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Reprodução medicamente assistida heteróloga:

distinção entre filiação e origem genética

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21/07/2007 às 00:00
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4 O CONHECIMENTO DA ASCENDÊNCIA GENÉTICA

O presente trabalho buscou até agora apresentar os inúmeros posicionamentos doutrinários acerca da utilização das técnicas de reprodução assistida relativos às questões levantadas sobre a filiação e a possível identificação do doador de gametas. Muitos dos posicionamentos aqui mencionados contribuíram para a elaboração de projetos de lei apresentados por deputados e senadores com o objetivo de preencher as lacunas existentes no Código Civil em vigor a respeito da reprodução heteróloga.

Importante se faz lembrar que muitas das questões jurídicas originadas pela aplicação das novas técnicas de reprodução não foram abordadas no Código Civil de 2002, Lei n°. 10.406/02, porque, à época da apresentação do Projeto de Lei que culminou com a promulgação do código, os legisladores não previram o avanço científico tão acelerado no campo da reprodução humana. O projeto, datado de 1975, tornou-se lacunoso não só por causa do desenvolvimento da medicina, como também pelo advento da Constituição Federal de 1988. De acordo com Guilherme Calmon (2003, p. 13):

O texto do projeto do Código Civil [...] desde a apresentação na Câmara até a sua apresentação no Senado, decorreu período de tempo superior a vinte anos. Durante tal lapso temporal sobrevieram várias modificações de relevo no âmbito da regulamentação legislativa de vários institutos de direito civil, mas especialmente é imperioso destacar a promulgação da Constituição Federal em 05.10.1988 que, como se sabe, propiciou uma autêntica revolução no direito de família e em vários outros segmentos do direito civil. O texto da Constituição de 1988 gerou a inocuidade de inúmeras regras constantes do projeto do novo Código, inclusive por vício de inconstitucionalidade material. (grifo original)

Além dos problemas relativos à demora na tramitação do projeto do Código Civil, também a omissão em legislar sobre aspectos da reprodução humana se deve a impedimentos de ordem formal. Segundo o relatório geral do Deputado Ricardo Fiúza (2000, apud GAMA, 2003, p.15):

Diz-se, por exemplo, que o projeto não versa sobre os direitos do nascituro fertilizado in vitro. O Prof. Miguel Reale, quando compareceu à primeira das muitas audiências públicas realizadas pela nossa Comissão Especial, respondeu a algumas dessas questões, afirmando que "novidades, como o filho de proveta, só podem ser objeto de leis especiais. Mesmo porque transcendem o campo do direito civil".

Em vista do limite formal à inclusão de normas para regulamentação da utilização de reprodução humana medicamente assistida, urgente é a publicação de uma lei que regule estes procedimentos, que já são uma realidade, com o fito de garantir a proteção dos interesses dos envolvidos, bem como os direitos fundamentais garantidos na Carta Magna de 1988. Adiante, far-se-á um estudo sobre os principais projetos apresentados na Câmara com principal foco no objeto de estudo deste trabalho, qual seja: a possibilidade da pessoa conhecer a identidade civil dos doadores de gametas que lhe possibilitou o nascimento e a constituição da paternidade e maternidade do ser gerado através da reprodução assistida heteróloga.

4.1 Projetos de lei sobre reprodução assistida

Foram apresentados na Câmara vários projetos com o objetivo de regulamentar a reprodução humana medicamente assistida, entre eles: o Projeto de Lei n°.3638/97, de autoria do Deputado Luiz Moreira; o Projeto de Lei n°.90/99, escrito pelo Senador Lúcio Alcântara; o Projeto de Lei n°.1184/03, apresentado pelo Senador José Sarney; o Projeto de Lei n°.120/03 do Deputado Roberto Pessoa e também o Projeto de Lei n°.4686/04, do Deputado José Carlos Araújo.

