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A sujeição passiva pelo diferencial de alíquota do ICMS na tredestinação de mercadorias em operações interestaduais

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Trata-se da discussão a respeito da sujeição passiva do contribuinte-remetente pelo diferencial de alíquota de ICMS, em operações interestaduais, quando não comprovada a efetiva saída da mercadoria, diante da presunção pela operação interna, admitida pela legislação tributária estadual.

1.      Introdução

Um tema, há um tempo, enfrentado pela 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça merece uma revisitação aprofundada com base nos institutos do direito tributário e dos elementos da obrigação tributária. Trata-se da discussão a respeito da sujeição passiva do contribuinte-remetente pelo diferencial de alíquota de ICMS, em operações interestaduais, quando não comprovada a efetiva saída da mercadoria, diante da presunção pela operação interna, admitida pela legislação tributária estadual.

Desde a Emenda Constitucional 87 de 2015, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 155, §2º, incisos VII e VIII, passou a tratar da tributação das operações interestaduais de forma a redistribuir o ICMS entre os estados produtores e consumidores, em reforço ao princípio federativo (art. 1º, caput, CF/88) e em atendimento ao objetivo fundamental de diminuição das desigualdades regionais (art. 3º, III, CF/88). Temos, assim, a atual redação do texto constitucional, dispondo:

“VII - nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final, contribuinte ou não do imposto, localizado em outro Estado, adotar-se-á a alíquota interestadual e caberá ao Estado de localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna do Estado destinatário e a alíquota interestadual; 

VIII - a responsabilidade pelo recolhimento do imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual de que trata o inciso VII será atribuída:   

a) ao destinatário, quando este for contribuinte do imposto;

b) ao remetente, quando o destinatário não for contribuinte do imposto;”

Diante deste quadro, observa-se que, em se tratando de efetiva operação interestadual, o Estado de origem sempre irá receber somente o ICMS com a alíquota interestadual, variando de 7% a 12%, a depender do estado da federação, conforme Resolução n. 22/1989 do Senado Federal. Despiciendo, portanto, se a operação ou serviço é destinado a consumidor final ou não, sendo irrelevante ainda se o destinatário é contribuinte ou não do imposto.

Para o Estado de destino, três situações distintas se apresentam: (i) em se tratando de operação a destinatário consumidor final localizado em seu território, não contribuinte do imposto, terá direito ao diferencial de alíquotas de ICMS (diferença entre a sua alíquota interna e a alíquota interestadual já recolhida ao Estado de origem), de responsabilidade do contribuinte remetente; (ii) em se tratando de operação a destinatário consumidor final localizado em seu território, contribuinte do imposto, terá direito ao diferencial de alíquotas de ICMS, mas, dessa vez, de responsabilidade do contribuinte destinatário; e, por fim, (iii) em se tratando de operação a destinatário não consumidor final localizado em seu território, contribuinte do imposto (por decorrência lógica), terá direito à alíquota interna em operação futura, abatido o valor já pago na anterior operação interestadual.

Assim, a partir do panorama constitucional desenhado pelo constituinte, o Estado de origem não teria qualquer interesse no diferencial de alíquota; nem o contribuinte remetente teria qualquer responsabilidade pelo recolhimento do diferencial de alíquota, salvo na hipótese de operação interestadual a consumidor final não contribuinte do imposto, em que há uma responsabilidade tributária constitucional - art. 155, §2º, VIII, alínea b, CF/88.

A controvérsia surge quando, em fiscalização empreendida pelas autoridades fazendárias, o contribuinte recolhe somente a alíquota interestadual para o Estado de origem, a pretexto de ter realizado operação para clientes de outros estados, sem, contudo, demonstrar a efetiva saída da mercadoria.

Não têm sido raras as operações fraudulentas, caracterizadas por uma remessa fictícia a destinatários formalmente localizados em outros estados, com o único intuito de escapar da alíquota interna do ICMS, sem que os produtos jamais tenham cruzado a fronteira. O contribuinte remetente lança um endereço fictício de destinatário fora do território estadual, mas a mercadoria jamais atravessa as fronteiras. E, para escapar da responsabilidade de comprovar a saída, o remetente negocia compra e venda com cláusula fob (free on board), de modo que o transporte ficaria a cargo do comprador, exonerando o contribuinte remetente pelo efetivo destino dos produtos negociados.

