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Ações afirmativas à brasileira: necessidade ou mito? A implementação para negros como mecanismo concretizador de direitos fundamentais.

Uma análise histórico-jurídico-comparativa do negro nos Estados Unidos da América e no Brasil

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III – Conceito. Objeto. Objetivos das Ações Afirmativas

Antes de vislumbrarmos quais devam ser os critérios a nortear as ações afirmativas à brasileira, cumpre-nos, inicialmente, conceituar as ações afirmativas. Com efeito, trata-se de instrumento temporário de política social, praticado por entidades privadas ou públicas, nos diferentes poderes e nos diversos níveis, por meio do qual se visa a integrar certo grupo de pessoas à sociedade, objetivando aumentar a participação desses indivíduos sub-representados em determinadas esferas, nas quais tradicionalmente permaneceriam alijados por razões de raça, sexo, etnia, deficiências física e mental ou classe social. Procura-se, com tais programas positivos, promover o desenvolvimento de uma sociedade plural, diversificada, consciente, tolerante às diferenças e democrática, uma vez que concederia espaços relevantes para que as minorias participassem da comunidade.

É importante destacar que a adoção de políticas afirmativas deve ter um prazo de duração, até serem sanados ou minimizados os efeitos do preconceito e da discriminação sofridos pelas minorias desfavorecidas. Se as ações afirmativas visam a estabelecer um equilíbrio na representação das categorias nas mais diversas áreas da sociedade, quando os objetivos forem finalmente atingidos, tais políticas devem ser extintas, sob pena de maltratarem a necessidade de um tratamento equânime entre as pessoas, por estabelecerem distinções não mais devidas.

Para ser sujeito passivo das ações afirmativas, é preciso ainda demonstrar que a discriminação contra aquele grupo determinado atua de maneira poderosa e decisiva, a impedir ou a dificultar substancialmente o acesso das minorias a determinadas esferas sociais, como ao mercado de trabalho e à educação. Deve-se, ainda, comprovar que não há uma projeção de integração natural de determinada minoria em um futuro próximo, de modo que se nada for feito, não haverá qualquer tipo de mudança social relevante, dentro de um espaço razoável de tempo.

Os defensores dos programas afirmativos procuram justificar a opção por tais programas a partir, basicamente, de duas teorias: a da Justiça Compensatória e a da Justiça Distributiva. Apesar de ambas procurarem inserir os desfavorecidos, são, de fato, teorias distintas: enquanto a teoria distributiva é um pleito de justiça no presente, a compensatória quer buscar a justiça pelo passado. A Justiça Compensatória baseia-se na retificação de injustiças ou de falhas cometidas contra indivíduos no passado, ora por particulares, ora pelo governo. O fundamento deste princípio é relativamente simples: quando uma parte lesiona a outra, tem o dever de reparar o dano, retornando a vítima à situação que se encontrava antes de sofrer a lesão. Propriamente dita, a teoria compensatória é a reivindicação para que se repare um dano ocorrido no passado em relação aos membros de determinado grupo minoritário. Por meio desta teoria, assevera-se que o objetivo dos programas afirmativos para os negros seria o de promover o resgate da dívida histórica, e que tal dívida teria sido o período de escravidão à que foram submetidos.

O problema da adoção dessa teoria para justificar a imposição de políticas afirmativas é que se afigura deveras complicado responsabilizar, no presente, os brancos descendentes de pessoas que, em um passado remoto, tiveram escravos. Além disso, revela-se bastante difícil conseguir identificar quem seriam os corretos beneficiários do programa, já que os negros de hoje não foram vítimas da escravidão [18]. Dessarte, culpar pessoas inocentes, responsabilizando-as pela prática de atos dos quais discordam seriamente parece promover a injustiça, em vez de procurar alcançar a eqüidade. Assim, a teoria compensatória não poderia ter espaço quando os indivíduos que são tratados como grupo – seja daqueles que promoveram a escravidão, seja dos descendentes dos antigos senhores escravocratas - não endossaram as atitudes em relação às quais serão responsabilizados ou, então, não exerceram qualquer tipo de controle em relação a elas [19].