O projeto mais antigo, do Deputado Luiz Moreira, é uma cópia da Resolução do CFM n°. 1.358 de 1992. Este projeto defende o anonimato absoluto do doador, prevendo apenas a possibilidade de em casos de problemas de saúde da criança, as informações sejam fornecidas somente para médicos. Como defendido no capítulo três, o sigilo absoluto da identidade do doador fere o princípio da dignidade da pessoa humana nos casos em que fazendo a análise do caso concreto verifica-se a superioridade do interesse na quebra do sigilo em detrimento de sua manutenção.

O projeto defendido pelo Senador Lúcio Alcântara traz várias inovações, sendo o projeto mais avançado no processo legislativo e estando em tramitação no Senado Federal. Por ter sido objeto de várias deliberações a redação original já foi alterada por duas vezes resultando em dois substitutivos, o primeiro de 1999 do Senador Roberto Requião e o segundo de 2001 do Senador Tião Viana.

A redação original do projeto 90/99 previa em seu art. 1º, I como possíveis beneficiários das técnicas de reprodução assistida as mulheres ou casais que solicitassem do emprego da reprodução assistida. Sobre o artigo, vale ressaltar a discussão sobre a abrangência do acesso às técnicas: seria este restrito à concretização do projeto parental de um casal, ou poderia ser a reprodução realizada em favor de solteiros? A dúvida existe diante o reconhecimento por parte da Constituição Federal da família monoparental. Para Guiherme Calmon Nogueira Gama, bem como para Belmiro Pedro Welter, há de se decidir pela possibilidade da reprodução assistida ser favorável aos solteiros, porque não se pode contrariar os preceitos constitucionais que reconhecem a monoparentalidade e deixar de possibilitar o acesso às técnicas reprodutivas pelos solteiros. Opinião divergente tem o doutrinador Eduardo Oliveira Leite (apud ALDROVANDI, 2002, on-line) para o qual o acesso restrito das técnicas de R.M.A. garante à criança que será gerada o direito ao biparentesco. O primeiro substitutivo tentou limitar o acesso aos casais, mas não logrou êxito, pois a primeira redação, que permitia a utilização das técnicas pelos solteiros, foi mantida pelo segundo substitutivo que corrobora o entendimento da Lei nº. 9.263/96.

Deve-se perceber que no projeto original, a maternidade de substituição seria permitida, por isso, baseado na igualdade entre os sexos, deveriam ser também beneficiários os homens solteiros, o que não foi previsto. Apesar de ter mantido a redação original, o segundo substitutivo não mais permite, em seu art. 3º, a maternidade de substituição, o que torna infrutífera a discussão acerca da constitucionalidade da restrição de uso aos homens solteiros, uma vez que, por impossibilidades físicas e sem condições de recorrer ao popular "útero de aluguel", mesmo que lhes possibilitassem a utilização das técnicas não haveria concretização do projeto parental por eles.

O Projeto de Lei 90/99 original prevê a necessidade do consentimento livre e esclarecido não só pelos beneficiários, como também dos doadores, que deveriam estar conscientes de sua eventual identificação civil por parte do ser gerado, como também da obrigatoriedade de reconhecimento da criança em casos previstos na lei (art.3°, §2°). A identificação civil poderia ocorrer quando a criança completasse a maioridade, ou a qualquer tempo em casos de falecimento de ambos os pais (art.12, caput). Já o reconhecimento poderia ocorrer se a criança não tivesse no registro a filiação relativa à pessoa do mesmo sexo do doador ou da mãe substituta (art. 12, §1º).

Interessante notar que o art. 12 prevê a possibilidade da criança não ter no registro o nome da mãe substituta como se esta fosse uma exceção, mas esta não é uma exceção e sim a regra, levando-se em consideração que a maternidade de substituição visa efetivar o projeto parental de uma mulher solteira ou casada, cujo nome é que irá configurar no registro de nascimento como a mãe. Considerando os beneficiários previstos no Projeto de Lei, não existiriam crianças geradas sem registro de mãe, já que os homens, como exposto anteriormente, não poderiam ser beneficiados.

