3.As informações do Presidente da República e parecer do Ministério Público:
Em 24 de julho de 1953 a Secretaria do Supremo Tribunal Federal concluiu o preparo dos autos. A taxa judiciária orçava em Cr$ 28,40 (vinte e oito cruzeiros e quarenta centavos). Foi designado relator do processo o Ministro Luiz Gallotti [01], que no mesmo dia, 31 de julho de 1953, despachou solicitando informações. O Ministro José Linhares [02], então Presidente do Supremo Tribunal Federal, determinou expedição de ofício ao Presidente da República, confeccionado e assinado em 7 de agosto de 1953.
No dia 17 de agosto do mesmo ano, Getúlio Vargas transmitiu as informações, prestadas pelo Ministro das Relações Exteriores, Vicente Ráo [03]. No dia 19 de agosto José Linhares despachou, determinando o encaminhamento do documento ao relator do processo. No dia 20 de agosto o Ministro Gallotti determinou juntada e assinalou os autos conclusos. Transcrevo excertos das referidas informações:
" O Ministério das Relações Exteriores, devidamente alertado pelo Estado Maior do Exército e, também, pelo clamor da imprensa diária desta Capital Federal – que chegou a publicar fotocópia de uma carta de funcionário diplomático, Cônsul João Cabral de Mello Netto, dirigida a outro colega, Cônsul Paulo Augusto Cotrim Rodrigues Pereira, em linguagem confessadamente conspiratória, - de sentido comunista- procedeu a um inquérito administrativo destinado "a apurar responsabilidades de diplomatas e funcionários administrativos envolvidos em atividades subversivas". Para tanto, obedeceu, nos menores detalhes, aos textos legais disciplinadores da espécie (Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União) nomeando uma comissão composta de elementos categorizados da carreira – Embaixadores Hildebrando Accioly, Acyr do Nascimento Paes e Mario Moreira da Silva- para apurar os fatos acima referidos, partindo, naturalmente, do documento revelador (...), que seu próprio autor confessou ser autêntico. Semelhante comissão de inquérito, sempre apegada ao texto da lei, medindo a alta responsabilidade que lhe cabia desempenhar, sentiu, de início, que a matéria a ser investigada não podia ficar unicamente entre os dois personagens principais do drama conspiratório: o que escreveu a carta e seu destinatário. De posse de informações outras, entre elas informações positivas prestadas pela polícia, levou além as suas indagações, chegando à conclusão, no relatório que endereçou ao Ministro de Estado, que os funcionários em questão, os indiciados e outros, não podiam merecer confiança da administração pública. Assim, deveriam ser concentrados na Secretaria de Estado para uma vigilância permanente, uns, outros transferidos. (...) Os impetrantes, exceção feita do indiciado, Cônsul João Cabral de Mello Netto, buscam fazer crer que lhes foi negado direito de defesa, nos termos da Lei Magna e do próprio Estatuto dos Funcionários, o que não tem nem teria cabimento (...) Não se alegue que a Constituição Federal de 1946 impede a disponibilidade dos funcionários especializados, no caso os diplomatas. Silencia, deixando à legislação ordinária a solução. Pois bem, é justamente essa legislação ordinária, a legislação da carreira de diplomata, que disciplina o problema e que não foi revogada. (...) Em conclusão, diante da exposição e dos argumentos aqui aduzidos, é claro que o assunto não comporta julgamento de plano, o que vale dizer, não enseja a medida pleiteada de acordo com a doutrina e, sobretudo, de acordo com a jurisprudência que vem acompanhando a prática do instituto ".
Com visto de Vicente Ráo, o documento não era conclusivo. Seguiu parecer da Procuradoria Geral da República, datado de 24 de novembro de 1953, assinado por Plínio de Freitas Travassos, então Procurador-Geral. O Ministério Público Federal opinou pela denegação da segurança. Transcrevo alguns excertos:
"(...) Não tem razão o Impetrante. A penalidade que lhe foi aplicada não decorre de haver ele praticado qualquer crime, mas de sua incompatibilidade para exercer cargos de diplomata, como representante do Brasil, pois, tendo sido extinto, pela nossa Justiça Eleitoral, o Partido Comunista do Brasil, possível não é que tenhamos como nosso representante no estrangeiro ou mesmo no Ministério das Relações Exteriores, um diplomata que seja adepto da doutrina comunista e que use de linguagem confessadamente conspiratória. O eminente Ministro das Relações Exteriores, Professor Vicente Ráo, nas informações que prestou a respeito ao Excelentíssimo Senhor Presidente da República e por este transmitidas ao eminente Ministro Presidente deste Egrégio Tribunal, justifica com segurança e serenidade, o procedimento do governo, deixando insubsistentes as alegações do Impetrante (...)".