Ademais, haveria ainda o problema de identificar quem seriam os possíveis beneficiados da política compensatória. Todos os descendentes de africanos? E os negros que imigraram para o País recentemente, teriam direito? Por outro lado, em um País miscigenado como o Brasil, saber quem é ou não descendente de escravos se afigura uma missão praticamente impossível. O País adotou a mão-de-obra escrava por um período de 300 anos, mas durante todos os 500 anos, desde o início da colonização, houve uma miscigenação constante entre as raças. Como o Brasil nunca conheceu leis que proibissem o relacionamento inter-racial, ou o casamento entre negros e brancos, essa prática foi amplamente difundida, e muitas vezes até motivada.

Outro fundamento para a aplicação de medidas positivas seria a teoria da Justiça Distributiva, que, por sua vez, diz respeito à redistribuição de direitos, benefícios e obrigações pelos membros da sociedade. A teoria distributiva diz respeito à promoção de oportunidades por meio de políticas públicas para aqueles que não conseguem se fazer representar de maneira igualitária. Nesse sentido, o Estado passaria a redistribuir os benefícios aos cidadãos, de maneira a tentar compensar as desigualdades que o preconceito e a discriminação efetuaram no passado e continuam a efetivar no presente [20]. Assim, procura-se minimizar a exclusão na sociedade de certos grupos minoritários, tendo em vista a necessidade de promover a concretização e efetivação do princípio da igualdade, como direito fundamental.

É importante destacar que apesar de as medidas inclusivas raciais não visarem, especificamente, à desqualificação dos não-beneficiados, de qualquer modo a implementação dessa política pode gerar prejuízos para aqueles que não foram contemplados. É a chamada discriminação reversa, que ocorre quando as políticas afirmativas reservam vagas específicas para grupos beneficiados. E é por isso que se deve ter cautela na escolha dos critérios a ensejar uma política afirmativa, haja vista que a eleição de fatores não justificáveis pode ofender os princípios da igualdade e da proporcionalidade, além de não serem considerados legítimos.

Os defensores das ações afirmativas sugerem ainda que tais políticas seriam benéficas para toda a sociedade por promoverem a inserção de representantes de diferentes minorias em ambientes nos quais, normalmente, não teriam acesso, possibilitando o surgimento de uma sociedade mais diversificada, aberta, tolerante, miscigenada e multicultural. No entanto, essa linha de raciocínio mais uma vez demonstra a necessidade de o tema, no Brasil, ser tratado de maneira própria e com cautela. Isto porque, segundo nos parece, assertivas em favor da diversidade podem fazer mais sentido em países como os Estados Unidos, no qual até a década de 1970 praticamente não havia um só local em que negros e brancos pudessem interagir de forma pacífica [21]. Já no Brasil, argumentos nesse sentido dificilmente seriam defensáveis. Isto porque, neste País, não há como se defender a existência de uma cultura paralela formada pelos negros, à qual os brancos só tenham acesso muito raramente [22]. No Brasil, a existência de valores nacionais, comuns a todas as raças parece quebrar o estigma da classificação racial maniqueísta. Encontram-se elementos da cultura africana em praticamente todos os ícones do orgulho nacional, seja na identidade que o brasileiro tenta construir, seja na imagem do País difundida no exterior, como samba, carnaval, futebol, capoeira, pagode, chorinho, mulata e molejo. A unidade do Brasil não depende da pureza das raças, mas antes da lealdade de todas elas a certos valores essencialmente panbrasileiros, de importância comum a todos. E mais. a participação crescente de negros e mulatas em propagandas, em programas de televisão, atuando inclusive como protagonistas, encenando membros de famílias de classe média, representando o Brasil em concursos internacionais de beleza, sugere que, esteticamente, a concepção de boa aparência no Brasil está mudando, acompanhando a tendência mundial de valorização do tipo africano. Ainda se poderia mencionar que a tendência crescente de criação de produtos de beleza específicos para os negros funciona, ao menos, como um forte indicativo de que o negro está sendo visto pelas empresas como uma fatia relevante do mercado consumidor, a merecer atenção especial, destacada e autônoma.