Os dois substitutivos do projeto não albergam a necessidade do consentimento livre e esclarecido em relação ao reconhecimento, mas somente em relação à identificação (art.4º, § 2º). Isso porque, diferentemente do projeto original que prevê a paternidade e a maternidade como dos beneficiários, mas com algumas exceções, os projetos seguintes não apresentam nenhuma exceção à declaração de paternidade e maternidade plena aos beneficiários (art. 18 do substitutivo de 1999 e art.16 do substitutivo de 2001).

Outras diferenças importantes são percebidas na evolução do projeto: o original dispunha que a identificação poderia ocorrer quando a criança completasse a maioridade, ou a qualquer tempo em casos de falecimento de ambos os pais. O substitutivo de 99, apesar de exigir a declaração de consentimento do doador de que ele poderá vir a ser identificado civilmente, não permite a identificação pela criança. Quando o primeiro substitutivo indica no art.9º, §2º, que o médico poderá entrevistar o doador, dispõe que deverá ser resguardada a identidade civil, então, compreende-se que essa entrevista deverá ser feita por outra forma que não pessoal ou que o médico é que poderá conhecer a identidade do doador e que deva omiti-la do paciente. Já o substitutivo de 2001 informa em seu art. 9º, §1º que a criança poderá a qualquer tempo conhecer a identidade do doador, inclusive através de representação ou assistência enquanto incapaz.

O projeto e seus substitutivos determinam a obrigatoriedade de registros dos casos de reprodução assistida e de dados sobre o doador para caso de necessidade de informações aos médicos, como também para conhecimento de disponibilidade para transplante de órgãos. No original o período de registro era obrigatório por vinte e cinco anos, seus substitutivos aumentaram para o período de cinqüenta anos. O projeto original e seus substitutivos prevêem a possibilidade de consulta desses registros através do médico sem a necessidade da criança vir a conhecer seu ascendente. Embora no substitutivo de 99 essa possibilidade tenha sido prevista graças ao sigilo absoluto da identidade do doador, no projeto original e no substitutivo de 2001 essa possibilidade vem para concretizar o direito "de não saber", pois, como já apresentado, o conhecimento da origem genética é direito e não dever, assim, o substitutivo de 2001 prevê duas possibilidades ao ser gerado: este poderá requerer a identificação do doador ou apenas a revelação dos dados acerca do doador para o médico.

O Projeto de Lei 1184 de 2003 de autoria do Senador José Sarney é apenas uma reprodução do substitutivo de 2001 do Projeto de Lei n°90/99 do Senador Lúcio Alcântara. O Projeto de Lei n°. 120/03 do Deputado Roberto Pessoa objetiva o acréscimo do art. 6º - A na Lei 8560 de 1992, que trata da investigação de paternidade. Neste artigo é prevista a possibilidade da identidade dos doadores, sem ressalvas. Por fim, o Projeto de Lei n°. 4686 de 2004 do Deputado José Carlos Araújo é uma proposta e acréscimo do art. 1.597-A ao Código Civil, prevendo a identificação civil do doador a qualquer tempo, inclusive através de representante legal também sem nenhuma restrição. Apesar das disposições deste projeto serem parecidas com as do substitutivo de 2001 do projeto 90/99, deve-se lembrar das limitações formais das normas do Código Civil, então, provavelmente, esse projeto não será aceito pelo mesmo motivo que o assunto não foi abordado na redação original do Código: a reprodução humana é assunto que deve ser objeto de leis especiais.

