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O pacto social e a pedagogia do preso-condenado

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5.  DA EXPERIÊNCIA E DA FORMAÇÃO DA VONTADE

Já diz um provérbio popular "O hábito faz o monge".  De fato, as experiências pelas quais as pessoas passam ao longo de suas vidas vão moldando sua forma de pensar, seu caráter, sua vontade, sua conduta, enfim, sua maneira de ser.  A nossa experiência cotidiana pode facilmente constatar estas conclusões, bem como os estudos da Sociologia, da Psicologia e da Psiquiatria principalmente.

Um destes estudos é o da fisiopsicologia da vontade, o qual nos fornece uma descrição do processo de formação de vontade na pessoa.

De acordo com HAMON ( apud, SODRÉ, p. 75), a vontade seria formada da seguinte forma: uma superfície sensitiva ou sensorial recebe uma impressão.  Esta é conduzida pelo nervo sensitivo para o centro reflexo medular(medula espinhal, medula alongada), corrente centrípeta;  deste centro nervoso parte uma corrente centrípeta seguindo o nervo motor.  A reação motora é executada por órgãos do movimento.  O movimento assim concluído é inconsciente.   Em lugar de se deter no centro, a corrente centrípeta pode continuar seguindo o nervo sensitivo e atingir um centro cerebral consciente (cérebro). Deste centro, através do nervo condutor de motricidade, parte uma corrente centrífuga que abala o centro medular.  Este por sua vez aciona o músculo pelo nervo motor;  eis o movimento voluntário, consciente.

Este estudo demonstra que cada elemento do meio, objeto exterior, cada objeto percebido por nossos sentidos causa uma determinada reação, resposta do nosso organismos, de nossa mente, ou seja, o Homem, portanto, age de acordo com suas experiências. 


6.  DA EXPERIÊNCIA E DA CONDUTA DO DELINQUENTE PERANTE O PROCESSO

A suspeita, nos termos da Lei, de prática de um delito é suficiente para submeter o r.  Suspeito a um processo penal, o qual visa a apurar as responsabilidades penais pela realização de um ou mais delitos.

A pessoa que responde a um processo penal - o qual visa a apurar as responsabilidades- embora goze de presunção de inocência, tem uma série de seus direitos restringidos, conforme o delito praticado, a gravidade, etc.

O delinqüente é aquele que praticou um ato anti-social reputado como delito pelo ordenamento jurídico da sociedade que o está processando.  O seu ato é nocivo a esta sociedade, a expressão de sua liberdade é nociva para a sociedade, por isso a sociedade tenta controlar sua personalidade, através da restrição da liberdade, da personalidade, desde o processo penal de formação de culpa, através da restrição da liberdade (não é sem razão que KANT considerava a liberdade como o primeiro e único direito natural) e se acentuando na fase de Execução Penal, após a condenação.   A restrição da liberdade, da personalidade do delinqüente consiste na restrição do exercício dos direitos, inclusive de direitos fundamentais, v. g. , a pessoa processada por prática de um delito tem o seu direito de ir e vir - direito fundamental - restringido direta ou indiretamente.

Na sociedade brasileira, acentuam-se, gradativamente, a edição de leis que já na fase de apuração do delito, na fase policial e no processo criminal, durante a instrução probatória, restringem, cada vez mais, um número maior de direitos individuais fundamentais do processado. São exemplos destas leis, a de Entorpecentes, a dos Crimes Hediondos a recente Lei das Organizações Criminosas. O fundamento destas leis é a defesa social. No passo em que caminhamos, chegaremos a aplicar pena, condenar sem nenhum direito de defesa, tal como nas priscas eras do Direito penal, onde imperava a Lei de Talião, pois que, cada vez mais antecipam-se efeitos peculiares à sentença condenatória, cada vez são maiores as hipóteses de restrição da liberdade cautelarmente, sem o contraditório constitucional.

Entretanto, ainda não chegamos ao ponto de igualar as conseqüências de um processo penal antes do trânsito em julgado, ao processo penal de Execução, após o trânsito em julgado;  ao menos não completamente.

