4. Das Revoluções à Declaração de 1948. Não cabe aqui fazer extensas digressões históricas sobre o amadurecimento dos conceitos éticos no âmbito do direito interno dos Estados, fundado na dignidade e na universalidade do ser humano e no alargamento da democracia no pós-Revoluções, para justificar a transposição dos direitos do homem para a esfera internacional no século XX. Valem, contudo, algumas breves notas para compreender o paradoxo do caminho percorrido pelos direitos do homem até a Declaração de 1948.
No século XIX, relata Lafer, três ações internacionais podem ser mencionadas entre as pioneiras em defesa dos direitos humanos. A primeira delas foi a tentativa inglesa de eliminar o tráfico de escravos que se tornara "incompatível com o nível de modernidade econômica e política daquele país" [24], iniciativa encampada pelos americanos que se propunham a apreender navios negreiros nas costas africanas como forma de combater a escravidão, um crime universalmente reprovável pela law of nations, tal como reconhecido pela Suprema Corte em casos como no caso US x Schooner La Eugénie em 1822 [25].
A despeito da atentar contra os mais basilares princípios cristãos, como se apregoava no Law of Nations, desde a revolução industrial (Séculos XVIII e XIX) a escravidão passou também a ser incompatível como o novo modelo de produção. Nesta perspectiva, a Inglaterra promulgou o Bill Alberdeen, que condenava o tráfico escravo e exigia, indiretamente, das nações com as quais desenvolvia relações comerciais, ações concretas para a extinção do tráfico negreiro. Em 25 de setembro de 1826 sobreveio a Convenção de Genebra sobre Tráfico de Escravos, que expressamente passou enquadrar o princípio do Law of Nations de repúdio ao tráfico negreiro, possibilitando aos Estados Unidos e as demais países em industrialização, entre estes a Inglaterra, com base num direito positivo, o combate mais efetivo ao tráfico negreiro, especialmente aquele realizados por países europeus e colonialistas como Portugal e Espanha.
A segunda ação foi representada pela iniciativa de Henri Dunant que organizou uma conferência internacional para discutir o sofrimento das pessoas em conflitos armados interestatais. "Dessa iniciativa resultou a Primeira Convenção de Genebra (1864), que positiva o direito humanitário, bem como a criação da Cruz Vermelha. Nesse caso interesse dos Estados em assinar essa convenção encaixasse também na perspectiva grociana, dos interesses comuns em disciplinar o uso da força, ainda que a motivação do criador da Cruz Vermelha tenha sido eminentemente ética" [26]. Ainda no século XIX surge ainda a preocupação não somente com as vítimas, mas também com a forma e meios pelos quais os conflitos armados se desenvolvem, elementos diretamente relacionados com as razões do sofrimento humano, como a Convenção de São Petersburgo de 1868, sobre balas explosivas, que está na origem do Direito Humanitário que tomaria corpo com as convenções de Haia.
A terceira ação identificada por Lafer no desenvolvimento do princípio da proteção estatal internacional sobre seus nacionais e o "instituto da intervenção por humanidade, segundo o qual os Estados têm direito de intervir em favor dos nacionais de outro Estados que estejam sendo vítimas de violações flagrantes e atrozes dos direitos humanos". Esse "direito" é de reconhecimento extremamente polêmico e seu exercício sempre se deu em conjunto com outros fatores. Lafer relata que a primeira iniciativa desta natureza ocorreu em 1830 pelos ingleses em favor dos gregos [27]. Atualmente reconhece-se que nenhum Estado pode intervir, ainda que por razões humanitárias, isoladamente ou em grupo, noutro Estado sem prévia aprovação do Conselho de Segurança, pois o uso unilateral da força pode minar todo o sistema de segurança internacional. As flagrantes violações aos direitos humanos levam ao caos e à anarquia, mas devem ser combatidas somente sob ordem do Conselho de Segurança [28].
