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Ações afirmativas à brasileira: necessidade ou mito? A implementação para negros como mecanismo concretizador de direitos fundamentais.

Uma análise histórico-jurídico-comparativa do negro nos Estados Unidos da América e no Brasil

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V – A análise de programas afirmativos à luz dos princípios da igualdade e da proporcionalidade

O princípio da igualdade não funciona, em tese, como limitador à adoção de programas afirmativos. Entretanto, a constitucionalidade ou não de programas positivos não pode ser diagnosticada em abstrato, devendo ser analisada no caso concreto, a partir de cada medida específica. Em princípio, sabe-se que é próprio das normas estabelecerem critérios diferenciadores entre as pessoas, desde que a eleição de tais critérios seja justificável. O desafio de interpretar o alcance do princípio da igualdade reside justamente em impedir certas diferenciações que não possuem fundamento razoável e que, assim, transgrediriam a igualdade, por serem desproporcionais [44].

Para sabermos se, em determinado caso concreto, a política afirmativa adotada ofende ou não o princípio da isonomia, deve-se analisá-la sob a ótica da proporcionalidade. Nesse diapasão, o princípio da proporcionalidade funciona como princípio constitucional interpretativo, por oferecer subsídios para a melhor hermenêutica da Constituição, principalmente quando se estiver diante de delimitações ou restrições aos direitos constitucionalmente previstos [45].

Para que o critério a ser adotado na política afirmativa brasileira não fira o princípio da igualdade, deve passar pelo crivo da proporcionalidade, a partir da análise dos seus subprincípios. O primeiro deles seria o da conformidade ou da adequação dos meios (Geeingnetheit), por meio do qual se examinaria se o critério adotado seria apropriado para concretizar o objetivo visado, com vistas ao interesse público. Assim, para que atenda ao subprincípio da adequação, faz-se necessário que a política afirmativa a ser implementada seja adequada aos nossos próprios problemas raciais e não simples transposição de ações desenvolvidas para outra realidade. Por sua vez, para atender ao segundo subprincípio da proporcionalidade, é necessário que o critério afirmativo adotado seja exigível ou o estritamente necessário (Erforderlichkeit). Assim, não se deve extravasar os limites da consecução dos objetivos determinados, procurando sempre o meio menos gravoso para atingir a missão proposta. A partir dessa análise, o intérprete constitucional deve observar se, no caso, não existiriam outros meios menos lesivos que pudessem, da mesma forma, atingir os objetivos propostos, a um custo menor aos interesses dos demais indivíduos. Paulo Bonavides registra que esse cânon é também chamado de princípio da escolha do meio mais suave [46]. É de se ressaltar que o subprincípio da exigibilidade tem, praticamente, a mesma carga normativa do critério narrowly tailored — estreitamente desenhado — eleito pela Suprema Corte norte-americana como base para análise da constitucionalidade de qualquer programa afirmativo em que a raça seja um critério considerado.

Desse modo, a implementação de ações afirmativas para negros comprovadamente pobres atenderia ao objetivo visado, que é o de permitir o ingresso em estratos sociais sub-representados, e, por outro lado, constituir-se-ia em política melhor desenhada, porque mais específica, diminuindo, ainda que um pouco, a margem de pessoas reversamente discriminadas – os brancos pobres. Desse modo, as medidas seriam as mais limitadas possíveis, visando a atender ao objetivo de integração, porquanto não ampliariam o programa demasiadamente, para negros ricos ou de classe média alta. O último subprincípio é o da proporcionalidade em sentido estrito (Verhältnismässigkeit), também chamado de regra da ponderação. Procura-se, a partir dele, perquirir se os resultados obtidos pela política afirmativa seriam proporcionais à intervenção efetuada por meio de tais medidas. Parte-se para um juízo de ponderação entre os valores que estão em jogo: de um lado, a necessidade de programas afirmativos para integrar o negro, de outro lado, os demais cidadãos que não foram beneficiados com essas medidas. Alertando sobre a problemática da intervenção estatal nos direitos fundamentais dos cidadãos, aduziu Robert Alexy: "Quanto mais grave é a intervenção em um direito fundamental, tanto mais graves devem ser as razões que a justifiquem" [47]. Assim, seria justificável um programa que beneficiasse negros ricos, por exemplo, em um País em que brancos pobres também não têm a igualdade de oportunidades? Acreditamos que não. Além do que, a união do critério racial com o social, traria maior legitimidade ao debate, na medida em que o programa receberia maior apoio popular, diminuindo os focos de tensões que a implementação dos programas afirmativos poderia gerar. E, de qualquer modo, se a maioria dos pobres são negros — 70% — apenas uma pequena parcela deles não estaria sujeita ao programa.


VI – Referências Bibliográficas

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Notas

01A observação desse fenômeno não é peculiar ao Brasil. Os argumentos usados por aqueles que escrevem sobre as ações afirmativas repetem-se de maneira tão estrondosa, mesmo nos Estados Unidos, que chegam a ser ridicularizados, conforme demonstra Gabriel Chin: "A literatura é, também, impressionantemente repetitiva. Os mesmos temas básicos são expostos repetidamente; os fatos do caso Bakke, por exemplo, foram recontados tantas vezes que Stephen King escreveu, no seu best-seller Christine, sobre um casal que ‘poderia contar capítulo e versículo sobre o caso Allan Bakke até adormecer’. Com a habilidade de inventar este tipo de história arrepiante, não é de se impressionar que King é conhecido como o mestre do horror". Tradução livre. CHIN, Gabriel J. (1998:p. IX).