Ocorre que, diante da ausência de demonstração da saída da mercadoria do território estadual, o Estado de origem tem autuado o contribuinte remetente, com a desclassificação da operação interestadual para operação interna, com suporte jurídico na legislação tributária local, que presume a operação interna diante da falta de comprovação documental da saída da mercadoria. No Estado de São Paulo, as autoridades fazendárias encontram respaldo no art. 23, §3º, da Lei estadual 6.374/1989:

Artigo 23 - O local da operação ou da prestação, para efeito de cobrança do imposto e definição do responsável, é:

(...)

§ 3º - Presume-se interna a operação quando o contribuinte não comprovar a saída da mercadoria do território paulista com destino a outro Estado ou ao Distrito Federal, ou a sua efetiva exportação.”


2.      Entendimento do STJ no EREsp n. 1.657.359/SP.

 No Superior Tribunal de Justiça, a celeuma gerou inclusive uma divergência entre os entendimentos da 1ª e 2ª Turma, a partir de perspectivas antagônicas sobre os efeitos da cláusula FOB e a necessidade de comprovação da má-fé do contribuinte para a imputação da responsabilidade pelo diferencial de alíquota.

Segundo a tese levada pelo contribuinte, estaria ocorrendo uma responsabilização tributária objetiva, sem respaldo legal, ao arrepio de uma identificação da conduta culposa ou dolosa e da comprovação do conluio para cobrança da diferença de alíquota. Consoante este entendimento, a fazenda pública não poderia, à vista da ausência de saída de mercadoria, exigir o pagamento do diferencial de alíquota e imputar a responsabilidade automática ao vendedor, sem antes demonstrar o intuito fraudulento e/ ou conluio entre as partes.

Na esteira da premissa adotada no enunciado de súmula 509[1] do STJ, a 1ª Seção entendeu que deve ser presumida a boa-fé do contribuinte, determinando o retorno dos autos ao tribunal de origem para que este avalie, com base no conjunto probatório, a existência de boa-fé ou má-fé do contribuinte, a partir da investigação da conduta culposa e de eventual conluio entre os particulares para fraudar o fisco.

Restou assim ementada a decisão:

“TRIBUTÁRIO. ICMS. OPERAÇÃO INTERESTADUAL. DIFERENCIAL DE ALÍQUOTA. TREDESTINAÇÃO DA MERCADORIA. RESPONSABILIZAÇÃO DO VENDEDOR. BOA-FÉ. VERIFICAÇÃO. NECESSIDADE.

1. A empresa vendedora de boa-fé que, mediante a apresentação da documentação fiscal pertinente e a demonstração de ter adotado as cautelas de praxe, evidencie a regularidade da operação interestadual realizada com o adquirente, afastando, assim, a caracterização de conduta culposa, não pode ser objetivamente responsabilizada pelo pagamento do diferencial de alíquota de ICMS em razão de a mercadoria não ter chegado ao destino declarado na nota fiscal, não sendo dela exigível a fiscalização de seu itinerário.

2. A despeito da regularidade da documentação, se o fisco comprovar que a empresa vendedora intencionalmente participou de eventual ato infracional (fraude) para burlar a fiscalização, concorrendo para a tredestinação da mercadoria (mediante simulação da operação, por exemplo), poderá ela, naturalmente, ser responsabilizada pelo pagamento dos tributos que deixaram de ser oportunamente recolhidos.

3. Hipótese em que o acórdão estadual, por entender que a responsabilização da empresa vendedora independeria de sua boa-fé, deve ser cassado, para que, em novo julgamento da apelação, decida a questão à luz da existência ou não desse elemento subjetivo.

4. Embargos de divergência providos.

(EREsp 1657359/SP, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 14/03/2018, DJe 19/03/2018)”

A partir da fundamentação do acórdão do julgamento dos embargos de divergência, extrai-se que a 1ª Seção utilizou os seguintes argumentos: a) a cláusula FOB não infirmaria a realização do negócio jurídico praticado pelo vendedor, nem o obrigaria a perseguir o itinerário da mercadoria; b) inexistência de previsão constitucional ou legal que autorizasse a responsabilização do vendedor pelo pagamento do diferencial de alíquota do ICMS com base na tredestinação da mercadoria; c) previsão expressa da Constituição (art. 155, §2º, VIII, ‘a’, CF/88) a respeito da responsabilidade exclusiva do destinatário pelo pagamento do diferencial de ICMS; d) impossibilidade de atribuir sujeição passiva com base em presunção, sendo necessário, para configurar a responsabilidade por infração do art. 136 do CTN, a exposição dos motivos determinantes para identificação do fato gerador e responsável tributário pela autoridade fiscal.

