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Regulamentação jurídica do acesso à biodiversidade

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5. Consideração do patrimônio genético como bem da União

            A medida provisória, lamentavelmente, apresenta problemas que comprometem sua constitucionalidade. Inicialmente, em seu art. 2º, condiciona a exploração do patrimônio genético existente no País à autorização ou permissão da União. Mesmo em se tratando de terras de propriedade particular ou dos Estados-Membros da Federação, a exploração depende de intervenção da União. No caso, a medida provisória estabeleceu forma centralizada de controle que desrespeita a competência legislativa concorrente dos Estados-Membros para dispor sobre os interesses regionais. Segundo os termos da medida provisória, o Estado-Membro não é sequer é consultado sobre a exploração do patrimônio genético existente em seu território.

            Tal posicionamento viola o sistema da competência legislativa concorrente e considera o patrimônio genético como bem pertencente à União. Entretanto, o art. 20 da Constituição Federal não contempla o patrimônio genético como bem pertencente à União. O Projeto de Emenda Constitucional n° 618/98 materializou tentativa de incluir o patrimônio genético como bem da União mas, enquanto a alteração não for produzida, afigura-se inconstitucional a concentração de poderes nas mãos da União.

            A concentração abusiva de poderes nas mãos da União torna-se mais evidente com o art. 10 da Medida Provisória, que permitiu ao Poder Executivo criar o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético - CGEN, no âmbito do Ministério do Meio Ambiente, composto de representantes dos órgãos e entidades da administração pública federal e que detêm competência legal sobre as diversas ações de que trata a medida provisória. Segundo a Medida Provisória, compete ao Conselho de Gestão, entre outras tarefas: acompanhar, em articulação com órgãos federais, ou mediante convênio com outras instituições, as atividades de acesso e de remessa de amostra de componente do patrimônio genético e de acesso a conhecimento tradicional associado; deliberar sobre autorização de acesso e de remessa de amostra de componente do patrimônio genético; deliberar sobre autorização de acesso a conhecimento tradicional associado; deliberar sobre autorização especial de acesso e de remessa de amostra de componente do patrimônio genético à instituição nacional, pública ou privada, que exerça atividade de pesquisa e desenvolvimento nas áreas biológicas e afins, e à universidade nacional, pública ou privada, com prazo de duração de até dois anos, renovável por iguais períodos, nos termos do regulamento; deliberar sobre autorização especial de acesso a conhecimento tradicional associado à instituição nacional, pública ou privada, que exerça atividade de pesquisa e desenvolvimento nas áreas biológicas e afins, e à universidade nacional, pública ou privada, com prazo de duração de até dois anos, renovável por iguais períodos, nos termos do regulamento; deliberar sobre credenciamento de instituição pública nacional de pesquisa e desenvolvimento ou de instituição pública federal de gestão para autorizar outra instituição nacional, pública ou privada, que exerça atividade de pesquisa e desenvolvimento nas áreas biológicas e afins, a acessar amostra de componente do patrimônio genético e de conhecimento tradicional associado... etc.

A análise dos poderes conferidos pela Medida Provisória ao Conselho de Gestão do Patrimônio Genético evidencia a manifesta invasão de competência legislativa, não restando ao Estado-Membro nenhuma possibilidade para avaliar a conveniência ou oportunidade da bioprospecção que se realize nas áreas de seu território.

Com efeito, ficaram concentrados na União todos os poderes de autorização, fiscalização e controle das atividades de acesso à biodiversidade. Dessa forma, a Medida Provisória regulamentou não somente os princípios gerais que lhe são próprios, conforme a competência concorrente, mas também os assuntos que foram deferidos pela Constituição à consideração do Estado-Membro.

Note-se que a concentração de poder, que fere manifestamente a previsão da competência legislativa concorrente, foi inicialmente instrumentalizada de maneira nociva aos interesses do País. Veja-se o disposto no art. 10 da primeira versão da Medida Provisória, que regulariza a atividade exploratória ofensiva ao patrimônio nacional exercida anteriormente à edição da referida medida. Dispunha o art. 10 que "à pessoa de boa-fé que, até 30 de junho de 2000, utilizava ou explorava economicamente qualquer conhecimento tradicional no país, será assegurado o direito de continuar a utilização ou exploração, sem ônus, na forma e nas condições anteriores".