02 O termo negro nesse trabalho é usado na maioria das vezes representando tanto a categoria racial preta, quanto a parda. Os momentos de diferenciação entre eles, quando acontecerem, serão explicitados no texto.

03 Nesse sentido, bem afirmou Gilberto Freyre: "A escassez de mulheres brancas criou zonas de confraternização entre os vencedores e os vencidos, entre senhores e escravos. Sem deixarem de ser relações — as dos brancos com as mulheres de cor — de ‘superiores’ com ‘inferiores’ e, no maior número de casos, de senhores desabusados e sádicos com escravas passivas, adoçaram-se, entretanto, com a necessidade experimentada por muitos colonos de constituírem família dentro dessas circunstâncias e sobre essa base. A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que doutro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a senzala". FREYRE, Gilberto. (2002: p. 46). Destaque-se que a tese de Freyre sobre a miscigenação, duramente criticada por tanto tempo, recentemente foi resgatada e assumida. O professor Sérgio Danilo Pena, da UFMG, e a sua equipe, realizaram pesquisa a propósito dos 500 anos do País na qual procuraram desvendar os mistérios da miscigenação brasileira. A conclusão não poderia ser diferente: somos um dos povos mais miscigenados do mundo. Assim falou o professor: "Os dados que obtivemos dão respaldo científico a essa noção [de miscigenação] e acrescentam um importante detalhe: a contribuição européia foi basicamente por meio de homens e a ameríndia e africana foi principalmente por meio de mulheres. A presença de 60% de matrilinhagens ameríndias e africanas em brasileiros brancos é inesperadamente alta e, por isso mesmo tem grande relevância social" Ver matéria em LEITE, Marcelo. (2000: p. 26 a 28).

04 Com efeito, a história é pródiga em demonstrar que a cor não se constituiu, isoladamente, em fator impeditivo para a assunção de cargos públicos ou posições sociais de prestígio. Nessa linha, cite-se a Ordem de 1731, emanada por D. João V, que conferiu poderes ao Governador da Capitania de Pernambuco, Duarte Pereira, para que empossasse um mulato no cargo de Procurador da Coroa, de grande prestígio à época, afirmando que a cor não lhe servia como um impedimento para exercer tal função. E destaque-se que tal determinação ocorreu 157 anos antes da abolição da escravatura. Diversos são os exemplos a apontar a presença de negros nas classes sociais mais elevadas, como Henrique Dias, o Conselheiro Rebouças, Luís Gama, José do Patrocínio, Machado de Assis, Cruz e Souza. Perdigão Malheiro, ao mencionar tal fato, em obra publicada em 1867, já fazia a distinção entre o preconceito praticado no Brasil e o dos Estados Unidos. Afirmou: "Ali [nos Estados Unidos] a questão não era só de escravidão, era também de raça; questão esta que no Brasil não é tomada em consideração pelas leis, e também pelos costumes. Ser de cor, provir mesmo de Africano negro, não é razão para não ser alguém, no nosso país, admitido nas sociedades, nas famílias, nos veículos públicos, em certos lugares nas igrejas, aos empregos, etc.; longe disto, o homem de cor goza no Império de tanta consideração como qualquer outro que a possa ter igual; alguns têm até ocupado e ocupam os mais altos cargos do Estado, na governança, no Conselho de Estado, no Senado, na Câmara dos Deputados, no Corpo Diplomático, enfim, em todos os empregos; outros têm sido e são distintos médicos, advogados, professores ilustres das ciências mais elevadas; enfim, todo o campo da aplicação da atividade humana lhes é, entre nós, inteiramente franco e livre". PERDIGÃO MALHEIRO, Agostinho Marques. (1867: p. 124). Assim, pode-se afirmar que nos causa certo espanto a atribuição conferida a Gilberto Freyre de ter criado o mito da democracia racial no Brasil, em Casa-Grande & Senzala. Perdigão Malheiro já o havia sugerido, com pelo menos 60 anos de antecedência!

05 Com efeito, nos estados do Mississipi, no Alabama e em Maryland, a concessão da liberdade aos escravos por meio de testamento era nula; na Geórgia, lei de 1818 impunha uma multa de mil dólares ao senhor que tentasse conceder a liberdade ao escravo. Na Carolina do Norte, norma de 1830 previa que o senhor que quisesse conceder a liberdade ao escravo deveria primeiro fazer um seguro de mil dólares contra atos de vadiagem que este viesse a praticar. Além disso, o ex-escravo deveria deixar imediatamente o estado e nunca mais voltar. No Tennessee, para que o escravo fosse considerado livre, era preciso que se lhe nomeasse um fiador, além do consentimento do Tribunal estadual e da expulsão do negro do estado. Na Virgínia, em 1691, determinou-se que nenhum negro poderia ser liberto, ao menos que se lhe pagasse o transporte para outro país. No mesmo estado, lei de 1782 determinou a nulidade de qualquer tipo de libertação voluntária dos escravos e, em 1793, proibiu-se o ingresso na Virgínia de negros livres. Os que lá residiam, antes da proibição, foram expulsos, e, acaso permanecessem, seriam novamente submetidos à escravidão. No estado do Mississipi, lei de 1831 determinou que todos os negros livres com mais de 16 e menos de 60 anos deveriam deixar o estado, exceto se pudessem obter um certificado de boa conduta a ser apresentado pelos Tribunais do Condado. Nesse sentido, ver em TANNENBAUM, Frank. (1992: p. 70 e ss).

06 Entre 1882 a 1903, mais de dois mil negros morreram linchados, sendo que, somente em 1890, foram quase 200 execuções. As autoridades públicas do país não procederam às punições cabíveis. Explodiram movimentos extremistas organizados contra os negros, como o Conselho dos Cidadãos Brancos e a Ku Klux Klan – que chegou a angariar quase cinco milhões de membros nos Estados Unidos, na década de 20, dentre os quais Presidentes da República, governadores, prefeitos, senadores, e outras autoridades.

