INTRODUÇÃO
Moçambique não é uma ilha, pese embora, ser um Estado independente e soberano. No concerto das Nações, Moçambique é parte integrante e membro de várias organizações internacionais. Nestes termos, sendo parte integrante do concerto das Nações, fica obrigado ao direito internacional, fazendo com que haja coabitação de normas, nomeadamente, internacionais e internas no seu ordenamento jurídico.
Outro sim, é um facto que Moçambique enquanto parte integrante do concerto das Nações, é subscritor de tratados e acordos internacionais. Com o presente trabalho, pretende-se analisar o ponto de situação do direito internacional na Ordem Jurídica Moçambicana, de modo a perceber-se o seu valor jurídico, o grau de cumprimento dos mesmos, bem como, os mecanismos de recepção e vinculação.
No presente trabalho, abordamos a política externa e direito internacional à luz do Ordenamento Jurídico Moçambicano, bem como, analisamos o direito internacional em vigor em Moçambique.
POLÍTICA EXTERNA E DIREITO INTERNACIONAL À LUZ DA CONSTITUIÇÃO DE MOÇAMBIQUE
De acordo com o preceituado no artigo 17 da Constituição da República (CRM), Moçambique estabelece relações de amizade e cooperação com outros Estados na base dos princípios de respeito mútuo pela soberania e integridade territorial, igualdade, não interferência nos assuntos internos e reciprocidade de benefícios, aceita, observa e aplica os princípios da Carta da Organização das Nações Unidas e da Carta da União Africana.
Como se pode depreender, Moçambique tem noção da necessidade da coabitação entre estados, bem como, entre os povos do mundo inteiro, da vida em sociedade, da globalização, dentre outros valores provenientes da amizade entre estados e povos. O facto de Moçambique aceitar, observar e aplicar os princípios da Carta da Organização das Nações Unidas e da União Africana, olhando para os objetivos destas organizações, demostra que é promotora e defensora da paz e da segurança internacionais.
Aliais, em relação a política de paz, a Constituição estabelece no seu artigo 22 que a República de Moçambique prossegue uma política de paz, só recorrendo à força em caso de legítima defesa; defende a primazia da solução negociada dos conflitos; e, defende o princípio do desarmamento geral e universal de todos os Estados.
Quanto ao apoio à liberdade dos povos e asilo, nos termos do artigo 20 da CRM, Moçambique apoia e é solidaria com a luta dos povos pela libertação nacional e pela democracia; concede asilo aos estrangeiros perseguidos em razão da sua luta pela libertação nacional, pela democracia, pela paz e pela defesa dos direitos humanos.
Em relação a solidariedade internacional, segundo o artigo 19, Moçambique solidariza-se com a luta dos povos e Estados africanos, pela unidade, liberdade, dignidade e direito ao progresso económico e social; busca o reforço das relações com países empenhados na consolidação da independência nacional, da democracia e na recuperação do uso e controlo das riquezas naturais a favor dos respectivos povos; e, associa-se a todos os Estados na luta pela instauração de uma ordem económica justa e equitativa nas relações internacionais.
No que tange aos laços especiais de amizade e cooperação, de acordo com o artigo 21 da CRM, Moçambique mantém laços especiais de amizade e cooperação com os países da região, com países de língua oficial portuguesa e com os países de acolhimento de emigrantes moçambicanos.
Por fim, em relação ao direito internacional, segundo o artigo 18, os tratados e acordos internacionais, validamente aprovados e ratificados, vigoram na ordem jurídica moçambicana após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado de Moçambique e as normas de direito internacional têm na ordem jurídica interna o mesmo valor que assumem os atos normativos infraconstitucionais emanados da Assembleia da República e do Governo, consoante a sua respetiva forma de recepção.