Assim, a pessoa que responde a um processo penal, ainda goza de uma gama significativa de direitos de defesa, que podem ser utilizados e opostos eficazmente contra o Estado. Mesmo nos casos das Leis mais restritivas, como as supra citadas, ainda há a possibilidade de uma razoável proteção dos direitos fundamentas do acusado. É extremanente importante que o processado tenha esses direitos efetivamente protegidos, porque estes representam a manutenção de um nível mínimo da própria personalidade do processado.

Os direitos individuais fundamentais, como sabemos, visam a resguardar um nível mínimo de existência da pessoa, de sua liberdade. Depois da garantia da vida humana, a liberdade é o bem fundamental. O processo também protege direi tos à intimidade, à honra, quando tiverem caráter fundamental.

O exercício ou, mesmo apenas, a mera possibilidade de utilizar estes direitos eficazmente durante o processo, é salutar para o processado, pois que através desta experiência, de utilizar estes direitos eficazmente durante o processo, ele interioriza e sedimenta os valores humanos fundamentais.

Como já observado, é através da experiência que nós desenvolvemos, criamos e modificamos nossos valores, e de acordo com estes valores, é que nos conduziremos na sociedade. O processo penal é também uma fonte de experiências e, como tal, coloca em jogo uma aprendizagem e sedimentação de valores. Assim, à medida que o processo resguarda determinados valores vitais do caráter humano do processado,este absorverá a experiência destes valores, e desenvolvera uma conduta de acordo.

Evidentemente que não pretendemos ser ingênuos e a afirmar que somente o cumprimento da lei no processo levará o preso à ressocialização.  Mas certamente este é um dos fatores importantes neste processo. 


7.  DO DELINQUENTE CONDENADO NA PRISÃO

Depois de condenado, o delinqüente, se não for concedido nenhum benefício legal que lhe permita cumprir a pena, em liberdade, será mantido em uma unidade prisional.  É dos condenados recolhidos a unidades prisionais que trata este breve escorço.

A prisão teria por objetivo a ressocialização do condenado.   Laboratorialmente seriam criadas condições experimentais de práticas sociais semelhantes àquelas existentes na sociedade livre, através da tutela e supervisão do Estado.

O condenado é aquele que praticou um ato anti-social, portanto um indivíduo que usou sua liberdade nocivamente contra a sociedade. A sociedade, assim, através da prisão, visa restringir a liberdade do condenado, para ter um controle sobre sua personalidade(do condenado), sobre sua vontade agressiva e nociva. Se durante o processo penal, durante a instrução probatória, havia dúvida acerca da sua nocividade e, consequentemente, a pessoa gozava de uma gama maior de direitos;  após a declaração de nocividade social, o condenado passa a ter, de acordo com a Lei de Execuções Penais, um número mais restrito de direitos a exercitar.

Os direitos do condenado preso estão prescritos na Lei de Execuções Penais. Esta Lei consagra direitos e deveres do condenado preso e da sociedade.

Após a sentença condenatória transitada em julgado, a expectativa de liberdade do preso desloca-se daqueles direitos de maior alcance, que gozam as pessoas livres, para aqueles dispostos na Lei de Execuções Penais.  No dia-a-dia da unidade prisional será na lei de Execuções Penais seu contrato e experiência normativa imediata (será mesmo, e os regulamentos?).  É através desta Lei que o condenado preso poderá, em tese, recuperar o exercício pleno de sua liberdade, de sua personalidade, enfim de sua existência.   Portanto, todas as esperanças, sentimentos, expectativas do condenado preso, convergem para esta Lei.

Como já ressaltado, é através da experiência que são internalizados os valores.  O processo, como já observado, é uma fonte expressiva de valores, além de constituir uma sucessão de atos preordenados e método através do qual o Estado aplica a Lei.

A vida na unidade prisional é outra fonte de experiências significativas, através da qual o condenado preso, desenvolverá seus valores enquanto estiver preso, e moldará sua conduta.

Se o fim da prisão, modernamente, é a ressocialização do preso-condenado, se a ressocialização implica uma socialização dos valores do condena do, se a experiência é que possibilita a modificação e o desenvolvimento dos valores, seria de se esperar que as prisões fossem ambientes, laboratórios, que proporcionassem ao condenado uma gama de experiências que lhe incutissem, ou que lhe permitissem desenvolver valores benéficos à sociedade.

