7. SOBRE O DISCURSO DE ÓDIO (HATE SPEECH)
O Conselho da Europa, em sua recomendação de nº 97/20, trouxe um conceito amplo para o discurso de ódio (hate speech)21. Já Daniel Sarmento ensina que o hate speech está associado a manifestações de ódio, desprezo ou intolerância contra determinados grupos, motivadas por preconceitos ligados à etnia, religião, gênero, deficiência física ou mental e orientação sexual, dentre outros fatores.22
Percebe-se que o discurso de ódio é um fenômeno já muito recorrente em nossa sociedade. Com o anonimato propiciado nas redes sociais, qualquer pessoa pode perpetrar ofensas e discursos discriminatórios sem medo de sofrer qualquer punição cível ou penal pelo Estado.
Ainda assim, quando punições acontecem e são divulgadas pelos grandes veículos de imprensa condenações pelos nossos tribunais, explicitamente negando a proteção do discurso de ódio em nosso ordenamento, pode-se verificar um enorme subjetivismo em suas fundamentações, de modo que se constata que em nossa jurisprudência não há qualquer critério para definir o que é e o que não é discurso de ódio, sendo majoritariamente utilizada a técnica de ponderação de princípios como solução para o problema.
Na imensa maioria das vezes as fundamentações são baseadas em uma suposta ponderação entre os princípios da liberdade de expressão versus dignidade humana e igualdade, princípios estes repletos de subjetividade e com um alcance indeterminado pelo julgador casuisticamente.
Em sua obra Liberdade de Expressão em Tempos de Cólera, essencial para qualquer estudante e pesquisador sobre o tema, o professor André Gustavo Corrêa de Andrade, analisando de forma meticulosa o tema da liberdade de expressão e o discurso de ódio, trouxe questões que podem servir como uma resposta constitucionalmente adequada ao problema da sua restrição e seus possíveis males na sociedade.
Inicialmente, após uma análise de diversos julgados em nossa jurisprudência, o sábio professor e desembargador ressalta a necessidade da implementação da integridade e coerência trazida por Dworkin. Posteriormente André Andrade cita o constitucionalista Lenio Streck, que, sobre os conceitos trazidos por Dworkin, ensina que a integridade impõe aos juízes que construam seus argumentos de forma integrada ao conjunto do Direito, e a coerência liga-se à consistência lógica que o julgamento de casos semelhantes deve guardar entre si.23
Posteriormente, o respeitável desembargador rechaça a discricionariedade judicial nas decisões envolvendo discurso de ódio em nossos tribunais. Critica a técnica da ponderação utilizada pelos tribunais superiores, mencionando a evidente falta de critérios ou argumentos objetivos que justifiquem a atribuição de maior peso a um princípio em relação ao outro, o que, ao final tornaria a ponderação um juízo discricionário.24
O professor, demonstrando ser um exímio defensor das liberdades individuais e do amplo debate, ensina que, diferentemente do que ocorre com a proporcionalidade, onde há a ideia de que se deve ponderar dois ou mais princípios, considerados contrapostos ou colidentes25 há a necessidade de harmonizar os princípios constitucionais, visto que valores podem ser colidir, princípios não, pois as escolhas já foram feitas pela Constituição.
André Gustavo traz outros pontos importantes, como por exemplo a necessidade de verificar a história constitucional brasileira, a diferença entre o fazer e o falar, a liberdade de expressão como alternativa à violência, a necessidade da liberdade de expressão ser um direito forte oponível contra o governo ou maiorias, assim como traz doutrina do discurso de ódio extremo, na qual alude que o direito à liberdade de expressão em discursos de ódio só pode ser restringido quando atingir ou vier a atingir efetivamente direitos de terceiros, relembrando os ensinamentos de John Stuart Mill.
A liberdade de expressão é um baluarte ao principio da dignidade da pessoa humana. Esta, por sua proteção especial e protagonismo em nossa Constituição, merece ser protegida veementemente, de modo que sua restrição somente pode ocorrer em casos excepcionais e quando não houver outra possibilidade de solução para a controvérsia. Um discurso é um gênero que pode ser desenvolvido de inúmeras formas, entretanto somente aquelas que causarem ou vierem a causar efetivamente dano podem ser restringidas.