Observação importante no que se refere às modalidades de programas positivos é que estas não podem ser reduzidas à fixação de cotas. As cotas são apenas um dos mecanismos existentes na aplicação das políticas públicas de proteção às minorias desfavorecidas, e podem aparecer não somente com a reserva de vagas em universidades, mas também na estipulação de determinada porcentagem de empregos reservada para determinados grupos. É preciso destacar, no entanto, que existem diversas outras modalidades de medidas positivas, como bolsas de estudo, reforço escolar, programas especiais de treinamento, cursinhos pré-vestibulares, linhas especiais de crédito e estímulos fiscais diversos. Por sua vez, o sistema de cotas é bastante criticado, porque provoca a discriminação reversa, atingindo diretamente o direito de outros, que não promoveram a discriminação. A escassez dos bens sociais, como o acesso às Universidades e a aos concursos públicos, faz com que a reserva de vagas seja observada como uma ofensa ao tratamento igualitário. Em larga medida, a política de cotas fere o princípio da igualdade, porque os não-beneficiados acabariam por ser tratados de maneira desigual, na medida em que se delimita o direito de acesso a todos, com a redução no número das vagas disponíveis. Assim, pessoas inocentes terminariam sofrendo as conseqüências de atos - o preconceito e a discriminação que impediram o acesso das minorias - para os quais não deram causa, e em relação aos quais, em tese, podem divergir profundamente.

Se as ações afirmativas adotadas não forem numericamente fixadas por meio de cotas, os efeitos da política positiva seriam diluídos entre toda a sociedade e, assim, não haveria o risco de discriminar reversamente alguém. E se porventura houvesse a necessidade de adotar uma política afirmativa mais agressiva, ao menos que fosse a partir de um plano de metas, que funcionam como ideal a ser perseguido. É de se ressaltar que, nos Estados Unidos, o sistema de cotas para acesso às Universidades nunca foi considerado constitucional [23].

A concretização de ações afirmativas para negros pode ainda suscitar outros problemas. De início, haveria o afastamento do critério republicano meritocrático, o que poderia, perigosamente, aumentar o racismo, ao incitar o ódio entre as raças. Nessa linha, poder-se-ia gerar hostilidade em relação aos beneficiados, com possíveis efeitos negativos sobre o reconhecimento social e a auto-estima daqueles a quem supostamente se favorece [24].


IV – A raça a ensejar Ações Afirmativas no Brasil

A palavra raça pode ser empregada nas mais diferentes maneiras. Pode ter um sentido de fenótipo, a revelar um conjunto de características físicas, como cor da pele, cor e textura do cabelo, cor e formato dos olhos, formato do nariz e espessura dos lábios. Pode, ainda, significar uma região específica do planeta, como por exemplo, quando se fala em raça africana, raça oriental, raça ocidental. Ou, além, pode ter um sentido biológico, como a reunião de pessoas em grupos de indivíduos que possuam características específicas e distintas dos outros grupos. Até o final do século XIX, os cientistas promoveram diversas tentativas de classificar biologicamente as pessoas em raças distintas. Mas como afirma o geneticista Cavalli-Sforza: "Os resultados, muitas vezes contraditórios, constituem um bom indício da dificuldade do empreendimento. Darwin compreendeu que a continuidade geográfica frustraria toda tentativa de classificar as raças humanas. Ele observou um fenômeno recorrente ao longo da história: diferentes antropólogos chegaram a contagens totalmente discrepantes do número de raças — de três a mais de cem" [25].

O interesse científico em classificar os homens em raças biologicamente distintas chocava-se com a mobilidade com que as características raciais mudavam. Nesse sentido, o geneticista Sérgio Pena explicou que a espécie humana é "demasiadamente jovem e móvel para ter se diferenciado em grupos tão distintos [26]". E, ainda que se quisesse fazer uma aproximação da quantidade de raças existentes no mundo, os números poderiam ultrapassar um milhão de raças distintas [27]. Nessa óptica, o mapeamento do genoma humano confirmou a impossibilidade de divisão dos homens em raças [28]. Assim, poder-se-ia indagar sobre o que levaria à permanência do interesse em utilizar-se do critério racial? Por que a insistência nesse enfoque divisório?

