Capa da publicação Responsabilidade em caso de assalto em transporte público
Capa: Marcos Bezerra / FolhaPress
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A responsabilidade civil do transportador em face a assalto em transporte público na jurisprudência e na doutrina

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As transportadoras de transporte coletivo estão empregando os melhores esforços para oferecer segurança aos passageiros em face de crimes corriqueiros?

No presente artigo, confrontaremos dois Acórdãos do STJ, proferidos no REsp 35.436/SP e no REsp 232.649/SP, para tratarmos fundamentadamente das teses neles desenvolvidas, apontando qual entendimento nos parece mais apropriado, e explicaremos o motivo de nosso posicionamento. Ambos dizem respeito à responsabilidade civil do transportador em face a assalto no interior de transporte coletivo com lesão irreversível em passageiro. Mas cada julgado possui as especificidades sobre as quais trataremos a seguir.

Para nossa fundamentação, recorreremos também a Tepedino et al (2021), que reafirmam o quanto a responsabilidade civil do transportador reveste-se de grande atualidade e interesse prático (TEPEDINO et al, 2021: 347) uma vez que o contrato de transporte constitui-se em negócio jurídico de inquestionável relevância social, celebrado cotidianamente pela grande maioria da população, que se socorre dos diversos modais de transporte público e privado para vencer as distâncias do dia a dia. (Id. Ibid.)

1. O Acórdão proferido pelo STJ no REsp 35.436/SP

O REsp 35.436/SP teve como relator o Ministro Eduardo Ribeiro. O recorrente era a Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU) e o recorrido era um passageiro ferido em assalto. O julgamento ocorreu em 21 de setembro de 1993 e dele participaram os ministros da Terceira Turma do STJ, Waldemar Zveiter, Cláudio Santos, Costa Leite e Nilson Naves, tendo acordado conhecer do recurso especial e lhe dar provimento.

O entendimento deste julgado do STJ foi de que, conforme a ementa do acórdão, o fato de terceiro que não exonera o transportador de responsabilidade é aquele que guarda conexidade com o transporte, inserindo-se nos riscos próprios do deslocamento. Para os ministros, exoneraria o transportador de responsabilidade um fato interveniente inteiramente estranho, como consideraram a ocorrência de um assalto.

O passageiro que havia ajuizado uma ação contra a CBTU havia requerido uma indenização porque, viajando em um de seus trens, ao sofrer um assalto à mão armada, foi atingido por um projétil que lhe inutilizou o braço, o tornando incapaz para atividades de trabalho. A ação foi julgada parcialmente procedente e as partes apelaram, mas ao recurso do passageiro, que ajuizara a ação, foi negado provimento. A CBTU, ré, tendo tido seu recurso provido apenas parcialmente, apresentou o Recurso Especial (REsp) ao STJ, sustentando que o assalto sofrido pelo passageiro não se incluía entre os riscos assumidos, não tendo a CBTU responsabilidade pelo evento danoso, conforme outros julgados havidos até então.

O Ministro Eduardo Ribeiro, relator, em seu voto, relembrou seu entendimento em julgado análogo anterior, no REsp 13.351, em que um passageiro atingido por uma pedra atirada contra o veículo buscava responsabilizar a estrada-de-ferro, já tendo sido entendimento do Min. Ribeiro na ocasião que o fato de terceiro que não exoneraria de responsabilidade o transportador seria aquele que com o transporte guardaria conexidade, inserindo-se nos riscos próprios do deslocamento. Para o ministro, ainda no REsp 13.351, a hipótese de assalto deveria ser equiparada ao fortuito, excluindo-se a responsabilidade, embora ainda tenha afirmado na ocasião que o lançamento de pedras contra comboios ocorria com frequência, criando riscos para os passageiros, mas não devendo a empresa ser responsabilizada. Já nesse julgado, Ribeiro se referia a assaltos a ônibus, dizendo que tais assaltos também tinham se tornando relativamente comuns, mas que, nem por isso, lhe parecia exigível das transportadoras manterem guarda permanentemente nos veículos visando evitar tais assaltos, pois caberia à autoridade pública a prevenção de atos dessa natureza, não existindo, segundo ele, fundamento jurídico para transferir esta responsabilidade a terceiro, no caso, à empresa transportadora.