CONCLUSÃO
A liberdade de expressão, que engloba a liberdade de pensamento e de manifestação, é um direito fundamental que, embora pelo princípio da Unicidade Constitucional não possua hierarquia acima dos demais, a prima facie possui proteção maior, assim como é o posicionamento explicitamente adotado pelo Supremo Tribunal Federal;
Como fora elencado, a possibilidade de intervenção estatal como meio de suprimir determinada informação, hodiernamente na sociedade pós-moderna, pode causar justamente o efeito contrário do pretendido. Inúmeros são os exemplos. Posto isso, com o objetivo de evitar maior divulgação do fato no caso concreto, aconselha-se que seja efetuado o requerimento de retirada do conteúdo da rede mundial de computadores e o ajuizamento de ações apenas quando estritamente necessário quando uma das partes for figura pública.
Já em casos de responsabilidade civil, os Estados Unidos da América, com fundamentação na primeira emenda e adotando um modelo jurisdicional no qual a liberdade de expressão possui evidente prevalência aos demais, adotou-se uma teoria objetiva, diferente da que possuímos no Brasil. Embora seja possível criticar a evidente liberdade exasperada que os indivíduos possuem nos EUA, onde são divulgadas inúmeras vezes doutrinas de ódio e desrespeito, inegável que a pessoa, grupo ou veículo de comunicação que for divulgar determinado dado ou expressar seu posicionamento possuirá requisitos objetivos (standards) como forma de prever a possibilidade de ser responsabilizado.
Em nosso país vivemos diante de uma teoria eminentemente subjetivista, posto que na analise da responsabilidade civil é feita uma ponderação de princípios ao estrito julgamento do juiz, de modo que há uma evidente insegurança jurídica, o que indiretamente pode causar uma censura a posteriori aos jornalistas e veículos de imprensa pela consequente possibilidade de condenações em valores exuberantes.
Desse modo, verifica-se que vivemos em uma realidade muito diferente dos EUA sobre o tema da liberdade de expressão, o que não é necessariamente ruim. Não possuímos requisitos objetivos solucionar tais questões, entretanto em nosso país reprimimos o discurso de ódio e incitação à violência com mais veemência do que o país norte-americano.
Os EUA possuem julgados que em nosso país seriam impensáveis. Exemplos são a possibilidade de marchas neonazistas26, queima de uma cruz como protesto em frente de uma casa de uma família de negros27 e manifestações religiosas com cunho evidentemente preconceituoso.28
Cumpre mencionar que as possibilidades de restrição da liberdade em nosso ordenamento jurídico não foram tratadas no presente artigo, posto que o tema é muito abrangente e necessitaria de uma ampla pesquisa e publicação de artigo específico para tal questão.
A liberdade de expressão é tema sensível e aparentemente sem uma solução ideal para a sua devida proteção, posto que a mera tentativa de cerceio pode causar o efeito diverso. A única certeza que possuímos é que, com o avanço tecnológico e científico, evidente que inúmeros outras questões aparecerão para serem refletidas.
REFERÊNCIAS
2 FONTELES, Samuel Sales. Direitos Fundamentais São Paulo: Jus Podivm. 2022, p. 26.
3 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 25 ed., p 563-564.
4 SARLET, Ingo. Curso de Direito Constitucional, 2 ed., p. 452.
5 BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Critérios de ponderação. Interpretação Constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa. In: <https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/45123/45026>. Acesso em 10/07/2022.
6 LENZA, PEDRO. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 1405.
7 Medida Cautelar na Suspensão de Liminar 1.248. Min. Dias Toffoli. Julgado em 08.09.2019. Supremo Tribunal Federal.
8 MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade (Coleção Clássicos para Todos). Saraiva: São Paulo, Ebook, p. 40.
9 VILLA, Marco Antônio. Um País Chamado Brasil: a história do descobrimento ao século XXI. São Paulo: Planeta, 2021. P. 200.
10 Daniel Sarmento. A Liberdade de expressão e o problema do “hate speech”, in: Livres e iguais: estudos de direito constitucional, p. 262.