O Procurador Geral da República reproduziu extensivamente as informações prestadas pelo Presidente da República, e preparadas pelo Itamaraty. Apenas acrescentou sucinta análise da legislação aplicável ao caso, bem como alavancou questões formais:
"(...) não é de se apreciar neste processo de mandado de segurança se o Impetrante praticou os atos que lhe são imputados, pois, ele mesmo instruiu o seu pedido inicial apenas com a procuração de fls. 13. O que teremos de examinar é se ele poderia ser ou não posto em disponibilidade inativa e sem remuneração. (...) Improcedente, portanto, o argumento do Impetrante. Atendendo, portanto, a que a penalidade administrativa aplicada ao Impetrante e prevista em lei, foi procedida de inquérito administrativo, em que ele foi ouvido, e também à gravidade do que lhe é imputado, cujas provas não são de apreciar em processo de mandado de segurança, notadamente neste, em que nenhum documento foi apresentado além da procuração passada ao seu advogado, não é possível considerar-se o Impetrante com direito líquido e certo de anular o ato legal de sua disponibilidade. Confiamos, por isso, seja denegada a segurança impetrada".
O advogado do impetrante, provavelmente atentando para a mitigada documentação, o que tinha oxigenado o parecer do Ministério Público Federal, requereu em 15 de janeiro de 1954 a juntada de certidão fornecida pelo Cartório do Juízo da 7ª Vara Criminal do Distrito Federal. Este documento continha transcrição de despacho de juiz que em atenção a requerimento do Ministério Público mandara arquivar, por falta de provas, processo contra o impetrante, também referente a acusação de prática de atividades subversivas.
Intimado a falar, o Procurador Geral da República invocou que a legislação do mandado de segurança (Lei nº 1.533, de 31 de dezembro de 1951) não permitia que o Impetrante se manifestasse no feito, depois de ouvido o Ministério Público. Também lembrou a vedação de juntada de documentos novos. E de tal modo:
"(...) somos, por isso, pelo desentranhamento da petição de fls. 35 e da certidão de fls. 36/37. Se assim, porém, não entender o eminente Ministro Relator, cabe-nos dizer que a supradita certidão em nada altera a situação do Impetrante, cuja disponibilidade ativa não decorreu de estar envolvido em processo-crime, mas tão só da observância dos dispositivos legais que indicamos no parecer de fls. 26/33".
4) O deferimento do pedido:
A segurança foi deferida, por unanimidade. Em 1º de setembro de 1954 discutiu-se o caso. Após minudente relatório, o Ministro Relator, Luiz Gallotti, em voto curtíssimo e erudito, reportou-se a outro mandado de segurança, impetrado pelos demais envolvidos na querela, e firmou convicção de que a pena aplicada, disponibilidade não remunerada, na contava com previsão legal. Transcrevo agora excertos do voto histórico:
"O mandado de segurança nº 2.248, requerido pelos demais funcionários postos em disponibilidade juntamente com o ora impetrante, foi deferido, para anular o processo administrativo de que resultou a disponibilidade bem como esta, em acórdão de 7-71954, de que foi relator o eminente Ministro Orosimbo Nonato. A concessão da segurança, naquele caso, baseou-se substancialmente em falhas do processo administrativo, que não se demonstra hajam ocorrido com relação ao impetrante. Daí, certamente, haver ingressado em juízo com pedido distinto. Apesar disso, porém, estou em que a segurança é de lhe ser concedida. Tenho opinado, com apoio na lição de D´Alessio, Vitta e outros, que, ao contrário do que ocorre no direito penal, não é necessário que a lei estabeleça um elenco de faltas que podem dar lugar às sanções disciplinares, entre elas a demissão (...)
Na espécie, entretanto, não teve o próprio Governo como configurado um caso de demissão e decretou, contra o impetrante, uma disponibilidade não remunerada, que o direito vigente não autoriza. Baseou-se em decreto do Poder Executivo, nº 24.113, de 1934, anterior, portanto, à própria Constituição de 1934. Ora, o Estatuto vigente (lei 1.711 de 28-10-1952), embora não regule a carreira de diplomatas, aplica-se a estes subsidiariamente (art. 253). E, guardando conformidade com a própria Constituição (art. 189 § único), não cogita da pena de disponibilidade não remunerada (v. art. 201). Não há, portanto, como contrapor ao Estatuto e à Constituição vigentes um decreto executivo de 12 de abril de 1934. Assim, concedo a segurança, para anular a disponibilidade imposta ao impetrante".