Já no século XX a primeira iniciativa importante para a transposição está representada no Tratado de Paz que pôs fim à Primeira Guerra – o Tratado de Versalhes, de 1919 – cuja Parte I estabelece a Sociedade das Nações, dispondo sobre "direito dos povos" além de direitos do homem, e a Parte XIII, que criou a Organização Internacional do Trabalho, cujos propósitos eram a promoção de condições melhores de trabalho e apoio ao direito de associação. Para alguns Estados, esses direitos foram reconhecidos como fundamentais no corpo das Constituições. Apesar deste pioneirismo a Sociedade falhou em seus propósitos de manter a paz e a segurança internacionais, falhou principalmente em evitar a Segunda Guerra Mundial, cujos reflexos no campo político, econômico, cultural e social, enfim na Humanidade, mudariam definitivamente o Mundo contemporâneo. O flagelo da guerra serviria para construir um sistema de proteção aos direitos do homem mais amplo e de orientação internacional, de "fora para dentro" dos Estados, num movimento contrário àquele de transposição.
A Sociedade das Nações (SDN) nem havia se dissolvido (isso ocorreu em 18 de abril de 1946, com fim de existência jurídica em 31 de julho de 1947) quando já vigorava a Carta das Nações Unidas desde 24 de outubro de 1945, resultado da Conferência de São Francisco (25 de abril a 26 de junho de 1945), que consolidara as negociações entre Estados Unidos, Reino Unido, União Soviética e China levadas a efeito em Dumbarton Oaks (1944) e Yalta (1945) [29].
Num momento inicial, a ONU e a Carta foram um passo muito importante para o movimento de transposição dos direitos do homem representada pela própria Carta, pela Declaração de 1948 e pelos dois Pactos de 1966 e, muito mais importante ainda, para sua fase consolidação e implementação a partir da Primeira Conferência Internacional de Direitos Humanos em Teerã (1968) [30].
No âmbito das Nações Unidas, principalmente na Assembléia Geral, o tratamento dos direitos humanos fez emergir o que podemos chamar de "novas liberdades". Alijadas do Conselho de Segurança, os Estados utilizaram-se da Assembléia Geral para declarar princípios e direitos que, ao longo dos anos e da prática dos Estados, tornar-se-iam costumes internacionais e princípios gerais de direito internacional. A proteção à liberdade do indivíduo emergiria com a iniciativa da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948; as liberdades políticas, sociais, culturais e econômicas, com os Pactos de 1966; as liberdades dos povos com o movimento de descolonização e afirmação da autodeterminação [31] e da democracia como instrumentos de paz e segurança internacionais reforçados a partir da década de 1970; a proteção dos refugiados, das minorias, das pessoas nos conflitos armados pelo direito humanitário.
Constata-se, então, que os ideais revolucionários franceses da liberdade, da igualdade e da fraternidade foram tomados como gêneros inspiradores das diversas espécies de direitos do homem objeto da generalização e especialização entre meados do século XIX e do século XX, principalmente no âmbito das nações Unidas. Assim, a dinâmica do conceito de liberdade inspirou os chamados direitos do homem de primeira geração; a igualdade está representada nos direitos civis e políticos, de segunda geração; ao passo que a fraternidade pode ser entendida como base axiológica dos direitos de terceira geração, a exemplo do direito ao desenvolvimento e da cooperação. Aos direitos do homem afetos à liberdade, os direitos de primeira geração, foi reconhecida a inderrogabilidade. Daí falar-se em liberdade como um conceito de conteúdo plural, como "liberdades" e não como "direitos", contrariamente ao que defendeu HAYEK, merecendo críticas de ARON [32]
A elaboração do texto da Declaração teve lugar no seio da Comissão de Direitos Humanos da ONU entre 1947 e 1948, concebida como uma declaração que deveria ser complementada por dois pactos posteriores (e um primeiro protocolo facultativo), sobre direitos civis e políticos (artigos 2/21) e sobre econômicos, sociais e culturais (artigos 22/28), abertos para votação na Assembléia Geral da ONU em 1966 [33], que entrou em vigor em 1976. Concretizava-se, então, a Carta Internacional de Direitos Humanos e se completava a base geral para que se iniciasse o processo de implementação de suas disposições, lançada na I Conferência Mundial de Direitos Humanos (Teerã, 1968).
