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Regulamentação jurídica do acesso à biodiversidade

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8. Contrato de acesso

            O contrato de acesso é a materialização do acordo firmado entre o Estado-Membro e as pessoas, físicas ou jurídicas, interessadas no acesso aos recursos genéticos, que estabelece os termos e condições para o acesso, incluindo obrigatoriamente a repartição de benefícios e a transferência de tecnologia, de acordo com o previsto na lei estadual.

            Conforme os termos da Medida Provisória, a União não é necessariamente parte do contrato de acesso (art. 28, parágrafo único). A legislação Estadual pode, ou não, determinar que o Estado-membro seja interveniente obrigatório dos contratos de acesso. No entanto, é aconselhável que o Estado-Membro seja parte em todos os contratos de acesso ao patrimônio genético. Assim, devem ser partes no contrato de acesso o Estado-Membro, representado por seu órgão competente, o solicitante do acesso e o provedor do conhecimento tradicional ou do cultivo agrícola domesticado, nos casos de contrato de acesso que envolvam estes componentes. A regulamentação da forma como se deva considerar obtido o consentimento prévio e informado das populações tradicionais, locais ou da comunidade indígena constitui problema especial. Como orientação fundamental, tem-se apenas que a forma de obtenção do consentimento não pode contrariar as tradições de liderança e representatividade das comunidades envolvidas.

            Quando a solicitação de acesso envolver um conhecimento tradicional ou um cultivo agrícola domesticado, o contrato de acesso deve incorporar um anexo, denominado contrato acessório de utilização de conhecimento tradicional ou de cultivo agrícola domesticado, subscrito pelo provedor do conhecimento tradicional ou do cultivo agrícola domesticado e pelo solicitante, que estabeleça a compensação justa e eqüitativa relativa aos benefícios provenientes da utilização de tal conhecimento tradicional, indicando-se expressamente a forma de tal participação.

            No contrato de acesso devem constar todas as demais condições e obrigações a serem cumpridas pelas partes, merecendo especial destaque:

            I – definição do objeto e prazo do contrato de acesso;

            II – indicação dos benefícios de toda a ordem (econômicos, sociais, tecnológicos, biotecnológicos, científicos e culturais), consignando-se sua distribuição inicial e posterior;

            III – determinação da titularidade de eventuais direitos de propriedade intelectual e de comercialização dos produtos e processos obtidos e das condições para concessão de licenças;

            IV – determinação das formas de identificação de amostras que permitam o acompanhamento das atividades de bioprospecção;

            V – obrigação do solicitante de não ceder ou transferir a terceiros o acesso, manejo ou utilização dos recursos genéticos e seus produtos derivados sem o consentimento expresso do órgão público competente e, quando for o caso, das comunidades locais ou populações indígenas detentoras do conhecimento tradicional ou do cultivo agrícola domesticado, objetos do procedimento de acesso;

            VI – compromisso do solicitante de comunicar previamente ao órgão público competente sobre as pesquisas e utilizações dos recursos genéticos e produtos derivados objetos do acesso;

            VII – compromisso do solicitante de informar previamente ao órgão público competente sobre a possibilidade de obtenção de produtos ou processos novos ou distintos daqueles objetos do contrato, os quais deverão importar em novo contrato de acesso;

            VIII – obrigação do solicitante de apresentar ao órgão público competente relatórios periódicos dos resultados alcançados;

            IX – compromisso do solicitante de solicitar a prévia autorização ao órgão público competente para a transferência ou movimentação dos recursos genéticos e produtos derivados para fora das áreas designadas para o procedimento de acesso;

            X – obrigação de depósito das amostras do recurso genético e produtos derivados objetos do acesso, incluindo todo material associado, em instituição designada pelo órgão público competente, com expressa proibição de saída do Estado de amostras únicas;

            XI – indicação dos mecanismos de captação, distribuição, movimentação e transferência das amostras;

            XII – eventuais compromissos de confidencialidade, pelas partes contratantes, sobre aspectos que envolvam direitos de propriedade intelectual;

            XIII – estabelecimento de garantia que assegure o ressarcimento, em caso de descumprimento das estipulações do contrato por parte do solicitante;

            XIV – estabelecimento de cláusula de indenização por responsabilidade contratual, extracontratual e por danos ao meio ambiente;

            XV – submissão a todas as demais normas estaduais e nacionais, em especial as de controle sanitário, biossegurança, proteção do meio ambiente e aduaneiras;

            XVI – participação estadual nos benefícios econômicos, sociais e ambientais dos produtos e processos derivados das atividades de acesso.