Portanto, o exercício do Direito Internacional é materializado em Moçambique através da Constituição da República. Em relação as Convenções que incluíam os territórios Ultramarinos e demais legislações da era colonial que passou a vincular também no Ordenamento Jurídico Moçambicano, este exercício jurídico foi feito com base na Constituição de 1975, ao prever no seu artigo 71 que toda legislação anterior no que não for contrário à Constituição mantém-se em vigor até que seja modificada ou revogada. De salientar que esta redação constitucional acompanhou a reforma constitucional de 1990 e a revisão de 2004 e a mais recente de 2018.
Para melhor a compreensão da abordagem, julgamos conveniente apresentar o nosso entendimento em relação aos instrumentos internacionais, objecto de ratificação, nomeadamente:
- Convenções que são documentos assinados em conferências internacionais que tratam de assuntos de interesse geral. Por exemplo a Convenção sobre Direitos da Criança; Convenção das Nações Unidas sobre Direitos do Homem e dos Povos; etc.
- Tratados que são acordos formais entre os sujeitos de Direito Internacional Público Estados, organismos internacionais e outras colectividades, com finalidade de gerar efeitos jurídicos com carácter internacional. Por exemplo o Protocolo de Quioto; Acordo de Paris sobre o Mudanças Climáticas; etc. Por outra, toda Convenção é um tratado, mas nem todo tratado é Convenção.
- Por sua vez o Protocolo é uma adenda a um Tratado, mantendo validas as ideias principais do corpo do Tratado. Daí temos os chamados protocolo adicional, protocolo opcional, protocolo facultativo ou simplesmente protocolo.
- Acordos que são entre dois ou mais países a respeito dos mais diversos temas: transporte, comércio, trabalho, circulação de pessoas e bens, entre outros.
Na verdade, os instrumentos internacionais trazem princípios gerais, que de per si, seria difícil a sua materialização em cada Estado-Parte, uma vez que muitos exigem, por exemplo, criar mecanismos penais, civis, administrativos, fiscais, entre outros. O que só seria possível com a intervenção dos legisladores ordinários dos Estados-Parte.
Por isso o papel dos Estados-Parte é crucial para concretização das agendas globais e internacionais, permanecendo inertes, não seria possível a corporificação de uma agenda global. Há uma perceção segundo a qual, o processo de ratificação é uma formalidade jurídica e política, perceção que a qual não concordamos com ela, com base na analise feita ao caso de Moçambique.
DIREITO INTERNACIONAL EM VIGOR NA ORDEM JURIDICA MOÇAMBICANA
Aqui apresentaremos os principais instrumentos internacionais ratificados e vigentes em Moçambique. Pela vastidão da matéria não serão abordadas todas as ratificações feitas por Moçambique, mas sim alguns e instrumentos ratificados pela Assembleia da República.
Segundo o preceituado no artigo 178 da CRM, compete à Assembleia da República legislar sobre as questões básicas da política interna e externa do país. A Constituição estabelece ainda que é da exclusiva competência da Assembleia da República, ratificar e denunciar os tratados internacionais; ratificar os tratados de participação de Moçambique nas organizações internacionais de defesa.
Como se pode depreender, a ratificação em Moçambique constitui matéria da esfera da Assembleia da República. Outro sim, ao Governo, reserva-lhe dentro de um contexto mais técnico, celebrar, ratificar, aderir acordos internacionais em matéria da sua índole, como por exemplo acordos de Donativos, Acordos de Crédito, Acordo Comercial, entre outros, nos termos do artigo 203 da Constituição.
Portanto, o legislador constituinte definiu áreas específicas de acordos de cooperação, onde a Assembleia da República atua em aspetos ligados a questões básicas da política externa, e, o Governo trata de questões específicas com destaque para acordos bilaterais, mormente os de natureza socioeconómica e financeira.
Nestes termos, a nossa abordagem tem como base, Convenções, Tratados, Protocolos e Acordos, ratificados pela Assembleia da República. Importa referir que desde a criação da primeira república em 1975, vários instrumentos internacionais foram ratificados e que vigoram no Ordenamento jurídico.