Neste contexto, dada sua característica de soft law, a Declaração não representou uma aprovação imediata de seu conteúdo representada pela incorporação e positivação de seus princípios pelos Estados em suas respectivas Constituições, principalmente pelos Estados onde as violações eram mais evidentes. Vale lembrar que o colonialismo quedava apenas na década de 70 e que esse mesmo colonialismo foi um dos principais responsáveis pelas mais horrendas violações dos direitos humanos principalmente na África, sendo quase que dispensável o recurso à memória sobre o Congo (ex-Zaire) para justificar essa assertiva, ou mesmo à política de discriminação racial promovida pelo Apartheid. Na verdade, a Declaração Universal dos Direitos do Homem revela, como em tantas outras situações no direitos internacional, o caminho inverso na positivação de direitos na esfera internacional. "A declaração é um rol solene de direitos que o Estados costumam julgar desejável atribuir às pessoas, mas que se recusam admitir como imperativos" [34], esse o grande entrave percebido em sua fase de implementação. Aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas a Declaração nasceu com status político relevante que se comprovou ao longo dos anos, mesmo carecendo, sob o ponto de vista estritamente legal, de poder vinculante para os Estados da ONU. Mas isso não lhe retirou seu verdadeiro valor universal, nem negou sua irreversível internacionalização [35].
Após a adoção da Declaração Universal, a Carta Internacional dos Direitos Humanos completou-se com a adoção de dois pactos nas Nações Unidas: de Direitos Civis e Políticos (e [primeiro] Protocolo Facultativo), e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966). Também se teve três pactos regionais: americano (OEA), europeu e africano (OUA), além de uma série de convenções voltadas para situações concretas, específicas, como a discriminação, tortura, genocídio - ou a grupos (mulheres, crianças, velhos, minorias, deficientes) [36]. Referências expressas à Declaração de 1948 podem ser conferidas na Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial (1965) e de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979), da Convenção sobre Direitos da Criança (1989), Convenção sobre a Supressão e Punição do Crime de Apartheid (1973), da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951), da Convenção das Nações Unidas contra Tortura (1984), da Convenção da UNESCO contra a Discriminação na Educação (1960), da Convenção nº 111 da OIT sobre Discriminação Relativa a Emprego e Ocupação (1958), além dos acordos regionais, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), na Convenção Européia de Direitos Humanos (1950) e na Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos (1981).
Para concluir, retomando as observações que lançamos à guisa de introdução, consideremos as referidas mudanças no conteúdo da "liberdade" ocorridas entre as Revoluções e a Declaração de 1948, as quais alteraram também seu significado conceitual. "Liberdade" e "Igualdade" não têm hoje o mesmo significado que lhe emprestou Locke, nem aquele das declarações revolucionárias.
Bobbio lembra que a primeira ampliação do conceito de liberdade – da liberdade como não impedimento para a liberdade como "autonomia" – é representada pela obediência a "leis intimamente desejadas e internamente estabelecidas", de inspiração contratualista rosseauniana, ou seja, da "obediência á lei que prescrevemos a nós mesmos". A segunda mutação ocorreu quando se passou de uma concepção negativa para uma positiva de liberdade, ou seja, não mais como uma faculdade negativa, mas como um "poder positivo, isto é, de capacidade jurídica e material de tornar concretas as abstratas possibilidades garantidas pelas constituições liberais. Tal como a liberdade política diferenciara a teoria democrática em relação à teoria liberal, da mesma forma a liberdade positiva, como poder efetivo, caracterizou no século XIX as várias teorias sociais, em especial as socialistas, em comparação á concepção puramente formal da democracia [37]".
Atualmente, quando dizemos que o ser humano é livre, a expressão explicita três situações distintas: a) que todo ser humano deve ter uma esfera de atividades protegida da ingerência externa, em especial do Estado; b) que todo ser humano deve participar de forma direta ou indireta da formação das leis que irão regular sua esfera de condutas; c) que todo ser humano deve ter o poder de converter comportamentos abstratos em concretos previstos pelas leis que lhe atribuem este ou aquele direito. Em resumo, como destaca Bobbio, "a imagem do homem livre apresenta-se como a imagem do homem que não deve tudo ao Estado por que sempre considera a organização estatal como instrumental e não como final; participa diretamente ou indiretamente da vida do Estado, ou seja, da formação da chamada vontade geral; têm poder econômico suficiente para satisfazer algumas exigências fundamentais da vida material e espiritual, sem as quais a primeira liberdade é vazia, a segunda é estéril".
Todos esses conceitos de liberdade estão presentes na Declaração de 1948: a liberdade negativa nos artigos que se referem aos direitos pessoais e aos tradicionais direitos de liberdade (artigos 7 a 20); a liberdade política no artigo 21; a liberdade positiva, nos artigos 22 a 27, que se referem aos direitos a segurança social, em geral, aos direitos econômicos, sociais e culturais, objeto dos segundo dos Pactos de 1966 [38].
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