            O contrato de acesso deve garantir que quaisquer trabalhos desenvolvidos em terras indígenas dependam do consentimento prévio e informado daquela comunidade, respeitando-se os costumes e a tradição do povo indígena, bem como as suas riquezas naturais. É necessário deixar claro que constitui direito da comunidade indígena preservar todo e qualquer conhecimento tradicional que detenha, em especial sobre as características ou propriedades de ecossistemas e hábitats naturais, espécies vivas, vegetais ou animais, microorganismos, fármacos e essências naturais, ou quaisquer recursos ou processos biológicos ou genéticos, objetos de propriedade intelectual. Nesse sentido, deve-se garantir ainda que a comunidade indígena ou qualquer um de seus membros possa requerer o registro da propriedade intelectual, possibilitando o retorno dos benefícios advindos da exploração econômica do conhecimento à comunidade. Na Medida Provisória, a preocupação com as comunidades indígenas está prevista nos artigos 8°, §§ 1° e 3°, 9°, 16, § 9°, inciso I, e 27. O reconhecimento da titularidade do conhecimento tradicional está expresso no parágrafo único do art. 9°, que dispõe que "qualquer conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético poderá ser de titularidade da comunidade, ainda que apenas um indivíduo, membro dessa comunidade, detenha esse conhecimento".


9. Execução e acompanhamento dos contratos de acesso

            Para o melhor acompanhamento das atividades de acesso aos recursos genéticos é aconselhável que a legislação estadual determine que todos os procedimentos de acesso sejam supervisionados por instituição técnico-científica brasileira de reconhecido conceito na área objeto do procedimento, especialmente designada pelo órgão público competente. Tal procedimento de fiscalização deve ter início com a submissão do empreendimento a licenciamento ambiental e que o acompanhamento da execução do contrato figure como condicionante do licenciamento ambiental.

            Com efeito, a regulamentação jurídica do acesso à biodiversidade não constitui efetiva proteção ao meio ambiente se não estabelecer mecanismos de controle material das atividades de bioprospecção. A norma estadual não pode ser mera formalidade, que legitima o acesso aos recursos genéticos. O conteúdo material da regulamentação jurídica é o efetivo acompanhamento pelo Poder Público de toda atividade de pesquisa e manipulação de nossos recursos naturais.

            O acompanhamento pelo Poder Público da execução do contrato de acesso visa impedir que o acesso deixe de observar as condições de cuidado previamente estabelecidas para a proteção dos interesses sociais envolvidos. Não acompanhar a execução do contrato de acesso, na verdade, seria pior do que não regulamentar o acesso à biodiversidade, pois conferia legitimidade à prospecção que viola os interesses nacionais. O acesso que se realiza mediante contrato ostenta a aparência de atividade cuidadosa com o bem jurídico e, se não acompanhado, pode encobrir graves violações aos interesses do povo brasileiro. De nada adianta regulamentar formalmente o acesso ao patrimônio genético se não houver efetiva fiscalização quanto ao cumprimento das condições estabelecidas para o acesso. Na Medida Provisória não há previsão de submissão da atividade de bioprospecção a licenciamento ambiental e o acompanhamento do contrato de acesso somente é previsto para os casos de acesso por instituição estrangeira (§ 6°, do art. 16). A omissão é importante e demonstra a necessidade de cuidado por parte do legislador estadual.


10. Repartição dos benefícios

            É muito importante que a lei estadual preveja de maneira clara a obrigação de repartir os benefícios obtidos com a exploração econômica dos recursos genéticos entre as partes contratantes. Não se pode conceber uma exploração econômica dos recursos genéticos nacionais sem que o povo brasileiro possa beneficiar-se de tal exploração. Lamentavelmente é comum que a exploração econômica dos nossos recursos beneficie apenas as empresas multinacionais. Veja-se os exemplos constatados na investigação que o Ministério Público de Minas Gerais desenvolve sobre a exploração econômica ilegal de plantas nativas utilizadas pela medicina tradicional pela indústria farmacêutica multinacional. [19] Nesse sentido, vale observar como a Medida Provisória 2.186-16/01 enfrentou a questão para proteger os interesses nacionais.

            A Medida Provisória estabelece, em seu art. 24, que "os benefícios resultantes da exploração econômica de produto ou processo desenvolvido a partir de amostra de componente do patrimônio genético e de conhecimento tradicional associado, obtidos por instituição nacional ou instituição sediada no exterior, serão repartidos, de forma justa e eqüitativa, entre as partes contratantes, conforme dispuser o regulamento e a legislação pertinente."