4.2 Ação adequada à busca da origem genética

Os projetos de lei, em sua maioria, defendem o sigilo do doador como regra que pode ser quebrada pela vontade expressa da criança em qualquer hipótese, embora tenha sido demonstrado no capítulo três do presente trabalho que não é sempre que o interesse em conhecer a origem genética deve prevalecer sobre o direito à intimidade. Apesar de permitirem o conhecimento da ascendência genética, de todos os projetos apresentados, apenas o projeto nº. 120/03 define a ação própria para esta identificação como sendo a ação investigatória de paternidade, mas também são encontrados posicionamentos no sentido de se considerar o habeas data, previsto constitucionalmente, a ação competente para a busca da ascendência biológica.

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O entendimento da doutrina é majoritário no sentido de reconhecer como meio adequado para o conhecimento da origem genética a ação de investigação de paternidade prevista na Lei nº. 8.560/92. Neste sentido Belmiro Pedro Welter (2003, p.230) defende a utilização da ação para efetivação do direito de se conhecer o doador, bem como Tycho Brahe Fernandes (apud ALDROVANDI, 2002, on-line), que defende que impedir a ação investigatória de paternidade é discriminação do filho originado de concepção heteróloga, e Álvaro Villaça Azevedo que indica, segundo Andréa Aldrovandi (2002, on-line), que "o filho gerado através de uma das técnicas de reprodução assistida poderá, a qualquer tempo, investigar a sua paternidade, devendo os responsáveis pelos dados do doador, fornecê-los, em segredo de justiça".

Entretanto, é um posicionamento combatido com base em fortes argumentos. De acordo com Paulo Luiz Netto Lôbo (2004, on-line), para garantir a efetivação do direito fundamental do conhecimento da origem genética, não é preciso investigar a paternidade. Em suas palavras:

Toda pessoa tem direito fundamental, na espécie direito da personalidade, de vindicar sua origem biológica [...] Uma coisa é vindicar a origem genética, outra a investigação de paternidade. A paternidade deriva do estado de filiação, independente de origem (biológica ou não). O avanço da biotecnologia permite, por exemplo, a inseminação artificial heteróloga, autorizada pelo marido [...]. Nesse caso, o filho pode vindicar os dados genéticos do doador anônimo de sêmen que conste nos arquivos da instituição que o armazenou, para fins de direito da personalidade, mas não poderá fazê-lo com escopo de atribuição de paternidade. Conseqüentemente, é inadequado o uso da ação de investigação de paternidade, para tal fim.

Como escrito no capítulo dois deste trabalho, a filiação, em sua atual compreensão, diverge da origem biológica da pessoa, pois "a identidade genética não se confunde com a identidade da filiação, tecida na complexidade das relações afetivas, que o ser humano constrói entre a liberdade e o desejo" (LÔBO, on-line). Com base nesta afirmação é que se pode defender a não utilização da ação de investigação de paternidade para o conhecimento da origem, pois se tratam de institutos diferentes.

A paternidade e a maternidade são conseqüências do estado de pai e mãe, ou seja, decorrentes do fato do filho estar na posse do estado de filho daquelas pessoas. A filiação é comprovada pela certidão de nascimento, na qual, no caso da reprodução medicamente assistida heteróloga, deverá constar o nome dos beneficiários do processo. Assim, uma vez registradas a paternidade e a maternidade, não se pode modificar o estado de filiação salvo por erro ou falsidade deste registro. Neste sentido encontram-se as disposições do Código Civil de 2002:

Art. 1.603. A filiação prova-se pela certidão do termo de nascimento registrada no Registro Civil.

Art. 1.604. Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro.

A Lei nº 8560 de 1992, que disciplina a ação investigatória, determina em seu art. 2º, que a ação investigatória tem lugar quando o filho não possui em seu registro de nascimento a paternidade estabelecida:

Art. 2º Em registro de nascimento de menor apenas com a maternidade estabelecida, o oficial remeterá ao juiz certidão integral do registro e o nome e prenome, profissão, identidade e residência do suposto pai, a fim de ser averiguada oficiosamente a procedência da alegação.