07 Como afirma o historiador norte-americano Chin: "Para muitos americanos, desde o hospital onde nasceram até o cemitério onde foram enterrados, todas as principais instituições sociais eram rigidamente segregadas pela raça". Tradução livre. CHIN, Gabriel J. (1998: p. XV)

08 Por oportuno, podemos citar a Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor, os Mulçumanos negros, a Associação de Melhoramentos de Montgomery, a Comissão Estudantil de Coordenação Não-Violenta, o Congresso de Igualdade Racial, as Panteras Negras, dentre outras.

09Como se observa dos textos das Ordens Executivas nº 10.925 e 11.246, os governos de Kennedy e Johnson não iniciaram as ações afirmativas conforme as entendemos hoje. Originalmente, o conceito de ação afirmativa significava uma política institucionalizada de combate à discriminação e não medidas de inclusão propriamente ditas. É que, à época, acreditava-se que o simples fato de o governo deixar de apoiar a discriminação, em uma sociedade desenvolvida sob os auspícios do sistema segregacionista, já sinalizava vultosos ganhos para a comunidade negra.

10 Refresquemos a memória para os fatos: em 1963, a explosão de uma bomba em uma Igreja Batista matou 4 crianças negras. Kennedy, primeiro defensor de políticas para negros, morreu brutalmente assassinado no mesmo ano; em 1964, eclodiu enorme onda de violência contra os negros, principalmente no norte dos Estados Unidos, o que levou James Farmer, Diretor Nacional do Congresso Nacional de Igualdade Racial a liderar manifestação para sensibilizar a opinião pública. O resultado, todavia, foi a sua prisão, com mais 293 pessoas. Ao ser libertado, entretanto, lançou a ameaça de que aquele seria o maior e mais quente verão que o país já tivera, e complementou: "Agora é o tempo do ódio". Sobre a violência e a magnitude que havia tomado conta das ruas dos Estados Unidos na década de 60, Skrentny afirmou: "Assim era vida em meados da década de 60 na América urbana. As violências pretas misteriosas continuaram explodindo em centenas de cidades pela América, aparentemente ao acaso. Doug McAdam, em um dos poucos estudos do movimento de direitos civis que vão além da legislação promulgada em 1964 e em 1965, contou 290 ''explosões hostis'' no período de 1966 a 1968. 169 pessoas foram assassinadas na violência, 7.000 ficaram feridas, e mais de 40.000 foram presas. E esta projeção é conservadora. A Câmara de Compensação sobre a Desordem Civil na Universidade de Brandeis registrou 233 desordens somente em 1967, e 295 desordens nos primeiros quatro meses de 1968. McAdam afirma que ''não seria um exagero sustentar que o nível de desafio aberto para a ordem econômica e política estabelecidas foi maior durante este período do que em qualquer outro da história desse país, salvo a Guerra Civil". SKRENTNY, John David. (1996: p. 71).

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11 Tradução livre: "A Segunda Guerra Civil — Armando-se para o final dos tempos".

12 Afirmou Rosenfeld: "Uma vez que o Estado havia praticado a segregação racial, um mero retorno à política cega à cor, todavia, não seria suficiente para conduzir à integração".Tradução livre.ROSENFELD, Michel.(1991:p.163).

13 Assim justificava Nixon a concessão de algumas vantagens para os negros: "Pessoas que possuírem as próprias casas não irão incendiar a nossa vizinhança". Tradução livre. Apud SKRENTNY, John David. (1996: p. 101). Na esfera judicial, quatorze anos após a célebre decisão do caso Brown v. Board of Education (1954), que havia posto fim à doutrina do iguais, mas separados, a Suprema Corte ainda discutia a velocidade com que a extinção da política segregacionista deveria ser colocada em prática. Na verdade, ínfimo havia sido o progresso social diante da decisão do caso Brown, pois muitos governantes simplesmente se recusaram a extinguir o modelo segregacionista.

14 Nessa linha, afirma Skrentny: "Embora grupos de direitos civis e afro-americanos possam ter apoiado ações afirmativas como medidas preferenciais de direitos civis desde, pelo menos, a década de setenta, a política [de ações afirmativas] foi largamente uma construção da elite branca masculina, a qual tradicionalmente tem dominado o governo e os negócios". Tradução livre. SKRENTNY, John David. (1996: p. 5).

15 Não deixa de ser outra ironia o fato de as ações afirmativas terem sido implementadas por aquele que era conhecido como o inimigo dos Direitos Civis. Nixon era tão criticado pelos liberais que o cientista político Charles Hamilton escreveu um ensaio intitulado "O que Nixon está fazendo conosco?" no qual enumerou as traições do governante, por ter enfraquecido a Lei dos Direitos de Voto, recusado ajuda aos movimentos urbanos e declinado apoio aos movimentos civis. Apud SKRENTNY, John David. (1996: p. 178).

16 Como exemplo, poderíamos citar lei de 1996, do Estado da Califórnia, por meio da qual se determinou que nenhuma instituição estadual poderia discriminar ou garantir preferências para qualquer indivíduo, tomando por base raça, sexo, cor, grupo étnico ou origem nacional, em setores públicos como empregos, educação ou contratos. Medida similar também foi adotada por Washington, em 1998, e em outros estados norte-americanos. Ver mais em DWORKIN, Ronald. Op. cit. p. 386. Como afirma Skrentny: "Uma análise recente das atitudes públicas em relação às ações afirmativas demonstrou que a opinião pública vai além de rejeitá-las simplesmente. A essência da idéia de preferência racial teve um efeito negativo nas atitudes de americanos brancos relativas aos pretos, parecendo provocar uma antipatia generalizada". Tradução livre. SKRENTNY, John David. (1996: p. 5).