A primeira edição da medida provisória foi fortemente criticada pelos ambientalistas, que a apelidaram de Medida da Novartis. O apelido faz referência ao acordo de cooperação assinado entre a empresa multinacional de origem suíça Novartis Pharma AG e a Associação Brasileira para o Uso Sustentável da Biodiversidade da Amazônia (BioAmazônia), que previa o envio em larga escala para o exterior de extratos derivados da biodiversidade encontrada na Amazônia. Nos termos do acordo, a Novartis patentearia e controlaria sozinha os produtos que ela pudesse criar a partir de microorganismos, fungos e plantas coletadas pela BioAmazônia. A Novartis poderia, ainda, ter o direito de transferência e uso dos materiais genéticos selecionados e teria acesso irrestrito aos dados taxonômicos, genéticos, aos processos de isolamento, meios de cultura, tecnologias de multiplicação e de replicação de microorganismos, fungos e plantas, ou seja, a todos os aspectos que envolvem a exploração desse material brasileiro. Conforme a Medida Provisória, se considerarmos que o acordo foi celebrado de boa-fé, os direitos da Novartis foram preservados em detrimento do interesse nacional.

As muitas críticas levantadas ao dispositivo fizeram com que na edição de abril de 2001 houvesse significativa alteração do tratamento dado ao assunto e hoje o art. 34 da Medida Provisória nº 2.186-16/01 dispõe que "a pessoa que utiliza ou explora economicamente componentes do patrimônio genético e conhecimento tradicional associado deverá adequar suas atividades às normas desta Medida Provisória e do seu regulamento." [17] Isto significa que aqueles que já exploravam o patrimônio genético antes da edição da Medida Provisória devam se adequar aos seus termos, em especial no que se refere à repartição dos benefícios.

            O acesso aos recursos genéticos do país constitui tema de especial importância para o povo brasileiro. O governo federal percebeu muito bem tal importância e, violando o sistema da competência legislativa concorrente, tomou para si todos os poderes inerentes ao controle das atividades de acesso e manejo do patrimônio genético. Para enfrentar o abuso torna-se necessário constituir o instrumento jurídico de defesa dos interesses do Estado-membro, que se materializa na edição de lei estadual que regulamente o acesso aos recursos genéticos no âmbito estadual, conforme as particularidades regionais, bem como ressaltar que a atividade de bioprospecção depende de prévio licenciamento ambiental pelo órgão competente (estadual ou municipal).


6. Princípios protetivos aplicáveis ao acesso aos recursos genéticos

            Ao regulamentar o acesso aos recursos genéticos, o Estado-Membro deve explicitar os princípios que irão orientar as atividades de bioprospecção realizadas em seu território. Muito embora esta não tenha sido preocupação da Medida Provisória, tais princípios serão de significativa importância para a orientação das atividades desenvolvidas no meio ambiente e para o controle estatal que visa à preservação da diversidade biológica.

            Nos primeiros momentos da discussão sobre o controle do acesso ao patrimônio genético, sem prejuízo de outras orientações que venham a surgir do amadurecimento da questão, pode-se vislumbrar a conveniência de explicitar a necessidade de observância dos princípios da ação preventiva, da prudência e da responsabilidade. Ainda carentes de elaboração mais apurada, no momento, pode-se definir os princípios mencionados como sendo:

            Princípio da Ação Preventiva: a atividade de prospecção deve orientar-se no sentido de evitar a ocorrência de danos ao meio ambiente. A possibilidade de posterior reparação do dano eventualmente produzido não justifica qualquer descuido no exercício das formas de controle no desenvolvimento de atividade potencialmente lesiva.

            Princípio da Prudência: somente se pode realizar atividade cuja dimensão do impacto ambiental seja conhecido e controlado de modo a não afetar a viabilidade dos ecossistemas envolvidos.

            Princípio da Responsabilidade: a atividade lesiva ao meio ambiente gera responsabilidade de reparar os danos e somente pode ser desenvolvida por pessoa com idoneidade econômico-finaceira para, em sendo necessário, promover a reparação dos danos causados.


7. Mecanismos de controle do acesso à biodiversidade

            As discussões para a elaboração de projetos de lei estadual que regulamentem o acesso à biodiversidade têm como ponto de partida as disposições da Medida Provisória 2.186-16/01 e dos projetos em tramitação no Congresso Nacional brasileiro, mas devem se adequar às peculiaridades regionais. Os esforços têm-se orientado para fazer com que todo e qualquer procedimento de acesso aos recursos genéticos no território do Estado dependa de autorização prévia e da assinatura e publicação de contrato entre o Poder Público e as pessoas físicas ou jurídicas interessadas. Fazendo com que o acesso dependa sempre de autorização, administrativamente o Estado-Membro poderá conhecer e fiscalizar todas as atividades de acesso e manipulação dos recursos naturais existentes em seu território.