Tratando-se, portanto, do indivíduo que possui pai e mãe juridicamente estabelecidos, mesmo havendo possibilidade de propositura de ação investigatória, uma vez que o Estatuto da Criança e do Adolescente não prevê restrições, essa não deverá ter efeitos próprios da investigação de paternidade, em vista da paternidade já estar estabelecida e não existirem motivos para descaracterizá-la, principalmente quando se percebe a paternidade socioafetiva ganhando cada vez mais importância no momento de definição de parentesco. A ação deverá ter efeitos limitados ao conhecimento da ascendência genética.

A investigação pode ocorrer na hipótese prevista na Lei nº.8560/92 se, sendo uma mulher solteira beneficiária da técnica de reprodução assistida heteróloga, esta registre a criança apenas em seu nome. Neste caso também a investigação deve ter efeito limitado ao conhecimento da origem genética, porque o doador não deve ser obrigado a arcar com os efeitos do reconhecimento, visto que o projeto parental é de autoria da mulher solteira e a criança concebida de sua responsabilidade. Neste aspecto, verifica-se a insuficiência da ação para buscar o conhecimento da origem, pois, entre as técnicas de reprodução heteróloga, está contida a possibilidade tanto da doação de gametas femininos quanto masculinos, daí, considerando-se a necessidade da criança concebida com óvulo doado buscar sua origem, esta busca não poderia acontecer através da investigação de paternidade.

Além dos limites relacionados ao interesse de agir da pessoa que deseja reconhecer sua ascendência, considerando que esta, tendo pai, terá a ação que ser declarada de efeitos limitados, resta também prejudicado o argumento desta ação ser a ideal para o objetivo do conhecimento da origem pelo fato dos efeitos da ação serem opostos à real finalidade buscada, como se verifica na leitura do art. 1.616 do Código Civil de 2002:

Art. 1.616. A sentença que julgar procedente a ação de investigação produzirá os mesmos efeitos do reconhecimento; mas poderá ordenar que o filho se crie e eduque fora da companhia dos pais ou daquele que lhe contestou essa qualidade.

Percebe-se então, que o indivíduo que deseja buscar sua origem, mesmo sendo a ação possibilitada, os efeitos da sentença deverão ser limitados, pois ação investigatória de paternidade, quando julgada procedente, gera efeitos de reconhecimento, tanto morais quanto patrimoniais. Dentre os efeitos morais está a submissão ao pátrio poder (PEREIRA, 1977, p.151), atualmente entendido como poder familiar, cujo exercício compreende os seguintes direitos e deveres de acordo com o art. 1634 do Código Civil de 2002:

Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:

I - dirigir-lhes a criação e educação;

II - tê-los em sua companhia e guarda;

III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;

IV - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar;

V - representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;

VI - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;

VII - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.

Conclui-se, assim, que a ação investigatória de paternidade se mostra imprestável para busca do conhecimento da origem genética, primeiramente por passar a impressão equivocada de que origem genética se confunde com o instituto da paternidade, segundo por não atender ao direito de todos aqueles que desejam o conhecimento de suas origens por não poder ser proposta para investigação da doadora de óvulos, e, finalmente, pelos seus efeitos de constituição de novo vínculo parental, desconstituindo o anterior e submetendo o investigando ao poder familiar do doador, o que é totalmente diferente do fim desejado. Infelizmente, uma vez que o ECA não prevê restrições à sua propositura e também pelo fato de não existir ação própria, a ação investigatória de paternidade vem sendo utilizada de forma equivocada por aqueles que desejam conhecer sua ascendência genética, sendo uma tendência concedê-la com efeitos limitados.

O habeas data é ação prevista no art 5º, LXXII da Constituição Federal de 1988. Seu objetivo é levar ao conhecimento do impetrante dados relativos à pessoa do impetrante, constantes de arquivos, cujo órgão responsável tenha se negado a fornecer.

Art. 5º

[...]