É fundamental, para a exata compreensão da controvérsia, o maior aprofundamento em cada um destes argumentos, a fim de se extirpar qualquer dúvida sobre a possibilidade de responsabilização do contribuinte remetente pelo pagamento da alíquota interna completa, sem que se incorra em vícios de inconstitucionalidade e/ou ilegalidade.


3.  Da cláusula fob – violação ao art. 123 do CTN

Uma das regras basilares a respeito da sujeição passiva nas obrigações tributárias é a impossibilidade, salvo disposição legal em contrário, de convenções particulares serem opostas à Fazenda Pública para modificação da definição legal do sujeito passivo. A relação tributária é relação jurídica de direito público, e, portanto, não pode ser livremente alterada por conveniência de interesses particulares. Ou seja, para que a alteração do polo passivo convencionado entre particulares possa ser invocada pelo contribuinte ou responsável tributário definido em lei, é necessário que tenha havido prévia anuência pelo sujeito ativo, no caso, o Fisco.

Neste sentido a lição do tributarista Luciano Amaro:

“Assim como um devedor, no plano privado, não pode eximir-se de obrigação mediante sua transferência a terceiro, sem anuência do credor, aqui, no direito tributário, o sujeito passivo não pode furtar-se a seus deveres com apoio no contrato em que terceiro os assuma sem anuência da lei. Contratos nesses termos valem apenas entre as partes, ou seja, não são oponíveis ao credor, que pode ignorá-los, quer o sujeito passivo (legalmente definido) seja contribuinte, quer seja responsável.”[2]

Ainda sobre a sujeição passiva e vinculação com o princípio da legalidade estrita no direito tributário, dispõe Leandro Paulsen:

“A sujeição passiva de qualquer relação obrigacional tributária é matéria estritamente legal forte na garantia da legalidade tributária (art. 150, I, da CF) ou mesmo da legalidade geral (art. 5º, II, da CF). O art. 123 do CTN constitui simples desdobramento disso ao dispor expressamente no sentido de que ‘salvo disposições de lei em contrário, as convenções particulares, relativas à responsabilidade pelo pagamento de tributos, não podem ser opostas à Fazenda Pública, para modificar a definição legal do sujeito passivo das obrigações tributárias correspondentes.’”[3]

Assim, a cláusula FOB (free on board), por se tratar de mera convenção particular entre vendedor e comprador para fixar a responsabilidade pelo transporte das mercadorias, em nada pode afetar a sujeição passiva decorrente da relação jurídica tributária do ICMS. E, ao seguir o raciocínio firmado no precedente da 1ª Seção, inevitavelmente a conclusão de contrato com cláusula FOB terá o poder de afastar ou não a sujeição passiva do contribuinte remetente.

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Senão vejamos.

Consoante o julgamento do STJ, se o vendedor remete a mercadoria para outro estado, depositando-a em poder do transportador de confiança do destinatário, ficaria isento de qualquer responsabilidade pelo eventual destino final da operação. Assim, ainda que fosse requisitada a comprovação da saída da mercadoria pelas autoridades fazendárias com base na legislação tributária, o contribuinte poderia simplesmente negar-se a entregar a documentação exigida, com a alegação de não ter o controle sobre o trajeto a ser percorrido. Ou seja, somente aqueles contribuintes remetentes que se responsabilizassem pelo transporte da mercadoria poderiam sofrer a exigência de comprovação da saída da mercadoria.

Afirma o acórdão da 1ª Seção que não seria exigível do contribuinte a fiscalização do itinerário, quando a própria legislação tributária dispõe o contrário, exigindo que o contribuinte tenha a documentação pertinente como obrigação acessória.

