6. Do afastamento da aplicação da legislação estadual
Conforme já destacado anteriormente, o Estado de São Paulo tem autuado os contribuintes pelo diferencial de alíquota, com a reclassificação da natureza jurídica da operação para interna, com suporte jurídico na legislação tributária local, a qual admite a presunção pela operação interna quando não demonstrada a saída da mercadoria – art. 23, §3º da Lei 6.374/1989.
Contudo, ao enfrentar a legislação local, o Superior Tribunal de Justiça, sem declarar sua inconstitucionalidade, afastou sua expressa aplicação, sob o pretexto de estar realizando uma interpretação à luz da divisão de responsabilidade do ICMS estabelecida na Constituição Federal.
Entendeu o Tribunal da Cidadania que a lei estadual não poderia criar uma presunção de operação interna, pois estaria ofendendo a lógica constitucional prevista para responsabilização pelo diferencial de alíquota, uma vez que a responsabilidade seria do contribuinte comprador, e não do vendedor.
Primeiramente, o argumento pela inconstitucionalidade do dispositivo legal paulista não se sustenta. Conforme já analisado no introito deste artigo, o panorama constitucional firmado com a Emenda Constitucional 87 de 2015 tem como base a redistribuição da receita derivada do ICMS entre os estados produtores e consumidores quando observada uma efetiva operação interestadual.
Desse modo, não existindo uma efetiva circulação de mercadoria, não pode o estado de destino se arvorar na titularidade do diferencial de alíquota, pois a mercadoria nunca transpôs as fronteiras do estado de origem, e, por sua vez, não cabe o deslocamento da responsabilidade pelo diferencial de alíquota para o contribuinte destinatário. Ou seja, uma vez não identificada a real existência de operação interestadual, não é aplicável o arranjo constitucional criado especificamente para essas hipóteses.
Por outro lado, ainda que em confronto com a normatização constitucional, não caberia ao Superior Tribunal de Justiça afastar a aplicação da legislação paulista sem o cumprimento da cláusula de reserva de plenário, prevista no art. 97 da Constituição Federal, para declaração de sua inconstitucionalidade, como já preceituado pelo STF, na súmula vinculante n. 10:
“Súmula vinculante n. 10 do STF: Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de Tribunal que embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte.”[7]
Sendo assim, para o afastamento da aplicação dos dispositivos legais da legislação tributária paulista, não resta outra alternativa senão a sua declaração de inconstitucionalidade, com a submissão do incidente ao órgão competente, sob pena de ofensa direta ao artigo 97 da Constituição Federal.
7. Conclusão
Diante do panorama exposto acerca do sistema nacional de tributação pelo ICMS, não se sustenta a conclusão a que chegou a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, nos Embargos de Divergência em Recurso Especial n. 1.657.359/SP.
Isso porque, mesmo nas operações interestaduais com cláusula fob (free on board), deve ser investigado se houve efetivamente o caráter interestadual da circulação de mercadoria, condição indispensável para aplicação da alíquota interestadual em favor do estado de origem, e para titularidade do diferencial de alíquota pelo estado de destino.
Caso contrário, haverá completo desvirtuamento da tributação do ICMS, com graves prejuízos aos cofres públicos, tanto dos estados produtores, que ficarão impedidos de cobrar a alíquota interna completa, quanto dos estados consumidores, que não poderão tributar os contribuintes localizados em seu território, já que os produtos jamais atravessaram a fronteira.
Em suma, haverá a premiação dos contribuintes que, em desfavor do Erário público, buscam escapar da tributação, a partir de manobras fiscais, agora com o aval da jurisprudência dos tribunais superiores, que invertem o ônus da prova para a fazenda pública. Coloca-se em risco, ainda, o princípio da isonomia, bem como a garantia do equilíbrio econômico e da livre concorrência. Isso porque os demais contribuintes que honram seus compromissos tributários se encontrarão em patamar de desvantagem para competir harmonicamente com estes agentes do mercado.
Desse modo, para salvaguardar os cofres públicos, e a dinâmica equilibrada do desenvolvimento econômico, importante que os estados-membros, através de seus procuradores, reforcem perante os tribunais superiores a necessidade de revisão deste entendimento.
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Notas
[1] É lícito ao comerciante de boa-fé aproveitar os créditos de ICMS decorrentes de nota fiscal posteriormente declarada inidônea, quando demonstrada a veracidade da compra e venda. (Súmula 509, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 26/03/2014, DJe 31/03/2014)
[2] AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 20ª edição. São Paulo, Saraiva, 2014. p. 354.
[3] PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário completo. 9ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.p.212.
[4] ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário. 11ª edição. Salvador: Editora Juspodivm, 2017. P. 353.
[5] AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 20ª edição. São Paulo, Saraiva, 2014. P.332.
[6] AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 20ª edição. São Paulo, Saraiva, 2014. P. 333.
[7] Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28%28SUMULA+VINCULANTE+10%29%29+E+S%2EFLSV%2E&base=baseSumulasVinculantes&url=http://tinyurl.com/yd7amk56. Consulta em 01.07.2018.