11 Disponível em <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_107_esp.pdf>. Acesso em 10/07/2022. Traduzido por Marcelo Figueiredo na obra Liberdade de Expressão e Constitucionalismo. PIOVESAN, Flávia. DIAS, Roberto. Multinível: jurisprudência do STF, diálogos jurisdicionais e desafios contemporâneos. Ed. Jus Podivm, 2021, p. 138-139.
12 ANDRADE, André Gustavo de Correa de. Liberdade de Expressão em Tempos de Cólera. 1. ed. Rio de Janeiro: GZ, 2020, p. 30.
13 STJ, REsp 1.408.120/DF e 680.794/PR.
14 Superior Tribunal de Justiça. REsp 680.794/PR, rel. Luís Felipe Salomão. Quarta turma. Julgamento 10/06/2010.
15 BARCHA, Adriano de Salles. FAUSTINO, André. MALUF, Fernando. Uma análise Luhmaniana Sobre o Efeito Streisand na Censura à Arte. Cap. 6, livro Liberdade de Expressão e Constitucionalismo Multinível: jurisprudência do STF, diálogos jurisdicionais e desafios contemporâneos. Cord. Flávia Piovesan e Roberto Dias. São Paulo: ed. JusPodvum, 2022.
16 STF, Rcl. 38782. Rel. Ministro Gilmar Mendes. Julgamento em 03/11/2020.
17 REVISTA CORREIO. Especial do Porta dos Fundos na Netflix bate recorde e é confirmado para 2020. Disponível em: <https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/especial-do-porta-dos-fundos-na-netflix-bate-recorde-e-e-confirmado-para-2020/> Acesso em 13/07/2022.
18 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio Janeiro: Zahar, 2003.
19 GARRETT, Felipe. O que é algoritmo? Entenda como funciona em apps e sites da Internet. Disponível em: <https://www.techtudo.com.br/listas/2020/05/o-que-e-algoritmo-entenda-como-funciona-em-apps-e-sites-da-internet.ghtml>. Acessado em 15/07/2022.
20 BARCELLOS, Ana Paula. TERRA, Felipe Mendonça. Liberdade de Expressão e Internet: Uma Evolução em Três Movimentos. Cap. 3, livro Liberdade de Expressão e Constitucionalismo Multinível: jurisprudência do STF, diálogos jurisdicionais e desafios contemporâneos. Cord. Flávia Piovesan e Roberto Dias. São Paulo: ed. JusPodvum, 2022, p. 53.
21 Conselho da Europa Recommendation, No. 97/20: “For the purposes of the application of these principles, the term "hate speech" shall be understood as covering all forms of expression which spread, incite, promote or justify racial hatred, xenophobia, anti-Semitism or other forms of hatred based on intolerance, including: intolerance expressed by aggressive nationalism and ethnocentrism, discrimination and hostility against minorities, migrants and people of immigrant origin”., disponível em: <https://search.coe.int/cm/Pages/result_details.aspx?ObjectID=0900001680505d5b>, p. 2, acessado em 20/07/2022.
22 SARMENTO, Daniel. A Liberdade de Expressão e o Problema do “Hate Speech”, in: livres e iguais: estudos de direito constitucional, p. 208.
23 STRECK, Lenio. Dicionário de Hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do Direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte. Letramento, 2017, p. 34.
24ANDRADE, André Gustavo de Correa de. Liberdade de Expressão em Tempos de Cólera. 1. ed. Rio de Janeiro: GZ, 2020, p. 280.
25 Ibidem, p. 284.
26 NSPA v. Snokie (1977).
27 R.A.V.v. Saint Paul (1992).
28 Snyder V. Phelps (2011).
Abstract: It is known that the democratic regime in Brazil is recent, presenting various difficulties. For being a highly required element to have a democratic regime of law, freedom of expression has a prime importance in the post-modern society. With the technological advances and social midia expansion, this study is necessary as a way of understanding its range, analysing the main theories concerning this theme and, this way, creating barriers in order to avoid the arbitrary restriction by the State or others.
Keyword: freedom of expression, hate speech, Streisand effect.