O voto de Ribeiro no REsp 35.436/SP, acompanhado por unanimidade pela Terceira Turma do STJ na época, em 1993, citou outros julgados, em pesquisa da jurisprudência sobre a matéria, feita pelo ministro, a respeito de danos sofridos por passageiros em decorrência de assalto. Dos três julgados do STF encontrados, em um deles (o RE 80.412), havia sido reconhecida a responsabilidade da transportadora, mas devido ao passageiro ter sido atirado para fora do veículo, levando a se supor que o veículo se deslocava com portas abertas, circunstância alheia ao assalto. Em outro julgado (o RE 88.407), que envolvia uma morte em assalto, em plenário se julgou não ser o transportador civilmente responsável. E, por fim, no último julgado (o RE 109.223) citado em seu voto no REsp 35.436/SP pelo Ministro Ribeiro, também envolvendo morte de passageiro em assalto, o STF entendeu que o ato de terceiro se equiparava ao fortuito, sem nexo de causalidade entre o acidente e o transporte.

Acompanhando o voto do relator com base nessa fundamentação jurisprudencial que não buscou analisar eventuais argumentos dos votos vencidos nos julgados referidos, a Terceira Turma decidiu não haver responsabilidade do transportador em tais circunstâncias.

2. O Acórdão proferido pelo STJ no REsp 232.649/SP

O REsp 232.649/SP teve como relator o Ministro Barros Monteiro, que teve voto vencido. Por isso, o relator do Acórdão foi o Ministro Cesar Asfor Rocha, primeiro voto divergente no julgamento. O recorrente era a Viação Paratodos Ltda. O recorrido era uma passageira que ajuizou ação de indenização contra esta viação alegando que, grávida de cinco meses, em um ônibus desta empresa, foi atingida por um tiro em assalto ao veículo, se tornando paraplégica dos membros inferiores, sem condições de exercer qualquer atividade remunerada e necessitando de ajuda de terceiros até para os atos mais corriqueiros da vida cotidiana. O que ela pleiteava era a condenação da empresa a lhe pagar o seguro DPVAT, os gastos com tratamentos médicos e os lucros cessantes, em indenização correspondente à sua vida laboral até os 65 anos de idade, além de danos morais. O julgamento ocorreu em 15 de agosto de 2002.

Na ação que originou este REsp 232.649/SP no STJ, o juiz de Direito havia condenado a empresa a pagar uma quantia à passageira mais 400 salários-mínimos vigentes pelo dano moral e uma pensão mensal, incluindo-se o 13º salário, no montante de um salário-mínimo vigente, além das custas, despesas processuais e honorários advocatícios. Com a empresa tendo recorrido, a Sétima Câmara do 1º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, com unanimidade de votos, negou provimento ao apelo da ré, por considerar caracterizada a responsabilidade da ré, que possuiria o dever legal e contratual, como transportador, de conduzir o passageiro são e salvo a seu destino, com assalto à mão armada, no Brasil, tendo deixado de configurar caso fortuito ou força maior. Além disso, o tribunal considerou razoável o quantum do dano moral, pois a gravidade e a irreversibilidade da lesão recomendariam o valor estabelecido pelo juiz. A Viação Paratodos ajuizou a REsp 232.649/SP justamente devido à divergência de tais decisões com julgados do STJ, como o que vimos acima (no REsp 35.436/SP). Segundo a empresa, a segurança dos passageiros contra assaltos seria de responsabilidade exclusiva do Estado, não podendo ser repassada à iniciativa privada.