Entretanto, como nós sabemos, as prisões no mundo e, mormente no Brasil, não proporcionam ao condenado preso a sua recuperação.  São ambientes tensos, em péssimas condições humanas.  A superlotação é comum.  Os direitos previstos na Lei de Execuções Penais não são aplicados na prática. Há violência contra os condenados, praticadas por aqueles que têm a incumbência de custodiá-los e mesmo por outros presos.  Enfim, nós sabemos que o ambiente de uma unidade prisional no Brasil, em regra, é muito mais propício para o desenvolvimento de valores nocivos à sociedade, do que ao desenvolvimento de valores e condutas benéficas.

É devido a esta pressão social que, por exemplo, poucas pessoas físicas e ou jurídicas se interessam em oferecer empregos os presos.  A lei e Execuções Penais prescreve que o preso tem a obrigação de trabalhar, todavia, sabemos, poucas são as unidades prisionais que conferem trabalho ao preso, por diversas razões, já conhecidas, falta de trabalho, o Estado não possui condições financeiro-econômicas de supervisionar o labor dos presos, de contratar professores e demais profissionais do quadro técnico. Mesmo as unidades prisionais que oferecem oportunidade de trabalho ao preso, proporcionam essa oportunidade a um pequeno número presos, devido à escassez de vagas para o trabalho prisional.  As atividades laboratícias muitas das vezes também não são adequadas ao mercado de trabalho, se tem conhecimento de unidades prisionais nas quais os presos aprendem a fazer peças artesanais de pouca ou nenhuma aceitação no mercado.


8.  DA RESSOCIALIZAÇÃO DO PRESO

A Lei de Execuções Penais prescreve os princípios e regras que possibilitariam a ressocialização do preso.  O processo de ressocialização envolve uma série de elementos, sendo complexo.

Ressocializar significa tornar o Ser Humano capaz de viver em sociedade novamente, consoante a maioria dos Homens fazem.  A palavra ressocializar poderia a princípio referir-se apenas à conduta do preso, aos elementos externos que nós podemos resumir da seguinte forma : ressocializar é modificar a conduta do preso, para que seja harmônica com a conduta socialmente aceita e não nociva à sociedade.  Entretanto, como sabemos, antes da conduta existem os valores;  nós agimos, atuamos em função desses valores.  A conduta é um elemento externo, dessa forma é essencial influir nos valores diretamente, tornando-os o máximo possível sociáveis.

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Assim é que ressocializar não significa apenas dar um emprego ao preso na prisão ou quando ele sai desta, ou não ter preconceitos contra os ex-presidiários.  Estas são atitudes positivas é evidente, todavia, o processo da ressocialização é muito mais complexo e inicia por uma reversão dos valores nocivos do condenado, para valores benéficos para a sociedade.  Como conseguir essa transformação é que é o pulo do gato.

Dentro do processo de ressocialização do preso condenado é fundamental uma práxis que resgate, enquanto ainda o mesmo está encarcerado os seus valores de pessoa, de ser Humano, os valores em comum com a sociedade livre. Isto só pode ser conseguido através de um ambiente de experiências favorável à assimilação destes valores. Este ambiente de experiências favorável deve ser o mais amplo possível e em crucial implicação o efetivo cumprimento da Lei de Execuções Penais, a qual tem o status de uma espécie de Constituição Federal do preso.


9.  DA NORMA COMO REDUTORA DA
COMPLEXIDADE DA CONTINGÊNCIA

O Homem capta, através dos seus sentidos, as coisas do mundo, reelaborando-as e classificando-as de acordo com sua capacidade.  O número de objetos existentes no mundo que estimulam os sentidos do Homem é muito maior que a sua capacidade de percepção.  Assim, a capacidade de percepção do homem é limitada, enquanto o número e a variedade dos objetos a serem percebidos é imensurável.   Além do que, como observa LUHMANN (p. 45, 1983) : "Cada experiência concreta apresenta um conteúdo evidente que remete a outras possibilidades. " Estas possibilidades são a um só tempo complexas e contingenciais.  Complexas significa que existem mais possibilidades do que se pode realizar e contingenciais que as possibilidades esperadas podem não ser realmente realizadas, ou seja, podem ser enganosas, erradas ou mesmo inexistentes, etc.