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Na verdade, o conceito de raça subsiste, atualmente, porque, a despeito de não poder ser analisado sob o espectro biológico, permanece o interesse pela construção cultural do tema. O fato de, biologicamente, não ser possível classificar as pessoas segundo as raças, não quer dizer que o conceito cultural de raça inexista. A importância da classificação advém do aspecto social, para estudarmos o modo como cada comunidade classifica seus indivíduos e analisarmos as razões que justificaram a opção pelos critérios eleitos em cada sociedade.

Nesse sentido, o estudo sobre a maneira como se procedeu à classificação das raças na sociedade norte-americana e na brasileira será de importância reveladora, porquanto exibirá as diferenças que presidem as relações raciais nos Estados Unidos e no Brasil.

IV.1) Sistemas de classificação racial

a) O sistema birracial norte-americano

Nos Estados Unidos, para que o sistema segregacionista se efetivasse, e os norte-americanos pudessem dividir as atividades sociais proibidas para os negros e as reservadas apenas para os brancos, fez-se necessário aplicar um sistema de classificação racial bastante excludente. Não bastava tentar classificar as pessoas segundo a cor que aparentavam, era preciso adotar um critério por meio do qual se alijasse a maior quantidade de pessoas possíveis. Assim, para poder delimitar ao máximo aqueles que pudessem ser considerados brancos, a sociedade segregacionista norte-americana criou um critério de classificação racial segundo a ancestralidade do indivíduo. Naquela sociedade, diferentemente do Brasil, nunca existiu um percentual muito grande de negros, já que escravidão era uma instituição regional, havia se limitado praticamente aos estados do sul e desenvolvera-se tardiamente.Dessa forma, nos Estados Unidos, seriam consideradas negras as pessoas que possuíssem quaisquer ascendentes africanos, mesmo que estes fossem antepassados longínquos. Em alguns casos, o Judiciário Estadual limitou a fixação da ascendência em trinta e dois graus; em outros, em dezesseis e até em oito graus, mas, como regra geral, não havia limitação. Tal critério tornou-se conhecido como a regra da uma gota de sangue, ou one drop rule.

A classificação empreendida nos Estados Unidos tem importância fundamental nesse estudo, porque mostra como a sociedade norte-americana faz uma profunda distinção entre os negros e os brancos. Enquanto o critério da aparência é feito subjetivamente, o critério da ancestralidade procura aspectos mais objetivos para classificação. E mais. A definição a partir da ancestralidade nos Estados Unidos somente se aplicou para os negros, e não para os demais grupos sociais, ainda que considerados minoritários, como hispânicos e índios [29]. Implementou-se nos Estados Unidos uma sociedade birracial, ou seja, uma comunidade na qual somente havia a possibilidade de a pessoa ser enquadrada como branca ou como negra. Não havia a categoria dos morenos, dos mulatos, ou dos pardos, como no Brasil [30]. Decerto, por meio desse sistema, tornou-se mais simples identificar os sujeitos da política segregacionista, bem como, posteriormente, foi menos complicado instituir programas afirmativos em que a raça fosse o único critério levado em consideração. Apenas uma gota de sangue negro, enegrecia a pessoa, ainda que, aparentemente, o indivíduo fosse branco. Mesmo com a adoção da regra do one drop rule, os negros atualmente nos Estados Unidos compõem apenas 13% da população.

Talvez por tais razões se perceba que, na sociedade norte-americana, negros e brancos não compartilham dos mesmos valores, nem da mesma identidade como povo. Existem lugares praticamente destinados para negros, como o Harlem, em Nova Iorque, além de ritmos específicos, como o blues e Igrejas reservadas, como as Batistas. Não se desenvolveram valores comuns para a comunidade negra e para a branca, apesar de, obviamente, poderem dividir certos gostos. As essências de ambas as culturas são distintas. Se eventualmente um negro tentar se passar por branco, estará renegando toda a sua comunidade. Nessa linha, já advertira o sociólogo brasileiro Oracy Nogueira que o fenômeno do passing nos Estados Unidos pode ocasionar profundos conflitos mentais, de pessoas que tiveram de mudar de nome, de cidade, de estado, para tentar apagar o passado e, assim, conseguir viver como branco, o que lhe garantiria direitos que aos negros eram negados, devido ao sistema segregacionista.