LXXII - conceder-se-á habeas data:

a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público;

b) para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo;

Fernanda de Fraga Balan (2006, on-line) anuncia o entendimento de Guilherme Calmon Nogueira da Gama:

O autor acredita que, para fazer valer esse direito, a criança gerada poderia valer-se do remédio constitucional do habeas data, previsto no artigo 5º, inciso LXXI, "a", da Constituição Federal [...].

O habeas data não se restringiria à Administração Pública, podendo atingir entidades que mantenham bancos de dados de caráter público; o que abrange casas de saúde, bancos de sêmen e de embriões e, fundamentalmente, as pessoas dos profissionais que se responsabilizaram pelo procedimento médico concernente à procriação assistida heteróloga.

Assim como a investigação de paternidade, o habeas data também não deve considerado a ação própria para o conhecimento da ascendência genética por alguns motivos claros percebidos na análise do inciso LXXII do art.5º da Constituição Federal. Dois pontos devem ser analisados no artigo constitucional. O primeiro ponto a ser abordado é o objeto do conhecimento: "informações relativas à pessoa do impetrante". Mesmo que as informações acerca da origem genética sejam relativas ao impetrante, na sua busca pede-se informações relativas à pessoa do doador, o que não pode ser fornecido através do habeas data.

O segundo ponto controverso é a necessidade destes arquivos constarem "de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público". Se a aplicação da técnica de reprodução medicamente assistida ocorreu em hospital público existirá o caráter público, o que não acontecerá se o procedimento se der em empresas particulares. Conforme explicação de Alexandre de Moraes (2002, p.157):

Poderão ser sujeitos passivos do habeas data as entidades governamentais, de administração pública direta ou indireta, bem como as instituições, entidades e pessoas jurídicas privadas que prestem serviços para o público ou de interesse público, e desde que detenham dados referentes às pessoas físicas ou jurídicas.

Tem-se, portanto, como inadequada a propositura do habeas data com objetivo de se encontrar a origem genética, por dois motivos: pelas informações buscadas serem relativas também ao doador e não somente ao impetrante, como também pela não caracterização dos bancos de gametas e das empresas que utilizam as técnicas de reprodução assistida heteróloga como sendo de caráter público, primeiramente porque seus serviços são dirigidos para uma parcela específica da população e porque seus serviços não são de interesse público.

Considerando que o direito fundamental ao conhecimento da ascendência genética deve ser preservado e que não existe no ordenamento jurídico brasileiro nenhuma ação adequada para concretização deste direito, percebe-se uma urgência no sentido de concentrar esforços no legislativo para criação de ação própria que permita a efetivação deste direito constitucionalmente protegido. Inclusive, esta ação deverá conter limitações quando à possibilidade de sua propositura, sendo interessante que limite o conhecimento da origem genética aos casos em que o direito fundamental ao conhecimento se sobreponha ao direito à intimidade do doador, e não em todos os casos, como se entende da leitura do Projeto de Lei 90/99 na versão atual de 2001 do Senador Tião Viana.

4.3 Efeitos pessoais e patrimoniais do conhecimento da origem genética

O projeto de Lei 90/99 de autoria do Senador Lúcio Alcântara, em sua redação original, previa a possibilidade de reconhecimento por parte do doador da criança através de reprodução assistida heteróloga, no caso do ser gerado não possuir o nome do pai no registro de nascimento. Deste reconhecimento derivaria uma série de direitos e deveres inerentes ao reconhecimento da paternidade ou maternidade. Este reconhecimento pelo doador era, porém, uma exceção, devendo em regra ser os beneficiários os responsáveis pela criança, pois é destes o projeto parental.

Essa possibilidade de reconhecimento, entretanto, não se manteve nos dois substitutivos do projeto, que dispõem que não existirá qualquer vínculo ou direitos decorrentes da doação de gametas. Desse modo, o art. 19 do substitutivo de 99 e o art. 17 do substitutivo de 2001, prevêem como efeitos do conhecimento da ascendência genética apenas os impedimentos matrimoniais previstos no Código Civil em seu art. 1.521, in verbis:

Art. 1.521. Não podem casar:

I - os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil;

II - os afins em linha reta;

III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante;

IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive;

V - o adotado com o filho do adotante;

VI - as pessoas casadas;

VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.