            Sempre que o acesso envolver conhecimento tradicional associado, deve-se fazer com que ele dependa ainda do consentimento prévio e informado das comunidades em questão. Na Medida provisória, tal preocupação está consagrada no inciso II de seu art. 9ª. O Poder Público tem obrigação de proteger o patrimônio cultural de seu povo e impedir a exploração das comunidades tradicionais pelos interesses do mercado.

            Como forma de proteção do patrimônio nacional, pretende-se que a autorização para acesso ao recurso genético, produto derivado e conhecimento tradicional associado só seja concedida à instituição nacional de reconhecida idoneidade e capacidade técnica, pública ou privada, que exerça atividades de pesquisa e desenvolvimento nas áreas biológicas, humanas e afins. A participação de pessoa jurídica sediada no exterior na coleta de amostra de recursos genéticos ou produtos derivados ou de informações relativas ao conhecimento tradicional associado somente deve ser autorizada quando feita em conjunto com instituição pública nacional, sendo a coordenação das atividades obrigatoriamente realizada por esta última. Não se pode conceber que empresa estrangeira tenha acesso aos recursos genéticos brasileiros sem que o povo brasileiro possa compartilhar dos benefícios decorrentes de tal atividade ou controlar os efeitos nocivos da bioprospecção.

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            Deve-se prever que, a qualquer tempo, quando exista perigo de dano grave e irreversível decorrente de atividades de acesso aos recursos, o Poder Público possa adotar todas as medidas necessárias a impedir o dano, podendo inclusive sustar ou manter as atividades desenvolvidas no meio ambiente. Por outro lado, não se pode admitir que a falta de certeza científica absoluta sobre o nexo causal entre a atividade de acesso aos recursos genéticos e o dano possa ser alegado para postergar a adoção das medidas eficazes à proteção ambiental. A defesa do patrimônio nacional deve prevalecer sobre qualquer interesse econômico de particulares.

            É importante que, para obter a autorização e firmar o contrato de acesso aos recursos genéticos, a pessoa física ou jurídica interessada apresente solicitação, acompanhada de projeto detalhado para as atividades de acesso, em que constem pelo menos os seguintes itens: a) identificação completa do solicitante, que deve ter idoneidade para contratar e comprovar capacidade técnica das pessoas ou entidades associadas ou de apoio e do provedor dos recursos genéticos, [18] produtos derivados ou de conhecimento tradicional; b) informação completa sobre o cronograma de trabalho previsto, orçamento e as fontes de financiamento; c) informação detalhada e especificada dos recursos genéticos, produtos derivados ou conhecimento tradicional a que se pretende ter acesso, incluindo seus usos atuais e potenciais, sua sustentabilidade ambiental e os riscos que possam decorrer do acesso; d) descrição circunstanciada dos métodos, técnicas, sistemas de coleta e instrumentos a serem utilizados; e) localização precisa das áreas onde serão realizados os procedimentos de acesso; f) indicação do destino a ser dado ao material coletado e seu provável uso posterior.

            Quando o acesso envolver um conhecimento tradicional, não se poderá firmar contrato de acesso sem o consentimento prévio e informado das populações locais ou da comunidade indígena.

            Sem prejuízo das cominações cíveis e penais cabíveis, a regulamentação jurídica do acesso aos recursos genéticos deve prever sanções administrativas para as infrações cometidas pela prospecção que contrarie as condições especificadas nos contratos de acesso. Em especial, deve-se declarar a ilegalidade do uso de recursos genéticos e seus produtos derivados, para fins de pesquisa, conservação ou aplicação industrial ou comercial, quando não tenham sido objeto de contrato de acesso ou com infração de suas disposições. Na Medida Provisória, o art. 26 estabelece as sanções administrativas para o acesso ilegal aos recursos genéticos:

            "Art. 26. A exploração econômica de produto ou processo desenvolvido a partir de amostra de componente do patrimônio genético ou de conhecimento tradicional associado, acessada em desacordo com as disposições desta Medida Provisória, sujeitará o infrator ao pagamento de indenização correspondente a, no mínimo, vinte por cento do faturamento bruto obtido na comercialização de produto ou de royalties obtidos de terceiros pelo infrator, em decorrência de licenciamento de produto ou processo ou do uso da tecnologia, protegidos ou não por propriedade intelectual, sem prejuízo das sanções administrativas e penais cabíveis."

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Sobre o autor
Fernando Antonio Nogueira Galvão da Rocha

juiz civil do Tribunal de Justiça Militar, professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Fernando Antonio Nogueira Galvão. Regulamentação jurídica do acesso à biodiversidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1465, 6 jul. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10103. Acesso em: 22 dez. 2024.

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