17 Nessa óptica, compartilhamos as observações realizadas pelo sociólogo Jessé Souza, quando afirma: "Duas pressuposições, altamente duvidosas, são implicitamente assumidas nesse movimento. Primeiro, que os Estados Unidos são um modelo cultural acima de ambigüidades e crítica. Segundo, que não existem peculiaridades no Brasil que possibilitem pensar um modelo cultural que, embora tributário da mesma herança ocidental que possibilita a democracia política e a autonomia moral individual, seja visto como um desenvolvimento alternativo ao americano, com as perdas e ganhos que toda escolha cultural envolve". SOUZA, Jessé. (1997: p. 24).

18 Nesse sentido, Fiscus: "Mais especificamente, há duas objeções relacionadas ao argumento da justiça compensatória para as ações afirmativas. Elas são fundamentadas nos princípios complementares de que a compensação deveria ser paga à pessoa prejudicada e de que deveria ser pago por aquele que ocasionou o dano. Programas de ações afirmativas baseados na justiça compensatória podem fracassar, pelo primeiro princípio, de várias maneiras (…). Sustentar que os descendentes de milhões de pretos lesionados ao longo de nossa história têm direito à compensação, pelo prejuízo ocasionado aos seus ancestrais em um passado longínquo, é violar o primeiro princípio da justiça compensatória, que os sujeitos da compensação sejam aqueles prejudicados". FISCUS, Ronald J. (1992: p. 9 e 10).

19 Nessa linha, bem adverte Fiscus: "Que os programas de ações afirmativas freqüentemente foram justificados em termos de justiça compensatória é um fato extremamente infeliz. Essa justificativa é problemática, nestes casos, e suas vulnerabilidades foram agarradas pelos críticos — inclusive, e talvez de modo mais importante, pelos Justices da Suprema Corte — para desacreditar as ações afirmativas. Argumentos de justiça compensatória, no contexto das ações afirmativas, vão de encontro à nossa forte e arraigada oposição geral às responsabilidades de grupo e aos direitos de um grupo — castigando ou recompensando um indivíduo simplesmente porque ele ou ela pertence a um determinado grupo". Tradução livre. FISCUS, Ronald J. (1992: p. 9).

20 Assim confirma Fiscus: "De maneira simplificada, para nossa proposta, a justiça distributiva, como uma questão de igual proteção, é a exigência que um indivíduo ou grupo possui quanto aos benefícios, vantagens e posições que teriam conseguido, acaso estivessem sob condições justas — condições estas identificadas aqui como a ausência de discriminação odiosa". Tradução livre. FISCUS, Ronald J. (1992: p. 8).

21 Um dos principais defensores dessa linha de argumentação é o jusfilósofo Ronald Dworkin. O autor, justificando o argumento da diversidade no corpo estudantil ¾ e combatendo as críticas segundo as quais se acreditava que para promover efetivamente a diversidade, seria melhor escolher os estudantes negros pobres, ou então os que possuíssem características culturais específicas, a ter de admitir negros ricos que tivessem hábitos parecidos aos dos brancos, por tais não propiciarem verdadeiro espaço multicultural ¾ afirma que o maior benefício da mistura entre as raças é justamente o de atenuar o ódio racial nos Estados Unidos. Alega: "Essa objeção perde o aspecto da diversidade posto em questão, que não é o que a raça poderia ou não demonstrar, mas a raça em si. Infelizmente, os piores estereótipos, suspeitas, medos e ódios que ainda envenenam a América, são codificados pela cor, e não pela classe ou pela cultura. É crucial que negros e brancos passem a se conhecer, e a melhor apreciarem-se uns aos outros". Tradução livre. DWORKIN, Ronald. (2000: p. 403). Ora, será que tais argumentos podem ser aplicados à situação brasileira?

22 A tese de que as políticas afirmativas deveriam ser impostas para efetivar um ambiente multicultural encontra opositores até mesmo nos líderes de esquerda, que, certamente, não poderão ser tachados de conservadores. Nessa linha, Aldo Rebelo, analisando a importação de modelos norte-americanos para a nossa realidade, afirmou: "Os ensaios de Gilberto Freyre nos servem ainda hoje de frondosa vassoura de piaçaba para tanger do nosso terreiro o lixo ideológico que, na forma de multiculturalismo, ensandece a cabeça dos que tentam aportar no Brasil com modelos norte-americanos de combate ao racismo". REBELO, Aldo. (2000: 29).

23 Nesse sentido, afirmaram Nowack e Rotunda: "No julgamento da constitucionalidade de programas positivos, uma distinção precisa ser extraída dentre as duas formas básicas de ação afirmativa. Pode-se fixar uma cota, por meio da qual se reserve um número específico de lugares para os representantes das minorias, e um número específico para os demais. Alternativamente, podem ser fixados padrões separados de tratamento, por meio dos quais se conceda um tratamento preferencial a minorias, sem para tanto ser necessário o uso de uma cota". E, assim, concluíram: "Programas de cota são difíceis, se não impossíveis, de defender. Quando o governo distribui benefícios sob um sistema de cotas rígido, desconsidera totalmente as circunstâncias individuais, e, além disso, sobrecarrega os membros das raças minoritárias". Tradução livre. NOWACK, John E.; ROTUNDA, Ronald D. (1995:p. 694).

