Inicialmente, é preciso mencionar que a Justiça Restaurativa se opõe ao tradicional sistema punitivo. A ineficácia das inúmeras reformas que têm por objetivo salvar a prisão é atestada por diversos estudos, que referem que:
Todas as reformas de nossos dias deixam patente o descrédito na grande esperança depositada na pena de prisão, como forma quase que exclusiva de controle social formalizado. Pouco mais de dois séculos foi suficiente para se constatar sua mais absoluta falência em termos de medidas retributivas e preventivas. (BITENCOURT, 2007, p.103).
Nesse contexto, os ideais abolicionistas ganham força a partir da última década do século XX, sob a influência do Labelling approach, da Etnometodologia Norte-Americana e da Nova Criminologia. O abolicionismo engloba uma série de representantes, com muitas propostas diferentes, e, por isso, não pode ser visto como movimento unitário. (BITENCOURT, 2007)
Embora diversas, como referido, as doutrinas abolicionistas se caracterizam por não reconhecer a legitimidade do direito penal e não acolher a justificativa dos seus fins, ante o sofrimento que ele provoca. Em lugar do modelo de sanções punitivas, essas doutrinas advogam por formas pedagógicas ou de controle social informal. Importante referir, neste ponto, que as doutrinas abolicionistas não devem ser confundidas com as doutrinas substitucionistas, tampouco com as reformadoras, ao passo que essas últimas buscam, respectivamente, a troca da pena por tratamentos e sanções menos dolorosas do que a prisão. (BITENCOURT, 2007)
É correto dizer, então, que o abolicionismo, como regra geral, pugna pela superação da pena de prisão, mas não só isso, pois também pretende superar as formas punitivas tradicionais, como cita Larrauri:
As críticas abolicionistas versam sobre o direito penal e a forma pela qual este trata os delitos. Primeiramente porque os delitos não teriam uma realidade ontológica, sendo apenas expressão de conflitos sociais, problemas, casualidades, etc. e, em segundo lugar, porque o direito penal não auxilia na resolução de tais problemas, pois não evita delitos e não ajuda o autor do delito e a vítima. (LARRAURI, 2004, p. 198).
Portanto, o movimento abolicionista defende a troca do padrão consagrado de justiça penal, tentando a reparação da celeuma pela vítima e o ofensor, definindo que terceiros devem intervir apenas na condição de mediadores. A solução dos conflitos, de acordo com os ideais abolicionistas, viria da própria comunidade no âmbito do direito civil. (LARRAURI, 2004)
Um conceito fundamental que deve estar muito claro para que se entendam as ideias abolicionistas é que a vítima, no sistema penal tradicional é desconsiderada, ela é esquecida, deixada à margem dos acontecimentos, eis que esse modelo trata apenas da proteção dos bens jurídicos. A mudança desse pensamento, que preconiza a maior participação da vítima no processo penal, veio por intermédio da doutrina chamada Vitimologia.
O que a vitimologia trouxe à tona, afinal, é que o atual sistema de justiça penal ignora a vítima e suas necessidades já que as vítimas, muitas vezes, querem apenas que o dano seja ressarcido, que o ofensor lhe dê explicações para que possa compreender o ocorrido, ou, ainda, que receba um pedido de desculpas. ( LARRAURI & BUSTOS, 1993, p. 80).
Os ideais abolicionistas e posteriormente da vitimologia deram vez à concepção do que hoje se conhece por Justiça Restaurativa. Uma análise mais ampla, porém, permite identificar modelos bastante antigos de justiça, principalmente em povos originários da África do Sul, os quais mantêm semelhanças notórias com os princípios da Justiça Restaurativa tal como temos nos nossos dias.
Marshall define a Justiça Restaurativa como um processo pelo qual todas as partes que têm interesse em determinada ofensa, juntam-se para resolvê-la coletivamente e para tratar suas implicações futuras. (MARSHALL, apud LARRAURI, 2004, p. 198)
Outros estudos referem-se ao processo de justiça restaurativa como uma aproximação que privilegia toda a forma de ação, individual ou coletiva, visando corrigir as consequências vivenciadas por ocasião de uma infração, a resolução de um conflito ou a reconciliação das partes ligadas a um conflito (JACCOUD, 2005, p.169)
Muito importante dizer que, apesar dos conceitos antes apresentados, a Justiça Restaurativa tem uma caráter aberto e fluido, em constante modificação, provocada pelos estudos e as práticas.
Na década de 70 e 80 (no contexto norte-americano) falava-se em mediação entre vítima e ofensor e reconciliação. Neste momento, a justiça restaurativa estava associada ao movimento de descriminalização. Nos anos 70 encontrava-se em fase experimental e possuía experiências-piloto no sistema penal. Já na década de 80, tais experiências foram institucionalizadas. Na década seguinte (anos 90) a justiça restaurativa se expandiu e foi inserida em todas as etapas do processo penal. (JACCOUD, 2005, p. 166).
Pode-se dizer, então, com segurança que a Justiça Restaurativa é, em verdade, uma transformação radical, ao passo que não propõe somente a reforma o sistema de justiça criminal tradicional, mas a modificação de todo o sistema legal, passando pela vida das pessoas, seja na esfera familiar ou de trabalho, e chegando até mesmo à política. Vale ressaltar, como já afirmado, que os valores desta justiça não são estanques. Ao contrário, eles vão se ajustando, se adaptando e se modificando a partir da experiência e de sua utilização na prática.
Não obstante o que dizem os críticos, é incorreto dizer que a Justiça Restaurativa não prevê punições. A mudança se dá na maior participação da vítima no processo, no qual o autor do fato delituoso é confrontado com o mal que causou, na busca da reparação do sofrimento do ofendido. Não se trata, portanto, de determinar sofrimentos aleatórios ao ofensor, mas de induzir a um tipo apropriado de sofrimento o sofrimento intrínseco em confrontar e arrepender-se de um delito e repará-lo. (DUFF, 2003, p. 43)
A partir dos argumentos apresentados, torna-se imprescindível o aprofundamento no tema e a ampliação da aplicação da promissora Justiça Restaurativa no Brasil.
BIBLIOGRAFIA
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