Em Moçambique os instrumentos internacionais assumem a força legal, de acordo com a forma da sua ratificação. Contudo, tirando a Declaração Universal dos Direitos do Homem da ONU e a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, cujos preceitos nos termos do artigo 43 da Constituição são tidos na interpretação constitucional, com aplicação direta, os demais instrumentos de Direito Internacional, a sua materialização obrigou que o país/Estados-Parte a criarem mecanismos legislativos e políticas internas para a efetivação.
A CRM prevê o direito anterior, estabelecendo no seu artigo 312 que a legislação anterior, no que não for contrária à Constituição, mantém-se em vigor até que seja modificada ou revogada. Este dispositivo constitucional introduziu na Ordem Jurídica Moçambicana o direito internacional ratificado no período colonial.
Foi com esta base por exemplo que a Convenção Única de 1961 sobre estupefaciente, continuou a vincular o Estado Moçambicano; continuou a vincular ainda a Convenção Internacional das Telecomunicações de 1949, bem como, a Convenção Internacional para repressão do tráfico de mulheres maiores de 1937, etc.
Em relação ao direito internacional em vigor em Moçambique, ratificado pós a criação da primeira república, escolhemos a título exemplificativo, algumas Resoluções da Assembleia da República que ratificam instrumentos internacionais, identificando a sua operacionalização na ordem interna:
- Convenção sobre relações Diplomáticas, feita em Viena em 18 de Abril de 1961, ratificada pela Resolução nº 4/81- de 2 de Setembro de 1981. Este instrumento a sua materialização é feita através das políticas de relações internacionais desenvolvidas pelo Governo, concretamente implementadas pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros.
- Convenção Africana sobre a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais, ratificada pela Resolução nº 18/81- de 30 de Dezembro de 1981. Este instrumento é materializado pelo Executivo, através do Ministério de Tutela, bem como pelo Legislativo através das leis de protecção do ambiente com destaque para a Lei de Terras (Lei n.19/97); Lei do Ambiente (Lei n.20/97); Lei n.16/2014, de 20 de Junho Lei de Protecção, Conservação e Uso Sustentável da Diversidade Biológica.
- Convenção de Lomé III celebrada a 8 de Dezembro de 1984 entre a Comunidade Económica Europeia e os Estados da África, das Caraíbas e do Pacífico, ratificada pela Resolução n.º 11/85. Este instrumento é materializado através de vários acordos comerciais de que Moçambique é parte activa nos mecanismos da ACP-EU, e na Assembleia da República foi constituído um Grupo Parlamentar que lida com as matérias da ACP-EU.
- Carta Africana dos Direitos Humanos dos Povos, ratificada pela Resolução n.º 9/88- de 25 de Agosto de 1988. Sua concretização consta no artigo 43 da nossa Constituição, sendo obrigatório na interpretação constitucional ser tido em conta os princípios desta Carta.
- Convenção sobre a entrega de pessoas condenadas a penas privativas de liberdade a fim de as cumprirem no Estado de que são cidadãos, ratificada pela Resolução n.º 10/88- "B. República", de 25 de Agosto. A sua corporalização é feita através de acordos bilaterais, como os ora existentes com o Vietnam, Brasil, entre outros.
- Convenção da OUA relativa a aspectos específicos dos problemas dos refugiados em África, de 10 de Setembro de 1969, ratificada pela Resolução n.º 11/88- de 25 de Agosto. A materialização é aferível com a criação do INAR Instituto Nacional de Apoio aos Refugiados, junto do Ministério dos Negócios Estrangeiros e Cooperação.
- Convenção Internacional de Telecomunicações assinada em Nairobi a 6 de Novembro de 1982, ratificada pela Resolução nº 2/89. Concretiza-se, também, com a criação da Lei das Telecomunicações (Lei n.4/2016, de 3 de Junho).
- Convenção Única de 1961 sobre os estupefacientes, ratificada pela Resolução n.º 7/90- de 18 de Setembro. A substancialização evidenciou-se com a aprovação da Lei 3/97 de 13 de Março (Lei de Combate à Droga).
