A brilhantina é um cosmético na forma de pomada utilizado para modelar o cabelo, sendo muito famosa entre os anos 50 e 70, servindo inclusive como nome para o musical “Grease”, estreado por John Travolta e de grande sucesso.1
Ora, tendo em vista a época em que foi utilizado, serviu como norte para o discurso a ser apresentado nesse texto.
A prática tem nos mostrado que a Advocacia Pública, salvo raras exceções, tem evoluído a passos deveras lentos, praticamente ainda estando na época da brilhantina.
Com efeito, ainda vigora o princípio da litigiosidade sem fim entre a grande maioria dos advogados públicos.
Talvez isso ocorra pelo fato de que as legislações hoje em vigor sejam bastante restritivas quanto à autonomia do advogado público, ou até mesmo por medo ou superstição dos profissionais.
Nesse diapasão, a Constituição da República é bastante lacônica com o tratamento da Advocacia de Estado, ao contrário do que fez com o Ministério Público (art. 127, § 1º) e com a Defensoria Pública (art. 134, § 4º), aos quais assegurou expressamente a independência funcional.
Em relação à advocacia em geral, a Constituição Federal assentou que o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei (art. 133), norma essa com ares de cláusula pétrea implícita, pois corolário dos direitos fundamentais ao contraditório e a ampla defesa nos processos judiciais e administrativos.
Prosseguindo, verbi gratia, a Lei Complementar nº 15 de 2017 do município paulista de Areias prevê que são atribuições do Procurador-Geral do Município autorizar a não interposição de recursos, considerando a natureza da matéria e o valor envolvido (art. 8º, inc. XIV)2. Portanto, aqui, a regra é a interposição de recursos.
De seu turno, a Lei Complementar nº 330 de 2022 do município paulista de Santa Bárbara do Oeste prescreve competir ao Procurador-Chefe fixar normas gerais e analisar situações específicas de dispensa de interposição de recursos judiciais em matérias consolidadas (art. 28, inc. VIII)3. Ou seja, caso não haja autorização da chefia do órgão, devem os procuradores recorrer, mesmo em matérias consolidadas, o que se afigura um desatino.
Tais normas, em certa medida, conflitam com o artigo 18 da Lei Federal nº 8.906/94, segundo o qual a relação de emprego, na qualidade de advogado, não retira a isenção técnica nem reduz a independência profissional inerentes à advocacia.
Destarte, o que se percebe no âmbito da Advocacia Pública é um certo açodamento quando ao tema da litigiosidade judicial, em nome da relação de hierarquia existente entre os servidores do Poder Executivo.
Aliás, por causa dessa altercação sem limites que o Superior Tribunal de Justiça, no tema repetitivo nº 556, definiu a seguinte tese, haja vista a eternização dos processos de execução fiscal:
O prazo de 1 (um) ano de suspensão do processo e do respectivo prazo prescricional previsto no art. 40, §§ 1º e 2º da Lei n. 6.830/80 - LEF tem início automaticamente na data da ciência da Fazenda Pública a respeito da não localização do devedor ou da inexistência de bens penhoráveis no endereço fornecido, havendo, sem prejuízo dessa contagem automática, o dever de o magistrado declarar ter ocorrido a suspensão da execução. (REsp nº 1340553-RS)
De seu turno, para o Supremo Tribunal Federal, a despeito do julgado se referir à Procuradoria-Geral do Estado, se aplica por simetria à Procuradoria dos Municípios, verbis:
A Procuradoria-Geral do Estado é o órgão constitucional e permanente ao qual se confiou o exercício da advocacia (representação judicial e consultoria jurídica) do Estado-membro (CF/88, art. 132). A parcialidade é inerente às suas funções, sendo, por isso, inadequado cogitar-se independência funcional, nos moldes da Magistratura, do Ministério Público ou da Defensoria Pública (CF/88, art. 95, II; art. 128, § 5º, I, b; e art. 134, § 1º). A garantia da inamovibilidade é instrumental à independência funcional, sendo, dessa forma, insuscetível de extensão a uma carreira cujas funções podem envolver relativa parcialidade e afinidade de ideias, dentro da instituição e em relação à Chefia do Poder Executivo, sem prejuízo da invalidação de atos de remoção arbitrários ou caprichosos. [ADI 1.246, rel. min. Roberto Barroso, j. 11-4-2019, P, DJE de 23-5-2019.]
Outrossim, conforme escreve o Procurador Estadual Guilherme Barros sobre a independência funcional e a isenção técnica4,
Em termos práticos, a ausência de independência funcional significa a necessidade de que a atuação do advogado público esteja alinhada ao planejamento e às diretrizes da chefia da Instituição. Nesse contexto, o STF entende possível a previsão de autorização prévia do Procurador-Geral do Estado para propositura de ação de improbidade administrativa.
Entretanto, o Código de Processo Civil de 2015, em seu artigo 85, § 11, estabelece que o tribunal, ao julgar recurso, majorará os honorários fixados anteriormente levando em conta o trabalho adicional realizado em grau recursal, visando obstar a interposição de recursos com diminuta chance de êxito.
Nessa senda, o próprio procurador estadual assinala que o CPC prevê expressamente a não incidência de honorários advocatícios em caso de cumprimento de sentença em que o ente público não oferece resistência. Além disso, ressalta que
Por exemplo, o servidor pretende um enquadramento funcional a que julga ter direito. Judicializada a questão, se a advocacia pública identifica que houve efetivamente falha da Administração Pública, é possível (e desejável) que se reconheça a procedência do pedido, com a expedição de orientação de cumprimento voluntário da decisão judicial. Ganham todos: o servidor público que vê seu pedido atendido; o Judiciário que promove uma prestação jurisdicional célere; e o Poder Público, que cumpre seu papel de implementador de direitos e economiza no custo da condenação5.