Pelas razões expostas, pode-se concluir que o sistema birracial norte-americano, ao determinar a existência de apenas duas categorias raciais distintas — negros e brancos —, aliado à institucionalização da política de preconceito e de segregação, facilitou, em muito, a adoção de programas afirmativos para negros. A justificativa para uma ação governamental afirmativa era latente, pois as medidas de exclusão que haviam sido perpetradas durante décadas contra os negros foram, sobretudo, impostas pelo governo. Ademais, diante da regra da uma gota de sangue, a implementação de ações afirmativas certamente não recairia no dilema, tipicamente brasileiro, de conseguir identificar aqueles que seriam os beneficiados do sistema.

b sistema multirracial brasileiro

Para que as ações afirmativas sejam implementadas no Brasil de modo a não maltratarem o princípio da igualdade, faz-se mister uma prévia análise das nossas relações raciais, para que, finalmente, cheguemos a adotar um critério próprio para a resolução dos nossos problemas. Não basta copiarmos o modelo implementado pelos Estados Unidos, porque, conforme procuramos demonstrar, a nossa realidade racial é outra. Múltiplos fatores precisam ser considerados para a adoção de ações afirmativas à brasileira: o fato de nos constituirmos em um País cuja miscigenação inter-racial foi e é uma constante, desde o início da colonização, além de nunca termos desenvolvido um critério legal, lógico e preciso sobre a definição de quem é negro no País [31]. Sobre esse ponto, talvez, resida uma das principais diferenças no modo de lidar com a questão racial nos Estados Unidos e no Brasil, e é o que vamos analisar nesse momento [32].

No Brasil, nunca houve qualquer tentativa de objetivamente limitar o acesso das pessoas a determinadas atividades por causa da raça, ou de classificar a raça das pessoas a partir de critérios objetivos preestabelecidos. A base de divisão racial somente foi usada, aqui, quando muito, para fins de pesquisas estatísticas, para sabermos quais são as cores que compõem a população. De qualquer sorte, registre-se que nem todos os Censos brasileiros indagaram sobre a raça, mas, naqueles em que tal fator foi considerado, sempre se adotou o sistema de autoclassificação, ora mediante a apresentação das raças delimitadas pelo instituto de pesquisa com posterior escolha pelo entrevistado, ora a atribuição da cor fora deixada ao livre-arbítrio do indivíduo [33].

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios — PNAD, realizada em 1976, demonstra como a solução dessa questão se revela tormentosa, no Brasil. Com efeito, neste PNAD, deixou-se livre ao pesquisado realizar uma autoclassificação. À pergunta: Qual é a cor do(a) senhor(a)?, caberia ao entrevistador apenas anotar a resposta, ainda que esta lhe parecesse estranha. Por conseqüência, identificaram-se espantosas 135 cores no País [34]. Os dados censitários revelam-nos muito sobre o problema da adoção da cor como critério a nortear a adoção de ações afirmativas no Brasil, porque nos mostram a grande variação com que o brasileiro é capaz de se identificar.

Pode-se, então, afirmar que o sistema de classificação racial no Brasil difere do norte-americano porque aqui existe uma multirracialidade, ou seja, há várias raças intermediárias entre os brancos e os negros. No sistema determinado atualmente pelo IBGE, utilizam-se cinco possibilidades de classificação racial: brancos, pretos, amarelos, pardos e indígenas. Pesquisas, no entanto, indicam que há uma rejeição muito grande ao termo pardo: cerca de 71% dos que se classificam como pardos, preferem utilizar o termo moreno. Se em vez de pardo se adotasse moreno, este grupo certamente formaria a maior parte da população, e, dessa forma, o percentual de morenos no Brasil seria superior ao de brancos.