24 Nesse sentido, George Reid Andrews advertiu que a instituição de ações afirmativas nos Estados Unidos aumentou ainda mais o racismo contra os negros. E assim afirma "Pesquisas indicam que a mera menção às ações afirmativas pode provocar a expressão de atitudes e comportamentos mais racistas entre os brancos do que na ausência de uma menção de tais programas". A conseqüência de tal fato, no sistema norte-americano, foi a vitória de candidatos republicanos, conservadores e contrários à adoção das políticas positivas, nas campanhas eleitorais de 1980 e 1990. E o resultado dessas vitórias foi a redução não somente de programas afirmativos, mas também a diminuição do empenho do governo federal com as políticas sociais como um todo. Alfim, conclui o autor que os ônus das políticas positivas foram demasiadamente elevados, enfatizando, sobretudo, que as medidas beneficiaram especificamente a classe média negra norte-americana: "As conquistas da classe média negra nos anos de 1970 e 1980 exigiram um custo muito alto, na forma do agravamento dos conflitos e tensões raciais no país", deixando à margem do programa justamente aqueles que deles mais precisavam: os negros pobres. Ver em ANDREWS, George Reid. (1997:p. 139).

25 CAVALLI-SFORZA, Luigi Luca.(2003: p. 37).

26 PENA, Sérgio et. al. (2000: p. 17-25).

27 CAVALLI-SFORZA, Luigi Luca.(2003: p. 52).

28 Sobre o tema, destaquem-se as considerações feitas pelo professor Kevin Boyle: BOYLE, Kevin. (2001:p. 490). Tradução livre: "Reconhecemos hoje que a classificação biológica de seres humanos em raças e hierarquias raciais — no topo da qual obviamente estaria a raça branca — era produto da pseudociência do século XIX. No momento em que nós mapeamos o genoma humano, prodigiosa pesquisa que envolveu o uso de material genético de todos os grupos étnicos, sabemos que só há uma raça — a raça humana. Diferenças humanas em aspectos físicos, cor da pele, etnias e identidades culturais não são baseadas em atributos biológicos. Aliás, a nova linguagem dos mais sofisticados racistas abandona qualquer fundamento biológico em seus discursos. Eles agora enfatizam supostas diferenças culturais irreconciliáveis como justificativa para seus pontos de vista extremistas".

29 O critério adotado nos Estados Unidos muitas vezes causa confusão e perplexidade para terceiros. O professor de sociologia da Universidade de Illinois, James Davis, conta-nos a história de uma candidata negra ao concurso de Miss América. Durante muito tempo, as negras não puderam se candidatar, mas na década de 80 essa restrição foi retirada. Em 1984, a candidata Vanessa Williams, considerada negra pela regra do one drop rule, mas branca na aparência, ganhou o concurso e foi intitulada como a primeira negra norte-americana a se tornar Miss América. Tal fato despertou certa comoção nacional, porque ninguém acreditava que ela realmente fosse negra. A situação ficou tão constrangedora que os organizadores do concurso, para tentar legitimar o slogan de a primeira negra a vencer o Miss América, anularam a vitória de Vanessa, alegando que ela havia posado para fotos sensuais antes do concurso, e elegeram a segunda colocada como vencedora, Suzette Charles, que, aparentemente, era um pouco mais negra do que Vanessa. Ver em DAVIS, F. James. (2001: p. 2). Outros casos são contados pelo professor, como o do líder do movimento negro, Reverendo Adam Clayton Powell Jr., que era loiro, dos olhos azuis e de nariz aquilino. O Reverendo Powell chegou a liderar uma marcha de 6.000 pessoas até a Prefeitura de Nova Iorque, mas, dentro da organização, era visto com certa desconfiança. Por outro lado, as atrizes negras pela regra da ascendência, mas brancas na aparência, viviam um verdadeiro dilema, nos Estados Unidos, haja vista a determinação de que não poderiam interpretar brancas — estariam ofendendo o sistema Jim Crow. Todavia, somente conseguiam papéis como negras se tivessem de pintar a pele, para que aparentassem uma cor que não possuíam. Uma das artistas que sofreu os ônus desse sistema foi Lena Horne, atriz e cantora norte-americana da década de 60. Os pais de Lena eram muito brancos, assim como ela. A aplicação da regra do one drop rule fez com ela fosse considerada negra por causa da sua tataravó materna, que era uma negra vinda de Angola. Lena ingressou em uma escola para negros, mas, a todo o tempo, sofria discriminações. Os negros a chamavam de yellow bastard — bastarda amarela. James Davis conta que a atriz logo cedo aprendeu que: "Ter uma pele clara implica ilegitimidade, e, aliado a pais que pertençam à classe social mais baixa, significava uma vergonha na comunidade negra". Tradução livre. DAVIS, F. James. (2001: p. 3).

