados contra civis, por policiais militares federais, durante as Olimpíadas no Rio de Janeiro (HOFFMAN & BARBOSA, 2017). No entanto, em função de ajuste político, combinou-se o veto ao dispositivo que garantia caráter transitório da mesma, e sua transformação em permanente, afastando a competência do Tribunal do Júri em relação aos membros das Forças Armadas (HOFFMAN & BARBOSA, 2017).

Dessa forma, após o advento da referida lei, crimes de tortura perpetrados por policiais militares em exercício de sua função alcançam, portanto, o status de crime militar e, portanto, podem ser julgados pela Justiça Militar. Assim, desde então, esta interpretação tem sido aplicada no julgamento de crimes desta natureza, cometidos após a vigência da mesma.

Há, no entanto, críticas relevantes a referida alteração, externadas inclusive por órgãos internacionais, pois entende-se que o julgamento de crimes de tortura, perpetrados por agentes públicos, dentro de Tribunais Militares, pode fragilizar a imparcialidade e o alcance da punibilidade previstas para este tipo de crime. O Escritório para América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos argumentaram, à época, que:

 (...) a investigação e o julgamento por tribunais militares de denúncias de violações de direitos humanos cometidas por militares, especialmente por supostas violações contra civis  impedem a possibilidade de uma investigação independente e imparcial realizada por autoridades judiciais não vinculadas à hierarquia de comando das próprias forças de segurança. (OEA, 2017).

Outrossim, ações diretas de inconstitucionalidade foram propostas, tais como a ADI 5.804/RJ e ADI 5901/DF, podendo resultar em determinação de suspensão da aplicação da lei 13491/17.   


Considerações finais

O Brasil foi um dos últimos países a formalizar a tipificação penal da tortura, na esteira de movimentos e convenções internacionais, no âmbito dos Direitos Humanos, que previam tal criminalização. Trata-se de importante marco no Direito Criminal do país, uma vez que reflete mudanças constitucionais ocorridas em 1988, em termos de reconhecimento de direitos fundamentais, envolvendo a dignidade da pessoa humana como valor fundamental a ser reconhecido na política criminal brasileira.

Neste ínterim, a Lei da Tortura brasileira foi promulgada em 1997 e abarca diferentes tipos criminais, envolvendo tortura para obtenção de provas, tortura como castigo, tortura contra o preso, tortura discriminatória, entre outros. Trata-se de um crime equiparado a crimes hediondos, com pena variando entre 2 e 8 anos de prisão, havendo causas de aumento de pena em caso do crime ser cometido por agentes públicos.

Considerando-se a importante incidência histórica das práticas de tortura, sobretudo na realidade brasileira, como forma de imposição do poder durante o regime militar, a tipificação da tortura como crime comum teve o condão de ampliar e uniformizar sua aplicação. No entanto, alterações recentes na legislação transferiram para a Justiça Militar o julgamento de crimes cometidos por agentes públicos militares no exercício de sua função (incluindo os de tortura), o que tem sido visto, por juristas e entidades internacionais ligadas aos Direitos Humanos, como  forma de obstaculizar o combate à tortura institucional no Brasil. A constitucionalidade de referidas alterações tem sido questionada, havendo ações diretas de inconstitucionalidade que podem vir a suspender a eficácia da lei , 13491/17, visando corrigir o que pode ser visto como retrocesso, em termos de combate à tortura no Brasil.


Referências

BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL FEDERAL. STF - AI: 769637 MG, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 25/06/2013, Segunda Turma, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-205 DIVULG 15-10-2013 PUBLIC 16-10-2013)

GONÇALVES, V. E. R. & BALTAZAR, J. P. Legislação penal especial esquematizado. Coord. Pedro Lenza, 6ª Ed. São Paulo, Saraiva Educação, 2020.

HOFFMAN, H.; BARBOSA, R. M., Ampliação de competência militar é inconstitucional e inconvencional. Revista Consultor Jurídico, 28 de novembro de 2017.

JESUS, M. G. M. O crime de tortura e a justiça criminal: um estudo dos processos de tortura na cidade de São Paulo. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.

MACHADO, N. J. M R. Da tortura: aspectos conceituais e normativos. Revista do Centro de Estudos Judiciários, Brasília, n. 14, p. 14-32, mai./ago. 2001

NUCCI, G. S. Manual de Direito Penal. 16ª Ed. Rio de Janeiro, Forense, 2020.

OEA, CIDH.  ONU Direitos Humanos e CIDH rechaçam de forma categórica o projeto de lei que amplia jurisdição de tribunais militares no Brasil. Comunicado de imprensa 160/17, disponível em: http://www.oas.org/pt/cidh/prensa/notas/2017/160.asp

OLIVEIRA, J. C. S.& SOUZA, H. R. A. Estudo histórico e jurídico da lei nº 9.455/97: tortura. Revista Brasileira de Direito e Gestão Pública (Pombal - Paraíba, Brasil), v. 1, n. 1, p. 22-27, jan.-mar., 2013

SOUTO, F. G. Crimes Hediondos: Análise propedêutica e progressão especial de regime instituída pela lei 13.769/18 Colloquium Socialis, Presidente Prudente, v. 05, n. 1, p. 12-19jan/mar2021

VILELA, A. L. C.; SILVEIRA, V.P.C. Pacote Anticrime: nova definição de crimes hediondos e os efeitos da lei 13649/19 sobre a progressão de regime. Jornal Eletronico Faculdades Integradas Viana Junior, V13, n, 1, p. 218-233, jan-jun 2021

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Sobre a autora
Nicole Medeiros Guimarães

Bacharel em Direito pela UNAERP, psicóloga judiciária no Tribunal de Justiça de São Paulo, doutora e mestre em Psicologia pela USP-Ribeirão Preto.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUIMARÃES , Nicole Medeiros. A criminalização da tortura no Brasil: história, doutrina e processo penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7054, 24 out. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/100484. Acesso em: 21 nov. 2024.

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