Nada obstante o judicioso entendimento, caso a chefia da Instituição entenda que deva haver o esgotamento dos recursos, ainda que por jurisprudência minoritária, fica o procurador público com sua atuação limitada, em prejuízo do interesse público primário e sujeito a majoração da sucumbência.
De outro vértice, para o Ministro da Suprema Corte Luís Roberto Barroso, em relação ao sentido e alcance da noção de interesse público no direito contemporâneo6:
Mesmo quando não esteja em jogo um direito fundamental, o interesse público pode estar em atender adequadamente a pretensão do particular. É o que ocorre, por exemplo, no pagamento de indenização pelos danos causados por viatura da polícia a outro veículo; ou, ainda, no conserto de um buraco de rua que traz desconforto para um único estabelecimento comercial. O interesse público se realiza quando o Estado cumpre satisfatoriamente o seu papel, mesmo que em relação a um único cidadão. À vista das ideias até aqui expostas, já é possível enunciar uma constatação. O interesse público secundário – i.e., o da pessoa jurídica de direito público, o do erário – jamais desfrutará de supremacia a priori e abstrata em face do interesse particular. Se ambos entrarem em rota de colisão, caberá ao intérprete proceder à ponderação adequada, à vista dos elementos normativos e fáticos relevantes para o caso concreto. Nesse ponto, adere-se à doutrina que sustenta a necessidade de se rediscutir e dessacralizar o chamado princípio da supremacia do interesse público. Mas há uma ponte na direção da posição tradicional. O interesse público primário, consubstanciado em valores fundamentais como justiça e segurança, há de desfrutar de supremacia em um sistema constitucional e democrático. Deverá ele pautar todas as relações jurídicas e sociais – dos particulares entre si, deles com as pessoas de direito público e destas entre si. O interesse público primário desfruta de supremacia porque não é passível de ponderação; ele é o parâmetro da ponderação. Em suma: o interesse público primário consiste na melhor realização possível, à vista da situação concreta a ser apreciada, da vontade constitucional, dos valores fundamentais que ao intérprete cabe preservar ou promover. (g. n.)
Ora, o magistrado, de forma lapidar, deixa claro que jamais o interesse público primário poderá ser relegado a segundo plano, ainda que por determinação do Procurador-Geral, segundo entendemos, pois consubstancia viga mestra do Estado Democrático de Direito (art. 1º, da CF).
Noutra quadra, para o Advogado da União Ronny Charles, discorrendo sobre as formas consensuais como instrumento de resolução de problemas da Administração Pública7,
A resolução de litígios pela Administração, mesmo no ambiente extrajudicial, é uma ação legítima e necessária na atual realidade. Embora seja questionada a falta de regulamentação legal sobre tais medidas (notadamente no ambiente extrajudicial), impõe-se refletir que exigir a judicialização de todas as demandas postas ao Poder Público é algo totalmente contrário ao desenvolvimento das relações jurídicas existentes entre a Administração Pública e os administrados (…) A complexidade e o volumoso número de demandas provenientes das relações jurídicas administrativas, quando depositadas exclusivamente sobre a tutela do Judiciário, apenas entulham os cartórios de varas, prejudicando sua atuação eficiente e desprezando operosos instrumentos de resolução de litígios, como o diálogo para a construção de consensos. (g. n.)
Finalmente, conforme já asseveramos em outra oportunidade, “as procuradorias jurídicas não são órgãos de governo, mas órgãos de Estado, como sói ser, por exemplo, as polícias civil e federal, não sendo sua criação ato discricionário do gestor, mas vinculado, haja vista a necessidade de fiscalização interna das políticas públicas adotadas pelo governo”.8
Portanto, as procuradorias públicas, a despeito da falta de regulamentação legal em muitas situações, devem sempre buscar a satisfação do interesse público primário, ainda que haja discordância da chefia do órgão, sob pena de deslegitimar seu papel como função essencial à justiça e órgão de Estado.
Nesse sentido é a PEC 82/2007 em trâmite na Câmara dos Deputados, a qual visa atribuir autonomia funcional e prerrogativas aos membros da Advocacia Pública.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS, Guilherme Freire de Melo. Poder Público em juízo. 12ª ed. - Salvador: Juspodivm, 2022.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 9ª Ed. - São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
TORMENA, Celso Bruno. A obrigatoriedade de instituição do órgão de advocacia pública nos municípios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6881, 4 mai. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87772. Acesso em: 15 nov. 2022.
TORRES, Ronny Charles Lopes de. Direito Administrativo. 12ª ed. - Salvador: Juspodivm, 2022.
1 Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Brilhantina Acesso em: 15/11/2022.
2 Disponível em: https://www.areias.sp.gov.br/leis-municipais/ Acesso em: 15/11/2022.
3 Disponível em: https://www.santabarbara.sp.gov.br/portal/leis_decretos/11038/ Acesso em: 15/11/2022.
4 Poder Público em juízo. 12ª ed. - Salvador: Juspodivm, 2022, pág. 34.
5 Op. cit. pág. 77.
6 Curso de direito constitucional contemporâneo. 9ª ed. - São Paulo: Saraiva Educação, 2020, pág. 88.
7 Direito Administrativo. 12ª ed. - Salvador: Juspodivm, 2022, pág. 48.
8 A obrigatoriedade de instituição do órgão de advocacia pública nos municípios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6881, 4 mai. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87772. Acesso em: 15 nov. 2022.