            Em seu art. 25, a MP esclarece que "os benefícios decorrentes da exploração econômica de produto ou processo, desenvolvido a partir de amostra do patrimônio genético ou de conhecimento tradicional associado, poderão constituir-se, dentre outros, de: I - divisão de lucros; II - pagamento de royalties; III - acesso e transferência de tecnologias; IV - licenciamento, livre de ônus, de produtos e processos; e V - capacitação de recursos humanos."

            É conveniente que a lei estadual que preveja a repartição dos benefícios decorrentes do acesso ao patrimônio genético se concilie com as disposições regulamentares da Medida Provisória, para evitar discussões jurídicas que prejudiquem os objetivos de repartição das vantagens oriundas da exploração econômica dos recursos genéticos.


11. Retribuição ao Estado

            Além das remunerações e partilhas de benefícios contratadas entre os particulares,
a legislação estadual deve assegurar ao Estado-Membro uma compensação pela intervenção realizada na biodiversidade, que poderá ser monetária ou em direitos de comercialização, conforme definido expressamente no contrato de acesso firmado. Tal compensação deve ser materializada em condicionante ao licenciamento ambiental do empreendimento de bioprospecção.

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            Vale observar que o Poder Público deverá movimentar-se para controlar as atividades de acesso, sempre no interesse da sociedade, e os custos operacionais das ações protetivas do meio ambiente devem ser compensados. A retribuição que a pessoa interessada na bioprospecção faz ao Estado-Membro é sempre retribuição social.

            Nesse sentido, os recursos oriundos dessa retribuição podem ser revertidos a um Fundo Estadual da Diversidade Biológica e destinados à conservação da biodiversidade nos limites do território estadual.


12. Acesso aos recursos em condições "ex situ"

            Uma regulamentação jurídica para o acesso à biodiversidade não pode restringir-se aos recursos existentes in situ. Deve também regular o acesso aos recursos existentes fora de seu ambiente natural, ou seja, aqueles mantidos em instituições de pesquisa e manipulação de recursos genéticos. Seria de todo ineficiente controlar o acesso aos recursos situados em seu ambiente natural para, logo depois do acesso, perder o controle da destinação dada a esses recursos.

            Para efetivamente regulamentar o acesso à biodiversidade, é necessário que a legislação estadual enfrente o tema da transferência de material genético entre centros de conservação ex situ ou entre estes centros e terceiros, internamente ou mediante importação ou exportação. No interesse público, tais atividades também devem ser controladas e, assim, constituir modalidades especiais de contrato de acesso.

            Situação que merece especial atenção é a que diz respeito à transferência de material genético realizado entre as universidades. Embora a finalidade precípua da universidade seja a pesquisa com vistas ao atendimento das necessidades sociais, suas atividades de bioprospecção devem sujeitar-se ao controle social. Note-se ainda que também as universidades privadas podem fazer pesquisas envolvendo o patrimônio genético e, nessas instituições, o interesse de lucro pode violar os interesses maiores da sociedade. Mesmo quando se tratar de universidade pública, as informações sobre as atividades de acesso à biodiversidade, os resultados obtidos e as potencialidades de exploração do patrimônio genético devem estar francamente indisponíveis ao controle do Poder Público. A irrestrita autorização de acesso para as universidades pode abrir portas à realização dos interesses dos grandes grupos econômicos em detrimento dos interesses sociais. A legislação protetiva estadual não pode permitir tal situação.

            Exigindo a realização de contrato de acesso para os recursos ex situ, o Estado-Membro poderá manter controle sobre as operações de transferências de material entre os centros de conservação, intervindo sempre que os interesses sociais estejam em perigo. A legislação estadual deve aplicar aos contratos de acesso a recursos ex situ todas as formas de controle estabelecidas para o acesso em condições in situ. Tratando-se do mesmo patrimônio, não existem razões para o descuido com o recurso preservado fora de seu ambiente natural. A Medida Provisória trata da manutenção de sub-amostra do patrimônio genético em condições ex situ no § 3° do art. 16 e da remessa de material no art. 19.

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Sobre o autor
Fernando Antonio Nogueira Galvão da Rocha

juiz civil do Tribunal de Justiça Militar, professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Fernando Antonio Nogueira Galvão. Regulamentação jurídica do acesso à biodiversidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1465, 6 jul. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10103. Acesso em: 11 mai. 2024.

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