Certidão do mesmo dia dá conta que em ata fora transcrita a decisão, que deferia a segurança, a fim de anular a disponibilidade imposta ao impetrante, unanimente. Consta ainda da referida certidão que deixaram de comparecer, por se acharem em gozo de licença especial, os Ministros Barros Barreto, Rocha Lagoa e Nelson Hungria, e por se achar em exercício no Superior Tribunal Eleitoral, o Ministro Edgard Costa, que foram substituídos, respectivamente, pelos Ministros Abner de Vasconcelos, Afrânio Costa, Henrique D´Avila (ausente justificadamente) e Marcelo Ludolf. O subsecretário Otacílio Pinheiro assinou a ata. A ementa foi manuscrita pelo Ministro Luiz Gallotti e encaminhou-se o resultado para publicação no Diário da Justiça.
Em 3 de setembro de 1954 o advogado Guimarães Menegale requereu expedição de comunicação ao Presidente da República, referente à ordem concedida, de modo que se providenciasse a volta imediata de João Cabral de Melo Neto ao Ministério das Relações Exteriores, bem como a determinação para o pagamento das importâncias que se viu privado no período de sua disponibilidade inativa.
5.Conclusões:
O mandado de segurança impetrado por João Cabral de Melo Neto comprova recorrente postura das autoridades do Poder Executivo em nossa História Republicana, antes da abertura política, bem entendido, no sentido de perseguirem, a todo custo, quaisquer indicações de ligações com o comunismo. O combate às ideologias subversivas, como se nominava o bolchevismo, desdobrava-se desde a década de 1910. Houve épocas de maior intensidade, a exemplo do que se passou durante o Estado Novo, bem como ao longo da Era Militar. E por se tratar de perseguição a poeta que atuava no serviço consular, pode-se questionar nas entrelinhas relações entre pena e espada, idéias e ação, poesia e luta armada. Nesse sentido, a literatura fornece farta messe de problemas para a reflexão jurídica.
Chama a atenção o modo como o Supremo Tribunal Federal tratou a questão, não levando em conta a peça indiscutivelmente partidária, encaminhada pelo Ministério Público. Resolveu-se questão política que se apresentava dissimulada de problema formal, com o próprio formalismo. Não havia legalidade na pena prescrita. E também encanta a petição de Menegale, escrita em época diferente, artesanal, na qual a advocacia era mais arte e menos técnica, mais criatividade e menos reprodução.
Muitos dos protagonistas desse drama estão esquecidos, caíram no oblivion. João Cabral de Melo Neto persiste como um de nossos maiores poetas. O comunismo sucumbiu, e de seus escombros brota mundo também cruel, desigual, marcado pela intolerância, do qual parece que se foram todas as utopias. Nesse sentido, leis e rimas se encontram, como que provando que no espaço histórico e cultural ambos os nichos, direito e literatura, comungam de identidade univalente, que a dogmática pretende ambivalente.
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Notas
01 Luiz Gallotti nasceu em Santa Catarina em 1904. Formou-se em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro. Foi conduzido ao Supremo Tribunal Federal por indicação do Presidente Eurico Gaspar Dutra. Foi Ministro do STF de 1949 a 1974. Presidiu a Corte de 1966 a 1968. Luiz Gallotti faleceu em 1978 (cf. VIOTTI DA COSTA, 2001, p. 210).
02 José Linhares nasceu no Ceará em 1886. Formou-se em Direito pela Faculdade de Direito de São Paulo. Foi conduzido ao Supremo Tribunal Federal por indicação de Getúlio Vargas. Foi Ministro do STF de 1937 a 1956. Presidiu a Corte em 1945 (por seis meses), de 1946 a 1949 e de 1951 a 1956. Assumiu a Presidência da República com a queda de Vargas em 1945 (cf. VIOTTI DA COSTA, 2001, p. 209).
03 Vicente Ráo foi Ministro da Justiça de Vargas de 1934 a 1937 e, posteriormente, Ministro das Relações Exteriores, de 1953 a 1954. Nasceu em São Paulo em 1892. Em 1911 obteve o doutorado em Filosofia e Letras pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo. Bacharelou-se em Direito em 1912 pela Faculdade de Direito de São Paulo. É autor, entre outros, de O Direito e a Vida dos Direitos. Faleceu em São Paulo, em 1978 (cf. Vilma Keller, 2001, p. 4899 e ss.).