Ou seja, na prática, a C. 1ª Seção está admitindo que uma convenção particular, por meio da alteração da responsabilidade pelo transporte da mercadoria, é capaz de afastar e/ou alterar a responsabilidade tributária. Uma relação jurídica de natureza privada, neste caso, seria capaz de alterar uma relação jurídica tributária, de direito público. Flagrante, pois, a ofensa ao artigo 123 do Código Tributário Nacional.

Há ainda uma completa inversão do ônus probatório. Na linha de raciocínio do Superior Tribunal de Justiça, a responsabilidade pela verificação da saída da mercadoria seria da Fazenda Pública, por decorrência do seu Poder de Polícia. Cria-se, assim, a obrigação para o Fisco de investigar o destino de todas as mercadorias que transpõem os limites do território estadual, o que evidentemente inviabiliza o processo fiscalizatório, já que seria humanamente impossível.

Exigir do contribuinte a comprovação da saída da mercadoria não se confunde com delegação ao particular do poder de polícia estatal, mas faz parte do necessário controle de escrituração comercial, contábil e fiscal que os contribuintes devem manter. Caso contrário, o ente público jamais poderia exigir do sujeito passivo o cumprimento de obrigações acessórias, que servem justamente para colaboração na arrecadação e fiscalização dos tributos (art. 113, §2º, CTN).

O poder de polícia engloba o poder de fiscalizar. E, neste contexto, é o particular quem possui o controle sobre o destino das suas mercadorias, e pode mais facilmente se munir da documentação necessária para viabilizar o efetivo exercício do poder de polícia pelas autoridades fazendárias na fiscalização do cumprimento da legislação tributária.

Afinal, se o contribuinte é quem pretende se beneficiar com o pagamento do ICMS a uma alíquota inferior à praticada nas negociações internas, é o próprio contribuinte quem deve juntar a comprovação da saída da mercadoria dos limites territoriais do estado-membro. Caso contrário, bastaria que todo contribuinte alegasse negociação interestadual para escapar ao pagamento da alíquota interna, o que desvirtuaria a finalidade do instituto previsto constitucionalmente (art. 155, §2º, VIII, CF), bem como se traduziria em uma elevada queda de arrecadação aos cofres públicos.

É evidente, portanto, que adotar a cláusula FOB como uma excludente de responsabilidade pelo diferencial de alíquota do ICMS importa em violação flagrante e direta à regra prescrita no art. 123 do CTN.


4.  Responsabilização do destinatário pelo diferencial de alíquota.

Como acima citado, um dos fundamentos invocados para afastar a responsabilização do contribuinte remetente seria a previsão constitucional que expressamente atribui ao contribuinte destinatário a responsabilidade pelo pagamento do diferencial de alíquota de ICMS nas operações interestaduais.

De fato, quando ocorre efetivamente a operação interestadual entre contribuintes, a responsabilidade pelo diferencial de alíquota será única e exclusiva do contribuinte destinatário, nos termos do art. 155, §2º, VIII, a, da CF/88. Este foi o panorama constitucional analisado primordialmente na introdução deste artigo.

Contudo, diante da inexistência de operação interestadual, não socorre ao contribuinte remetente a previsão constitucional do art. 155, §2º para afastar sua responsabilidade pelo pagamento do tributo estadual em sua alíquota interna total, nas mesmas condições dos demais contribuintes que realizam operações mercantis internas. O que aconteceu, em suma, foi uma verdadeira desclassificação da operação interestadual para uma operação interna.

Basta analisar o seguinte exemplo: operação ‘interestadual’ de contribuinte localizado no Estado de São Paulo para o Estado do Pará. A alíquota interna do Estado de São Paulo é de 18%, do Estado do Pará, 17%, e a alíquota interestadual de São Paulo para o Pará é de somente 7%. Neste caso, temos que, ocorrendo a efetiva operação interestadual, será devido ao Estado de São Paulo somente o ICMS com a alíquota de 7%, e, ao Estado do Pará, será devido o ICMS com a alíquota de 10%, diante do diferencial entre a alíquota interna do Pará (17%), e a alíquota interestadual SP-PA (7%). Este diferencial de 10% será de titularidade do Estado do Pará e de responsabilidade exclusiva do contribuinte destinatário. Contudo, uma vez constatado pela autoridade fazendária que a mercadoria jamais transpôs a fronteira estadual, o Estado de São Paulo não estará responsabilizando o contribuinte remetente pelo diferencial de alíquota de 10%. Primeiramente, porque o ente paulista não teria direito a este diferencial de alíquota pela operação interestadual, já que a Constituição Federal deixa bem claro que o titular deste diferencial é o Estado de destino. Em segundo lugar, porque o responsável pelo pagamento deste diferencial de alíquota é o contribuinte destinatário, conforme deixou expressa a EC 87/2015. Portanto, o que a autoridade fazendária paulista faz é a autuação para desclassificar a operação interestadual, e sujeitá-la ao regramento das demais operações internas, com a cobrança da alíquota interna cheia. Assim, o Fisco paulista cobrará o diferencial de 11% (18% - 7%), por fazer jus ao ICMS integral nas operações internas.