No seu voto, o Min. Barros Monteiro recordou que predominava no STJ a orientação de que incidiria a excludente da força maior em relação a fato estranho ao transporte em si, sendo equiparado a caso fortuito ou força maior qualquer fato inevitável estranho ao transporte, eximindo de responsabilidade o transportador. E foi justamente nos julgados de que já tratamos acima, da Terceira Turma, os REsps nºs 13.351-RJ e 35.436-6/SP, ambos de relatoria do Min. Eduardo Ribeiro, que Barros Monteiro se fundamentou, além de outros julgados. Para Barros Monteiro, o disparo de arma de fogo, que atingiu a passageira, não apresentaria vínculo algum com o fato do transporte em si, equiparando-se, o fato de terceiro, à força maior, causa excludente de responsabilidade do transportador. Segundo este ministro, a simples circunstância de serem comuns hoje, no Brasil, delitos como aquele trazido nos autos, não seria o bastante para conferir-se responsabilidade à transportadora, que, segundo seu voto, não deu causa alguma ao evento danoso, sabido que a segurança pública dos cidadãos está afeta à providência do Estado."

Contudo, o Min. Cesar Asfor Rocha divergiu deste voto de Barros Monteiro. Considerando que o assalto no interior dos ônibus que fazem transporte coletivo tornou-se fato comum e corriqueiro, sobretudo em determinadas cidades e zonas tidas como mais perigosas, já não se poderia tal fato ser qualificado como fato extraordinário e imprevisível na execução do contrato de transporte. Para Rocha, com um certo nível de previsibilidade em determinadas circunstâncias, as empresas que cuidam desse tipo de transporte deveriam melhor se precatar, a fim de oferecer maior garantia e incolumidade aos passageiros e, na hipótese, não se teria notícia de nenhuma precaução tomada pela recorrente, negando o provimento em seu voto à Viação Paratodos.

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O voto do Min. Rocha foi acompanhado pelo voto do Min. Ruy Rosado de Aguiar, que ainda destacou que o dinheiro no caixa do cobrador é um atrativo, muitas vezes, para a prática do delito, motivo pelo qual em outros países sequer se usava mais moedas para pagamento de transporte coletivo. Segundo o Min. Rosado de Aguiar, se a empresa não demonstrou que tomou as providências necessárias para evitar ou pelo menos diminuir o risco, que existia, então ela responderia, sim.  O Min. Aldir Passarinho Jr., reforçando que a matéria seria controvertida, também votou de acordo com a divergência, dizendo que muitas pessoas assaltadas no transporte coletivo o seriam justamente em função de estarem ali, sendo um fato previsível que deveria ser suportado pelo transportador, pois seria inerente à sua atividade comercial. Por fim, o Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira acompanhou o relator, vencido. A Quarta Turma do STJ, assim, por maioria, conheceu o recurso da Viação Paratodos, mas negou-lhe provimento, julgando o REsp a favor da passageira, com dois votos vencidos e três votos formando maioria, o que evidencia o quanto o caso é controverso.

Com isso, o REsp 232.649/SP admitiu a responsabilidade civil de transportadora no caso de assalto em ônibus com lesão irreversível a passageiro, sob o fundamento de que assaltos já se tornaram fato comum e corriqueiro em determinadas cidades e zonas, não podendo ser genericamente qualificados como fato extraordinário e imprevisível na execução do contrato de transporte, ensejando maior precaução por parte das empresas responsáveis por este tipo de serviço, a fim de dar maior garantia e incolumidade aos passageiros.

Conclusão: um posicionamento sobre as teses divergentes

Confrontados os dois Acórdãos do STJ proferidos no REsp 35.436/SP e no REsp 232.649/SP, como podemos nos posicionar sobre as teses neles desenvolvidas, fundamentadamente, em matéria tão controversa? O entendimento que nos parece mais apropriado, ainda que minoritário na jurisprudência referida e até na doutrina consultada (TEPEDINO et al, 2021) é o dos ministros Cesar Asfor Rocha, Ruy Rosado de Aguiar e Aldir Passarinho Jr. em seus votos no REsp 232.649/SP. Compreendemos a tese predominante, sobre o assalto ser considerado um fato extraordinário, atribuível a terceiro e equiparável a fortuito e força maior (conforme arts. 734 e 735, Código Civil de 2002). Mas, fazendo a análise desses acórdãos do STJ na cidade em que escrevemos estas linhas, o município do Rio de Janeiro, onde cotidianamente há assaltos a transporte coletivo, não nos parece que as empresas de transporte coletivo de pessoas possam se eximir de responsabilidade sobre a vida e a incolumidade dos passageiros se não estiverem tomando precauções que possam coibir ações delituosas em seus veículos, ainda que estas ocorram. Até porque, como aponta Caio Mário da Silva Pereira, a alegação de que assalto exonera de responsabilidade deve ser apreciada à vista das circunstâncias, verificando se seria inevitável ou se houve desídia, negligência ou imprudência do transportador, favorecendo a ação do assaltante. (PEREIRA, 2018: 267)