30 Nesses termos, de extraordinária clareza são os esclarecimentos do professor Carl Degler sobre o critério birracial. Em capítulo intitulado Quem é negro?, explica como o critério é aplicado nos Estados Unidos: "Até agora a palavra Negro tem sido usada sem definição, e, todavia, a fonte mais fértil de confusão, senão de erro, na comparação das relações raciais entre os Estados Unidos e o Brasil é que o conceito de negro difere nos dois países. Historicamente, nos Estados Unidos, qualquer pessoa com ancestrais negros seria considerada negra, ainda que parecesse branca. Nos dias da escravidão e enquanto perdurou a segregação legal, um negro era definido por lei e pelos costumes como qualquer um que tivesse uma certa quantidade de ascendência negra — aproximadamente um oitavo. Mas já ocorreram casos no século XX em que qualquer quantidade de sangue negro levaria a que a pessoa fosse considerada, legalmente, como negra. Assim, um estatuto na Virgínia, elaborado em 1924 visando à votação de uma lei antimiscigenação, definia como branca ‘... a pessoa que não tenha qualquer traço de sangue que não seja caucasiano; mas pessoas que tenham um-dezesseis avos ou menos de sangue índio americano e nenhum outro sangue não-caucasiano seja serão consideradas pessoas brancas’. Como a aparência não decidia o assunto, pessoas de olhos azuis, pele clara e cabelos claros ou loiros, como Walter White, durante muitos anos dirigente da NAACP, podiam ser consideradas negras. O simples fato de White reconhecer sua ascendência negra, a despeito de sua aparência, tornava-o negro. Também por causa dessa definição, brancos poderiam, de repente, tornarem-se ‘Negros’, como aconteceu não somente em obras de ficção, como Kingsblood Royal, de Sinclair Lewis, mas também na vida real. Por essa definição genética ou biológica, milhares de negros também ‘passam’ para o mundo dos brancos, a cada ano, lá permanecendo enquanto desejarem, ou conseguirem manter o seu segredo. Historicamente, palavras como mulato, quadroon ou octorron nos Estados Unidos — todas elas descrevendo diferentes graus de ascendência negra — já foram usadas. Mas, na verdade, elas são apenas descritivas, não implicam qualquer significado social ou legal. Há apenas duas qualidades no padrão racial dos Estados Unidos: branco e preto — o indivíduo ou é um ou outro, não há posição intermediária". Tradução livre. DEGLER, Carl. (1986: p. 101 e 102).

31 Roberto Da Matta conta uma história interessante que aconteceu nos Estados Unidos, em 1968, na Universidade de Harvard, quando estava cursando o doutorado em antropologia. Carente de contatos com a pátria, ao saber da visita de um grupo de estudantes brasileiros, foi direto ao local em que se realizaria uma reunião, com a temática dos movimentos negros. Após o discurso dos norte-americanos, que enfatizaram as conquistas realizadas pelos negros nos Estados Unidos, os estudantes brasileiros iniciaram uma série de perguntas provocativas, em que ressaltaram que as modificações não afetaram a estrutura do capitalismo, que permanecia calcada na exploração do trabalho. Os brasileiros acreditavam que era preciso mudar o sistema, por meio de uma revolução. Após tal impasse ideológico, os palestrantes estadunidenses resolveram endurecer, e falaram: "Curioso que vocês cobrem tanto do nosso sistema. O fato é que estamos trabalhando com o que podemos, para mudar as relações raciais aqui. Vocês, que se dizem uma democracia racial, são muito piores, em termos práticos. Pois vejam só: no meio de mais ou menos oitenta estudantes brasileiros, eu vejo apenas sete ou oito negros. A grande maioria é branca. Onde está a tal ‘democracia racial’ de vocês?". Da Matta destaca que, alfim do encontro, o que mais havia chocado os brasileiros era saber, dentre a comitiva, quem eram os sete ou oito negros a que os estudantes norte-americanos haviam se referido porque, na contagem deles, somente haveria um ou dois. DA MATTA, Roberto. (1997: p. 71). Também Antônio Guimarães preocupa-se com a definição de quem pode vir a ser considerado negro no Brasil. Afirma: "A questão que se levanta não é superficial. Se não se pode definir formalmente, sem margem a dúvidas, o beneficiário de uma política pública, então sua eficácia será nula". GUIMARÃES, Antônio. (1997:p.240).

32 Thomas Skidmore atenta para esse problema, e afirma: "Em suma, o Brasil é multirracial, não birracial. Isso torna as relações raciais mais complexas do que nos Estados Unidos, e mais complexas do que a maioria dos europeus imagina". SKIDMORE, Thomas. (2001: p. 152). Também em SKIDMORE, Thomas. (1992: p. 1).

33 A larga utilização do termo afro-descendente, atualmente, no Brasil, significa mais uma cópia subserviente desta mentalidade de colônia que, muitas vezes, nos é peculiar. Enquanto preto, pardo e negro têm uma acepção morfológica ligada à cor e ao fenótipo do indivíduo, o conceito de afro-descendente revela um sentido de ancestralidade, a perquirir a origem da pessoa, tal qual o modelo birracial norte-americano, do one drop rule.

34 Não se pode deixar de reconhecer que essa amostra divulga um verdadeiro tratado de antropologia nacional. Observe-se a lista de cores que os brasileiros se classificaram: Acastanhada, Agalegada, Alva, Alva-escura, Alvarenta, Alvarinta, Alva-rosada, Alvinha, Amarela, Amarelada, Amarela-queimada, Amarelosa, Amorenada, Avermelhada, Azul, Azul-marinho, Baiano, Bem-branca, Bem-clara, Bem-morena, Branca, Branca-avermelhada, Branca-melada, Branca-morena, Branca-pálida, Branca-queimada, Branca-sardenta, Branca-suja, Branquiça, Branquinha, Bronze, Bronzeada, Bugrezinha-escura, Burro-quando-foge, Cablocla, Cabo-verde, Café, Café-com-leite, Canela, Canelada, Cardão, Castanha, Castanha-clara, Castanha-escura, Chocolate, Clara, Clarinha, Cobre, Corada, Cor-de-café, Cor-de-canela, Cor-de-cuia, Cor-de-leite, Cor-de-ouro, Cor-de-rosa, Cor-firma, Crioula, Encerada, Enxofrada, Esbranquecimento, Escura, Escurinha, Fogoio, Galega, Galegada, Jambo, Laranja, Lilás, Loira, Loira-Clara, Loura, Lourinha, Malaia, Marinheira, Marrom, Meio-amarela, Meio-branca, Meio-morena, Meio-preta, Melada, Mestiça, Miscigenação, Mista, Morena, Morena-bem-chegada, Morena-bronzeada, Morena-canelada, Morena-castanha, Morena-clara, Morena-cor-de-canela, Morena-jambo, Morenada, Morena-escura, Morena-fechada, Morenão, Morena-parda, Morena-roxa, Morena-ruiva, Morena-trigueira, Moreninha, Mulata, Mulatinha, Negra, Negrota, Pálida, Paraíba, Parda, Parda-clara, Polaca, Pouco-clara, Pouco-morena, Preta, Pretinha, Puxa-para-branca, Quase-negra, Queimada, Queimada-de-praia, Queimada-de-sol, Regular, Retinta, Rosa, Rosada, Rosa-queimada, Roxa, Ruiva, Russo, Sapecada, Sarará, Saraúba, Tostada, Trigo, Trigueira, Turva, Verde, Vermelha. Nesse sentido, ver em VENTURI, Gustavo; TURRA, Cleusa. (1995:p. 33 e 34).