O grau de complexidade e de contingência é particularmente agravado na modernidade com sua crise de valores, de parâmetros, de rompimento de tradição, tudo proveniente, em grande parte, do rompimento com os parâmetros anteriores ao renascimento, à modernidade.   Na modernidade "tudo que é sólido desmancha no ar. "(BERMAN passim). BERMAN nos traça um preciso quadro da crise da modernidade Rousseau (apud BERMAN, p. 17), na Nova Heloísa, o jovem Saint-preux vindo do campo para a cidade relata à sua amada, Julie, as contradições e intensidade do "tourbillon social", de mil e uma contingências e complexidades, in verbis:

". . . eu começo, a sentir a embriaguez a que essa vida agItada e tumultuosa me condena. Com tal quantidade de objetos desfilando diante de meus olhos, eu vou ficando aturdido. de todas as coisas que me atraem, nenhuma toca meu coração,embora todas juntas perturbem meus sentimentos, de modo a fazer que eu esqueça o que sou e qual meu lugar"
(p. 17 e p. 18)

A norma, dentro deste contexto, tem um crucial papel de reduzir o nível de complexidade e de contingência do "tourbillon", proporcionando ao Homem um certo alívio e economia de tempo. A norma tenta sintetizar as expectativas dos Homens em relação a determinados valores ou situações, estabelecendo um valor, um modelo a ser tido como referencial, é o dever ser contido em cada norma. Sem a norma, as expectativas das pessoas acerca da conduta do outro -expectativas cognitivas (LUHMANN, l983, passim) - é dispersada em meio às expectativas das demais pessoas, o que importa um maior nível de complexidade e de contingências, acarretando maior tensão social, instabilidade, dor e ameaça à existência e desenvolvimento da sociedade.

O condenado preso em regime fechado deposita suas expectativas na LEP, assim, ele tem a expectativa de que a norma, a LEP, deve ser cumprida, senão aquele que não a cumprir deverá receber uma punição prevista na Lei.  Malgrado, como salientado, o preso-condenado já possua um baixo grau de confiabilidade nas relações normativas - principalmente naquelas estabelecidas pelo Estado - a expectativa a confiança na norma, no caso, do condenado preso é apreendida ou reforça da ao longo do processo, e culmina com sua condenação, quando ele aprende que aquele que como ele, não cumpriu a norma deve ser castigado, pois que a norma é para ser cumprida.  Entre tanto, quando a LEP não é cumprida pelo Estado ou pela sociedade civil, esta confiabilidade e expectativa desenvolvida pelo preso ao longo do processo é neutralizada facilmente, a função redutora de complexidade e de contingências da norma, é aniquilada, voltando ao estado anterior de acentuada complexidade e contingência geradores de alta tensão e que o conduziu a praticar um delito.

Com o passar do tempo, o preso pode reelaborar sua expectativa em relação à norma, à LEP, sedimentando a expectativa de que quando ela beneficia o preso, dificilmente será cumprida ou dificilmente será integralmente cumprida, dependendo sempre de um excessivo discricionarismo do Estado e da sociedade civil, retornando novamente a uma maior complexidade e contingência, pois se a aplicação da norma, do seu conteúdo, irá ser, na prática, determinada por outra pessoa, de acordo com a conveniência e oportunidade e certamente com as indiossincrasias e interesses particulares do intérprete (e este estando repleto de complexidade e contingências, também estará sujeito a tomar um série de alternativas e decisões inesperadas para o preso, já que este não pode prever os pensamentos e já que o referencial da norma, em face do excessivo discricionarismos, é praticamente nulo. )Assim é que novamente o nível de tensão, de instabilidade aumenta e o preso assimila esta experiência, moldando seu caráter, maneira de ser, de ver o mundo, de pensar e de agir.

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Sobre o autor
Lúcio Ronaldo Pereira Ribeiro

advogado, professor de Direito, pós-graduando pela UGF

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Lúcio Ronaldo Pereira. O pacto social e a pedagogia do preso-condenado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 28, 1 fev. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1015. Acesso em: 19 abr. 2024.

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