O que é de se esperar, em cidades violentas como as grandes capitais de nosso país, é que as empresas de transporte coletivo de pessoas não deixem de buscar se aprimorar no que diz respeito à segurança de seus passageiros, inclusive em relação a fatos de terceiros, como assaltos, que sejam previsíveis, ainda menos se deixam de realizar tal aprimoramento com base em julgados anteriores do STJ ou em uma perspectiva que entende caber apenas à autoridade pública a segurança sobre os passageiros neste sentido.

Cremos que assim fundamentamos nosso posicionamento sobre as teses desenvolvidas nesses julgados, apontando qual entendimento nos parece mais apropriado, e explicando o motivo de nosso posicionamento. Mas também cabe um último comentário com base na doutrina consultada, que também fundamenta nosso posicionamento. Segundo Tepedino et al (2021), no contrato de transporte de pessoas a transportadora se obriga a transportar, em troca de contraprestação, pessoas até o lugar de destino, com uma cláusula implícita de incolumidade, a exigir do transportador que conduza as pessoas sãs e salvas a seu destino, em um transporte seguro e cauteloso, com a violação do dever de segurança sendo a principal causa de imputação do dever de indenizar ao transportador. (TEPEDINO at el, 2021: 348).

Nosso questionamento é: será que as transportadoras de transporte coletivo de pessoas em cidades onde os assaltos são, infelizmente, corriqueiros – não cabendo aqui discutir as causas sociais deste aumento da violência urbana – estão empregando os melhores esforços no sentido de assegurar aos seus passageiros que buscam coibir delitos em seus veículos, como sistemas de segurança privados que envolvam monitoramento dos veículos por câmeras e sistemas de alerta para acionarem as autoridades públicas em caso de assaltos?

Se as transportadoras nessas cidades não tomam nenhuma medida nesse sentido, ainda que a doutrina majoritária e mesmo a consultada (TEPEDINO et al, 2021) considere não haver nexo de causalidade, neste caso, entre a conduta do transportador e o dano causado ao passageiro, equiparado o fato a fortuito e força maior, nosso entendimento é o mesmo do eminente doutrinador Carlos Roberto Gonçalves, referido no REsp 232.649/SP, que considera que assalto à mão armada, no Brasil, deixou de configurar caso fortuito ou força maior que exima a responsabilidade da transportadora, se esta não toma precauções que visem a segurança dos passageiros nas cidades acometidas por elevados índices de violência urbana.


Referências bibliográficas

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2018.

TEPEDINO, Gustavo et al. Fundamentos do direito civil: responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 2021.

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Sobre o autor
Carlos Eduardo Oliva de Carvalho Rêgo

Doutor e mestre em Ciência Política (UFF), especialista em ensino de Sociologia (CPII) e em Direito Público Constitucional, Administrativo e Tributário (FF/PR), bacharel em Direito (UERJ), bacharel e licenciado em Ciências Sociais (UFRJ), é professor de Sociologia da carreira EBTT do Ministério da Educação, pesquisador e líder do LAEDH - Laboratório de Educação em Direitos Humanos do Colégio Pedro II.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RÊGO, Carlos Eduardo Oliva Carvalho. A responsabilidade civil do transportador em face a assalto em transporte público na jurisprudência e na doutrina. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7101, 10 dez. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/101524. Acesso em: 27 abr. 2024.

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