35 Carlos Hasenbalg já chamara a atenção para esse problema, em seminário realizado sobre as ações afirmativas: "As experiências de ações afirmativas até agora desenvolvidas em outras partes do mundo se deram em países em que as fronteiras ou divisas entre grupos étnicos e raciais estão claramente definidas. Esse não parece ser o caso do Brasil. Nos últimos vinte anos, cientistas sociais que estudam as relações raciais no país, entre os quais me incluo, bem como militantes do movimento negro, têm usado sistemas de classificação racial dicotômicos: brancos/negro ou branco/não-branco. Ao mesmo tempo, pesquisas como o PNAD-1976 e a mais recente da Folha de São Paulo, em 1995, surpreendem pela variedade de termos usados pela população para identificar-se em matéria de cor ou raça. Esta é uma das ambigüidades do sistema racial do Brasil e dos demais países da América Latina que deve ser encarada na hora de estabelecer o conjunto de regras que permita identificar quais são os indivíduos ou grupos que podem beneficiar-se com os programas de ação afirmativa". HASENBALG, Carlos. (1997: p. 67.).

36 A experiência das cotas na UERJ demonstrou que muitas pessoas, que se consideravam brancas, declararam-se negras para concorrer às vagas destinadas aos negros. Reportagens publicadas à época trouxeram depoimentos de alunos brancos que confirmaram ter agido de má-fé. Semelhante problema também foi identificado com a imposição de cotas na UnB, onde houve inúmeras fraudes – candidatos que sempre se classificaram como brancos, após meses de sol intenso, passaram a se classificar como negros apenas para tentar pleitear vagas por meio das cotas.

37 O percentual de indígenas, por ser muito baixo e somente ter ingressado no sistema de classificação racial em 1991, foi desconsiderado.

38 Nesse sentido é o pensamento de Marvin Harris, quando afirma que o verdadeiro dilema no Brasil não é somente o racial, mas também o econômico. E aduz: "Um brasileiro nunca é simplesmente um ‘homem branco’ ou um ‘homem de cor’; ele é um rico, bem educado homem branco, ou um pobre, ignorante homem de cor; um rico, bem educado homem de cor ou um pobre, ignorante branco. O resultado dessa qualificação de raça por educação e nível econômico determina a identidade de classe à que o indivíduo pertence. É a classe à que ele pertence e não a raça que determina a adoção de atitudes subordinadas ou superiores entre os indivíduos específicos nas relações face a face. É a classe que determina quem vai poder entrar em determinado hotel, restaurante ou clube social; quem receberá o tratamento preferencial nas lojas, igrejas, clubes noturnos e nos meios de transporte. (...). A cor é um dos critérios para identidade racial, mas não o único". Tradução livre. HARRIS, Marvin. (1974: p. 60 e 61).

39 Nessa linha, o pensamento de Marvin Harris, antropólogo norte-americano que estudou as relações raciais no Brasil: "Um Negro é qualquer um dos seguintes: Um branco miserável; um mulato miserável; um mulato pobre; um negro miserável; um negro pobre; um negro classe média. Um Branco é qualquer um dos seguintes: Um branco rico; um branco classe média; um branco pobre; um mulato rico; um mulato classe média; um negro rico". Tradução livre. HARRIS, Marvin. (1952: p. 72). Como também já previu Roberto Da Matta, em relação ao Brasil: "a raça (ou a cor da pele, o tipo de cabelo, de lábios, do próprio corpo como um todo etc.) não é o elemento exclusivo na classificação social da pessoa. Existem outros critérios que podem nuançar e modificar essa classificação pelas características físicas (que são definidas culturalmente). Assim, por exemplo, o dinheiro ou o poder político permitem classificar um preto como mulato ou até mesmo como branco". DA MATTA, Roberto. (1987: p. 81).