- Pacto Internacional sobre os direitos Civis e Políticos, adoptado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 16 de Dezembro de 1966, ratificado pela Resolução n.º 5/91- de 12 de Dezembro. Sua efectivação consta na Constituição da República dos artigos 73 e seguintes que tratam sobre Direitos, Liberdades e Garantias de Participação Política.
- Segundo Protocolo ao Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos com vista à abolição da Pena de Mort, ratificado pelo Resolução n.º 6/91- de 12 de Dezembro de 1992. A matéria foi acomodada na Constituição da República, máxime n.2 do artigo 40.
- Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas, desumanos ou Degradantes, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de Dezembro de 1984, ratificada pela Resolução n.º 8/91- de 20 de Dezembro. A Materialização consta no n.3 do artigo 65 da Constituição.
- Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra as Mulheres, ratificada pelaResolução n.º 4/93 - de 2 de Junho de 1993. A Sua efectivação está consagrada na Lei nº 29/2009, sobre a Violência Doméstica praticada contra a Mulher.
- Convenção nº 138, sobre a Idade Mínima de Admissão ao Emprego, de 1973, ratificada pela Resolução nº 5/2003 de 28 de Maio. A sua materialização consta na Lei do Trabalho, Lei n.23/2007, de 1 de Agosto, artigos 22 e seguintes.
- Protocolo à Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos relativos aos direitos da Mulher em África, adoptada pela Segunda Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da União Africana.
- Convenção da União Africana sobre a Prevenção e Combate à Corrupção, raticada pela Resolução no 30/2006 de 2 de Agosto de 2006. Em Moçambique ao nível da Procuradoria Geral da República foi criado um Gabinete de Combate à Corrupção, estando o mesmo a ser estendido em todas Províncias.
- Protocolo opcional à Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Contra as Mulheres, ratificado pelo Resolução no 3/2008 de 30 de Maio de 2008. Em certa medida a materialização consta na actual Lei das Sucessões onde o cônjuge passou a ser preferido na herança, diferentemente do passado que estava colocado na quarta posição. Pelo histórico social-cultural, a versão primitiva prejudicava particularmente a mulher, aquando da morte do respectivo marido.
- Carta Africana Sobre os Valores e Princípios da Função e Administração Pública, ratificada pela Resolução nº 67/2012, de 28 de Dezembro. Consta a sua concretização no EGFAE, Lei n.10/2017, de 1 de Agosto.
- Carta Africana sobre Democracia. Eleições e Governação, adoptada pelo os Estados Membros da União Africana a 30 de Janeiro de 2007, ratificada pela Resolução nº9/2017, de 22 de Junho. A execução pode ser evidenciada no circulo regular de eleições em Moçambique, sendo a última me 2019.
Como se pode depreender, a amostra exemplificativa das resoluções acima que ratificam instrumentos internacionais é insignificante face as inúmeras ferramentas ratificadas e sendo, realmente implementadas em Moçambique. Ficaríamos horas a fio só a demonstrar que em Moçambique, os instrumentos internacionais não são letra morta, sua materialização acontece e com responsabilidade necessária, face aos compromissos internacionais e com os moçambicanos em particular.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Moçambique sendo parte do Concerto das Nações é integrante de várias organizações internacionais, ficando obrigado ao direito internacional.
Moçambique é signatário de vários instrumentos internacionais, instrumentos estes que vigoram na sua ordem jurídica. Anotamos que em Moçambique, as normas de direito internacional têm na ordem jurídica interna, o mesmo valor que assumem os actos normativos infraconstitucionais emanados da Assembleia da República e do Governo, consoante a sua respectiva forma de recepção.
Em Moçambique, os instrumentos internacionais não são letra morta, a sua materialização acontece e com responsabilidade necessária, face aos compromissos internacionais assumidos.
O Direito Internacional é materializado em Moçambique através da Constituição da República, das leis ordinárias e das políticas de governação.