Talvez uma das interpretações possíveis para a quantidade de classificações raciais existentes no Brasil seja a intensa miscigenação ocorrida ao longo da história. E as múltiplas categorias de cor, aliadas à falta de objetividade na definição de uma pessoa como negra ou parda, remete-nos a um dos pontos de maior controvérsia nas propostas afirmativas em que a raça é o fator levado em consideração: saber quem é negro no Brasil [35]. Tal questão inviabiliza a legitimidade dos programas afirmativos em que a raça seja o único critério levado em consideração, uma vez que, com o sistema de autoclassificação, haverá sempre a possibilidade de fraude, abrindo espaço para a má-fé de pessoas que, não sendo negras, assim se declarem com a finalidade de assegurar participação nas cotas estabelecidas [36]. Não se pode perder de vista as ponderações realizadas pelo professor Sérgio Pena, quando chegou à conclusão de que, além dos 44% dos indivíduos autodeclarados negros e pardos, existem no Brasil mais 30% de afro-descendentes, dentre aqueles que se declararam brancos, por conterem no DNA a ancestralidade africana, principalmente a materna. Desse modo, os afro-descendentes constituiriam, no Brasil, a maioria da população, com 62,2%, e os brancos seriam apenas 37,8% do povo brasileiro [37].

Nesses termos, a intensa miscigenação brasileira terminaria por colocar em dúvida a eficácia de programas afirmativos nos quais a raça funcione como critério exclusivo de integração do negro à sociedade, porque não haveria como determinar quem, efetivamente, é o destinatário da política. Retroceder à utilização de critérios objetivos para determinar a ancestralidade, com coleta de sangue e determinação do grau de ancestralidade africana, por outro lado, parece-nos totalmente fora de consideração. A política afirmativa que viesse a ser adotada no Brasil teria de vencer o desafio da legitimidade e suportar as críticas de não conseguir definir racionalmente quem seriam os beneficiados.

Para se tentar flexibilizar este debate praticamente insolúvel — saber quem é negro no Brasil —, ao mesmo tempo em que também se procura combater outra barreira, talvez a principal a impedir a ascensão do negro, faz-se necessário um novo modelo de ações afirmativas, próprio para a realidade brasileira. Desse modo, acreditamos que somente a conjugação de fatores, o racial e o social, poderiam garantir uma maior legitimidade ao debate, a menor possibilidade de utilização da má-fé, a diminuição da possibilidade de discriminação reversa, e, finalmente, o melhor atendimento aos princípios da igualdade e da proporcionalidade. Assim, o problema da relativa falta de integração do negro às camadas sociais mais elevadas pode tentar ser resolvido no Brasil sem despertar manifestações de ódio racial extremado ou violento. Isso somente se torna possível porque, no âmbito social, a nossa comunidade foi capaz de se desenvolver a partir da interpenetração das culturas as mais diversas e, na esfera biológica, houve uma forte miscigenação entre as raças. Tal fato não pode ser olvidado quando da adoção de políticas públicas pelo governo. Tentar implementar ações afirmativas em que a raça seja o único critério levado em consideração poderá, de alguma forma, afetar esse relativo equilíbrio existente entre as raças que compõem o País, e, em vez de promover a inserção dos negros, criar esferas sociais apartadas, daqueles que são beneficiados pelas cotas e dos que não são.

Os negros, no Brasil, passam por sérios problemas de exclusão. São os que apresentam os piores indicadores sociais. Todavia, o que se quer demonstrar é que talvez o preconceito arraigado na sociedade não se constitua no fator exclusivo a impedir a representatividade dos negros nas classes sociais mais elevadas. Fortes indícios demonstram que o verdadeiro anátema do negro se localiza na precária situação econômica em que se encontram, tornando-os despreparados para uma competição justa no mercado de trabalho e na educação. Não se quer adotar uma teoria reducionista e diminuir a problemática racial à questão econômica. Quer-se, apenas, sugerir que as ações afirmativas a serem implementadas no Brasil não fujam desse binômio: raça e pobreza, porque assim se estaria atacando as duas principais mazelas que impedem a ascensão dos negros nas esferas sociais [38].