40 Ao prefaciar livro, Peter Fry explica que existem três idéias básicas sobre as relações raciais brasileiras: "1)é impossível compreender as relações raciais no Brasil sem levar em consideração as relações de classe; 2)a taxinomia racial no Brasil é extremamente complexa, senão ambígua, e o processo de classificação dos membros da sociedade se dá não só segundo sua aparência física, mas também segundo sua posição de classe; e 3)apesar da existência de uma ideologia de ‘democracia racial’, há uma correlação entre raça e classe social, os mais escuros sendo os mais pobres". In: MAGGIE, Yvonne; REZENDE, Cláudia Barcellos. (2002: p. 8). Dados do PNAD/IBGE demonstram que aproximadamente 70% dos indigentes no Brasil são negros, e, dentre os pobres, a proporção de negros é de 64%. A média da renda dos negros é de 2,2 salários mínimos, enquanto a dos brancos é de 4,5 mínimos. Entre as pessoas mais ricas do país, há nove brancos para cada negro. Como, então, se poderia desvincular o critério econômico como um fator relevante a ser levado em consideração nas políticas afirmativas? A sub-representatividade dos negros brasileiros está diretamente relacionada às profissões nas quais se faz necessário maior investimento financeiro, seja pelo alto valor das mensalidades cobradas nas universidades, seja pelos gastos com o material utilizado na profissão — dentistas, médicos, veterinários — seja na aquisição de livros — juristas, médicos, engenheiros. A representação dos negros (considerados neste estudo tanto os pretos como os pardos) no ensino superior é de aproximadamente 21% dos estudantes. A representação no curso de Odontologia é inferior a 10%, em Medicina é inferior a 15%, em Medicina Veterinária também inferior a 10%. Já no curso de História, a representação é de aproximadamente 38%, no curso de Letras, aproximadamente 29%, no de Matemática, 33%. O que se pretende demonstrar é que nos cursos que requerem maior disponibilidade de recursos, por envolverem custos mais altos, com a utilização de material a ser adquirido pelo aluno, a representação do negro é menor. Já nos cursos mais teóricos, em que os alunos não precisam de equipamentos sofisticados, além dos livros, há uma maior representatividade dos negros. A exceção parece ficar por conta do curso de Direito, que é eminentemente teórico, mas a concorrência muito alta termina por afastar a população menos preparada. A representação negra no curso de Direito fica em torno de 14%. Os dados são do Provão, de 2002.

41 Mesmo assim, trazemos os dados do IBGE, na Síntese dos Indicadores Sociais de 2002: da classe que possuía até 4 anos de estudo para a que contava com 5 a 8 anos de estudo, o rendimento-hora elevava-se em até 31,6%. Já a diferença desta classe para a que possuía entre 9 a 11 anos de estudo era de 56% e desta para a classe que contava com mais de 12 anos de estudo, a variação de renda era de 189,7%.

42 Nesse sentido, é exemplar a lucidez do argumento de Lynn Walker Huntley, ao prefaciar livro sobre o racismo no Brasil: "Seria um simplismo analisar a desigualdade racial e a concentração de pobreza como tendo uma ou outra raiz, ou seja, como uma questão apenas de cor, ou apenas de classe. No mundo real, tanto a questão de classe como a questão racial, como também outros fatores — momento, relação familiar, o fator sorte, o fator geográfico, interesse, talento, momento econômico, etc. —, interagem para criar as oportunidades de vida de cada um. Todos nós temos uma identidade de múltiplos aspectos e todos esses aspectos têm influência sobre nossas vidas". Também já afirmou Florestan Fernandes, "o ‘dilema racial brasileiro’ reside mais no desequilíbrio existente entre a estratificação racial e a ordem social vigente, que em influências etnocêntricas específicas e irredutíveis" HUNTLEY, Lynn; GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. (2000: p. 13). FERNANDES, Florestan. (1977: p. 124 e 125).

43 Com efeito, diversas medidas favoráveis à integração do negro poderiam ser citadas, como a criação de delegacias especializadas contra o racismo, a demonstração de rigor na realização e na aplicação das leis para punir condutas discriminatórias, o surgimento da Secretaria especial de políticas e promoção da igualdade racial, em nível de Ministério. Atualmente, inúmeras são as palestras, seminários e conferências sobre o tema; criou-se a universidade Zumbi dos Palmares, especificamente destinada aos negros, com dotações públicas e particulares, também houve a elevação de Zumbi à categoria dos heróis da pátria, cujo nome repousa no panteão da praça dos três poderes, em Brasília, a transformação do dia 20 de novembro no dia da consciência negra, a determinação de que o estudo da História da África e dos Negros deve ser ministrado no ensino fundamental e médio.

44 Nesse sentido, a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello é bastante precisa: "Se o tratamento diverso outorgado a uns for justificável, por existir ‘correlação lógica’ entre o fator de discrímen tomado em conta e o regramento que lhe deu, a norma ou a conduta são compatíveis com o princípio da igualdade; se pelo contrário, inexistir esta relação de congruência lógica ou — o que ainda seria mais flagrante — se nem ao menos houvesse um fator de discrímen identificável, a norma ou a conduta serão incompatíveis com o princípio da igualdade". MELLO, Celso Antônio Bandeira de. (1993: p. 81 e 82).

45 Acompanhamos o professor Gilmar Mendes, quando este afirma: "A doutrina constitucional mais moderna enfatiza que, em se tratando de imposição de restrições a determinados direitos, deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade constitucional da restrição eventualmente fixada (reserva legal), mas também sobre a compatibilidade das restrições estabelecidas com o princípio da proporcionalidade". MENDES, Gilmar Ferreira. (1998: p. 68). Ver ainda BONAVIDES, Paulo. (2001: p. 386 e 387).

46 BONAVIDES, Paulo. (2001: p. 361).

47 ALEXY, Robert. (1999: p. 78).

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Sobre o autor
Roberta Fragoso Menezes Kaufmann

procuradora do Distrito Federal, mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília (UnB), MBA em Direito Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), ex-assessora do Ministro Marco Aurélio Mello (STF)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KAUFMANN, Roberta Fragoso Menezes. Ações afirmativas à brasileira: necessidade ou mito? A implementação para negros como mecanismo concretizador de direitos fundamentais.: Uma análise histórico-jurídico-comparativa do negro nos Estados Unidos da América e no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1455, 26 jun. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10070. Acesso em: 23 abr. 2024.

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