O modelo consensuado (ou consensual) de Justiça penal, como vimos em artigo anterior, realiza-se pela conciliação ou mediação ou negociação. As duas primeiras são formas aceitas pela Justiça restaurativa. A terceira é típica do modelo norte-americano (plea bargaining).
Os sistemas de mediação e conciliação (como registra García-Pablos de Molina na obra escrita em conjunto com L.F. Gomes, Criminologia, 5. ed., São Paulo: RT, p. 398 e ss.) resgatam a dimensão real, histórica, interpessoal e comunitária do delito. Conseqüentemente propõem uma "gestão" (solução) participativa neste doloroso "problema social", ampliando o círculo tradicional dos operadores legitimados para nele intervir (inclusão de mediadores, conciliadores, juiz de paz etc.).
Tudo isso se daria mediante técnicas e procedimentos operativos informais (desinstitucionalizados), em favor de uma Justiça que pretende resolver o conflito, dar satisfação à vitima e à comunidade, pacificar as relações sociais interpessoais e gerais danificadas pelo delito e melhorar o clima social: sem vencedores nem vencidos, sem humilhar nem submeter o infrator às "iras da lei", nem apelar à "força vitoriosa do Direito".
Uma Justiça, pois, "restaurativa", de base comunitária, que se propõe intervir no problema criminal construtiva e solidariamente, para resolvê-lo, porém, sem conotação repressiva; não desde o "imperium" do sistema, senão confiando na capacidade dos implicados, para encontrar fórmulas de compromisso, de negociação, de pacto, de conciliação, de pacificação; confiando também na poderosa influência positiva dos grupos e instituições primárias: na educação, na comunicação, na reconstrução dos vínculos informais do indivíduo como garantia do acatamento sincero das normas comunitárias, assim como na prevenção do delito.
Os sistemas de mediação-conciliação (como ainda pondera Garcia-Pablos) são mais exigentes com o infrator, de quem reclamam uma sincera mudança de atitudes, mediante o processo de comunicação e interação com sua vítima. Não basta, pois, o cumprimento do castigo, nem a reparação do dano causado: pretende-se uma mudança qualitativa no infrator, de tal modo a implicá-lo ativamente na solução do conflito que ele ocasionou.
Esse modelo integrador ou restaurativo, de outro lado, é melhor que o convencional em relação às necessidades da vitima, devolvendo-lhe um papel ativo e dinâmico. A forma clássica de Justiça instrumentaliza a vítima, transformando-a em mero objeto passivo e fungível do processo. Conciliação e mediação evitam (ou suavizam), pois, a perniciosa vitimização secundária (que ocorre quando a vítima entra em contato com o sistema penal) e impulsionam à efetiva reparação do dano assim como à justa satisfação da vitima (não necessariamente na forma pecuniária), melhorando as atitudes desta última em relação ao infrator e ao sistema legal.
As diversas fórmulas de mediação-conciliação melhoram, ademais, a imagem da Justiça criminal, ao permitir que o cidadão perceba sua face humana bem como sua capacidade para resolver o doloroso problema social e comunitário do crime com critérios de eqüidade.
Seria incorreto, por isso mesmo, confundir este novo modelo - ou estilo - de reação ao crime com a (mera) reparação civil do dano, com o (simples) ressarcimento econômico. Ou mesmo com manifestações rituais da velha composição, da conciliação privada.
De qualquer modo, é certo que esses modelos consensuais não estão isentos de críticas. Também implicam sérios riscos como formas de solução de conflitos: risco de mercantilização da justiça, risco de privatização total do conflito etc. Devemos, portanto, avançar nessa linha conciliadora, mediadora ou restaurativa, mas com cautela e passo a passo.
Mediação e conciliação oferecem um balanço positivo quando, sem pretensões utópicas de universalidade, circunscrevem seu objeto a concretos conflitos (ex. de jovens e menores, infrações de escassa ou média importância etc.), que envolvem infratores primários. Mas correm o risco de se transformar em perversas e nocivas expressões de um tratamento privatizador inadmissível do conflito criminal, quando aspiram a operar como alternativa global do sistema - leia-se: da resposta pública e institucional ao delito - , alternativa externa, iludindo o controle jurisdicional e as garantias do cidadão que as instâncias do controle social devem respeitar.
O sistema clássico de Justiça criminal acha-se, desde sempre, em crise. Porque absolve ou condena, mas não "resolve" o problema criminal (praticamente nada de positivo faz para a solução verdadeira do problema). Porque impõe suas decisões com "imperium", mas sem "auctoritas". Porque se preocupa exclusivamente com o castigo do agente culpável - isto é, com a pretensão punitiva do Estado, que é só um dos sujeitos implicados no problema criminal - mas não atende às legítimas expectativas dos restantes: da vitima, da comunidade, do próprio infrator.
A efetiva reparação do dano causado pelo delito, a preocupação com a reinserção social do delinqüente e a pacificação das relações interpessoais e sociais afetadas pelo crime não são consideradas seriamente pelo modelo clássico, que atua guiado mais por critérios de eficiência administrativa do que de justiça e eqüidade.
Há, portanto, espaço para o crescimento no Brasil da chamada Justiça restaurativa, de qualquer modo, como sublinhava graficamente Carnelutti (comparando-se a negociação civil com a penal): "No penal, não se brinca com a lei. No civil, as partes têm as mãos livres; no penal devem tê-las atadas. Aqui não existe lugar mais do que para a lei, quer dizer, para o Direito já encontrado; não existe a possibilidade, quanto ao caso singular, de encontrar outro" [01].
Notas
01 CARNELUTTI, F., La equidade en el juicio penal (para la reforma de la corte de asises). In: Cuestiones sobre el proceso penal. Trad. Sentis Melendo, Buenos Aires: Librería el Foro, 1960, p. 292 e ss.