A determinação da atual versão do projeto está de acordo com o entendimento majoritário da doutrina da qual faz parte Belmiro Pedro Welter, Guilherme Calmon Nogueira Gama e Paulo Luiz Netto Lobo, que tem sido no sentido de vedar os efeitos típicos de reconhecimento de paternidade ou maternidade por ocasião do conhecimento da ascendência genética, exceto os impedimentos matrimoniais. Existe na opinião destes autores uma equiparação dos efeitos do conhecimento da origem genética aos efeitos da adoção, tanto que o Deputado José Carlos Araújo, no projeto de Lei nº. 4686/04 que objetiva o acréscimo do art. 1597-A ao Código Civil indica que "o conhecimento da verdade biológica impõe a implicação dos artigos 1521, 1596, 1626, 1628 (segunda parte) deste código". O art. 1521 do Código Civil de 2002 contém os impedimentos matrimoniais, o 1596 dispõe sobre a igualdade dos filhos independente de origem, e os artigos 1626 e 1628 fazem parte do capítulo sobre adoção. Dispõem os artigos:

Art. 1.626. A adoção atribui a situação de filho ao adotado, desligando-o de qualquer vínculo com os pais e parentes consangüíneos, salvo quanto aos impedimentos para o casamento.

Art. 1.628. Os efeitos da adoção começam a partir do trânsito em julgado da sentença, exceto se o adotante vier a falecer no curso do procedimento, caso em que terá força retroativa à data do óbito. As relações de parentesco se estabelecem não só entre o adotante e o adotado, como também entre aquele e os descendentes deste e entre o adotado e todos os parentes do adotante. (grifou-se)

José Carlos Araújo, em sua justificativa para o Projeto de Lei nº4686/04 afirma:

[...] não deverá haver nenhum vínculo, nem paternal, nem patrimonial, bem como direito sucessório entre a pessoa concebida por técnica medicamente assistida heteróloga e o doador de gametas. O conhecimento da origem genética não modifica em nada as relações jurídico- familiares que tal indivíduo possui com seus pais e sua família afetiva.

Segundo Jesualdo Eduardo de Almeida Júnior (2005, p.97) "não há parentesco entre o doador do sêmen e o concebido, e, por razão maior, não há que se falar em obrigação ou dever alimentar entre eles". Importante as palavras de Guilherme Calmon (2003, p.22 e 23) sobre a relação entre reprodução assistida heteróloga e adoção:

[...] vários dispositivos que expressamente somente se referem à adoção deverão ser estendidos à procriação assistida heteróloga tendo como base o fundamento que ambos os institutos jurídicos, ou seja, a origem não-sangüínea para fins de parentesco civil[...] Entre as normas do Código Civil, destaca-se o art. 1.626: " A adoção atribui a situação de filho ao adotado, desligando-o de qualquer vínculo com os pais e parentes consangüíneos, salvo os impedimentos para o casamento.[...]

É, então, predominante o entendimento de não haver parentesco entre doador e a criança, mesmo quando esta venha a conhecer sua ascendência em sede de ação ainda não definida em lei, o que representa a inexistência de qualquer vínculo jurídico, obrigando somente doador e criança concebida a obedecerem aos impedimentos matrimoniais, ou seja, permanecem os vínculos naturais.

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Sobre a autora
Nathalie Carvalho Cândido

advogada em Fortaleza (CE)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CÂNDIDO, Nathalie Carvalho. Reprodução medicamente assistida heteróloga:: distinção entre filiação e origem genética. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1480, 21 jul. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10171. Acesso em: 23 dez. 2024.

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