Como já mencionado, políticas afirmativas que adotem somente o critério racial, isoladamente, sem conjugá-los com a baixa renda, terminariam por beneficiar, sobretudo, a classe média negra, que já conseguiu obter um mínimo de qualificação necessária e não seria a mais carente dos benefícios. Por outro lado, políticas afirmativas universalistas que não levem o fator racial em consideração dificilmente alcançariam os objetivos desejados, o de integrar os negros, escurecendo a elite, a curto ou médio prazo. Assim, a raça deve ser um fator levado em consideração, mas não de forma excludente.

O fato de em ambos os países existir preconceito e discriminação não significa que a origem do preconceito esteja no mesmo fato: a origem africana. No Brasil, muitas vezes a ascendência africana pode ser suavizada, outras vezes esquecida, seja por questões econômicas - a assertiva de que no Brasil negro rico vira branco e pobre branco vira preto [39], seja pelo fenótipo apresentado, a chamada válvula de escape do mulato. Por outro lado, não há dúvidas de que a falta de preparo adequado pode ser associada às precárias condições econômicas dos negros e à necessidade de estudar em escolas públicas, nas quais o ensino fundamental e médio, na maioria das vezes, é de qualidade inferior à do ensino privado. Reconhecer esse ciclo vicioso — escolaridade insuficiente ou precária, falta de preparo para ingressar em uma boa instituição de ensino superior e ausência de oportunidades para conquistar melhores empregos é desmistificar a cor da pele como a única ou a principal causa da exclusão social no Brasil [40]. Despiciendo se torna demonstrar a relação entre a quantidade e a qualidade dos anos de estudos com os salários percebidos [41]. Em um mercado de trabalho extremamente competitivo, quem não possui as qualificações necessárias, simplesmente tem de aceitar trabalhos menos qualificados, cujos salários são menores.

É preciso destacar que os estudos promovidos pelo IPEA, ou nas estatísticas demonstradas pelos índices do IBGE, não objetivam demonstrar a existência de racismo, como ódio entre as raças, mas sim a existência de profundas desigualdades sociais entre negros e brancos. Nem a passagem do tempo, tampouco as políticas assistencialistas promovidas ao longo dos anos, pelos mais diferentes governos, conseguiram dar resposta satisfatória à necessidade de inclusão dos negros. Evidencia-se, assim, a exigência da formulação de políticas públicas ou privadas em que haja a opção consciente em relação à raça. Não bastam políticas assistencialistas, haja vista que são praticamente inexistentes os índices de melhora das condições dos negros em relação aos brancos ao longo dos anos. Por sua vez, é de se compreender que as estatísticas não são auto-explicáveis, de modo que os resultados podem ser elucidados a partir de causas diversas. O fato de os negros no Brasil ocuparem a base da pirâmide social, revelando uma inferioridade econômica em relação aos brancos, pode ter diversas interpretações possíveis, sendo o racismo apenas uma delas [42]. Desse modo, faz-se imperioso reconhecer a interferência também de fatores econômicos nessa tormentosa questão.

A par desse aspecto, é preciso ressaltar que a sociedade brasileira vem demonstrando avanços significativos na área do controle social no que tange ao combate à discriminação e ao resgate da auto-estima dos negros [43]. A conjunção desses fatores demonstra que a sociedade brasileira atingiu um nível de maturidade racial a ponto de praticamente não mais tolerar qualquer tipo de manifestações de preconceito ou de discriminação contra os negros, além de permitir que debates, como este que por ora se apresenta, da criação de políticas afirmativas para negros no Brasil, ocorram sem que haja transtornos sociais relevantes e separatistas.

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Sobre o autor
Roberta Fragoso Menezes Kaufmann

procuradora do Distrito Federal, mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília (UnB), MBA em Direito Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), ex-assessora do Ministro Marco Aurélio Mello (STF)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KAUFMANN, Roberta Fragoso Menezes. Ações afirmativas à brasileira: necessidade ou mito? A implementação para negros como mecanismo concretizador de direitos fundamentais.: Uma análise histórico-jurídico-comparativa do negro nos Estados Unidos da América e no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1455, 26 jun. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10070. Acesso em: 23 abr. 2024.

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