Do contrário, caso se admitisse que contribuintes remetentes que ‘internalizaram’ operações interestaduais fossem agraciados com o pagamento exclusivo da alíquota interestadual, necessariamente inferior à alíquota interna (art. 155, §2º, VI, CF/88), haveria a criação de um desequilíbrio entre os contribuintes e uma ofensa à justa e livre concorrência. Isso porque haveria um tratamento desfavorável àqueles comerciantes de boa-fé que agiram corretamente com o recolhimento da alíquota interna, em privilégio daqueles que, independentemente da boa-fé ou má-fé, não tiveram sua mercadoria tributada integralmente.

Afinal, verifica-se que, com a ausência de saída de mercadoria do território estadual, impossibilita-se até mesmo que o Estado de destino possa tributar a operação para cobrança da sua parte do ICMS, já que não haverá o fato gerador, qual seja, a efetiva circulação da mercadoria.


5.  Da sujeição passiva do contribuinte remetente.

Um argumento fundamental que tem sido sustentado é a ausência de sujeição passiva do remetente, por não se revestir da condição de contribuinte nem de responsável tributário pelo valor correspondente à diferença de alíquota.

Nos termos do art. 121 do CTN, sujeito passivo é a pessoa obrigada ao pagamento do tributo ou da penalidade pecuniária, dentro das categorias de contribuinte e responsável tributário, conforme definidas no respectivo parágrafo único.

Nas palavras de Ricardo Alexandre, encontramos detida análise sobre a definição legal de sujeito passivo da obrigação tributária adotada pelo CTN:

“Seguindo a teoria adotada pelo Código Tributário Nacional, pode-se afirmar que a diferenciação entre contribuinte e responsável parte da seguinte pergunta: O sujeito passivo possui relação pessoal e direta com o fato gerador?

Se a resposta for positiva, o sujeito passivo é contribuinte (sujeito passivo direto); se negativa, o sujeito passivo é responsável (sujeito passivo indireto).

O critério legal parece simples, mas o significado da expressão ‘relação pessoal e direta’ com o fato gerador merece um detalhamento maior.

Tome-se como exemplo os impostos. Todos os impostos têm por fato gerador alguma manifestação de riqueza (patrimônio, renda, consumo). Possui relação pessoal e direta com o fato gerador quem faz com que este aconteça, quem – no caso dos impostos – manifesta a riqueza definida em lei como fato gerador do tributo.

Se a pessoa que manifesta riqueza é a mesma obrigada a pagar o tributo, tal pessoa é sujeito passivo na modalidade contribuinte, uma vez que possui relação pessoal e direta com o fato gerador da obrigação.

Quando a pessoa obrigada por lei ao pagamento do tributo é diferente daquela que manifestou riqueza, apesar de estar vinculada ao evento definido em lei como fato gerador, tal pessoa e sujeito passivo na modalidade responsável, visto que não possui relação pessoal e direta com o fato gerador da obrigação.”[4]

Trazendo para o campo do ICMS, a identificação do contribuinte do imposto estadual guardará correlação com os fatos geradores definidos constitucionalmente. Assim, dispõe José Eduardo Soares de Melo que a “CF/88 traça as materialidade do ICMS tornando-se facilitada a tarefa do legislador ao compor o arquétipo do tributo no que tange aos contribuinte, que deverão ser a) as pessoas que pratiquem operações relativas à circulação de mercadorias, b) prestadores de serviços de transporte interestadual e intermunicipal, c) prestadores de serviço de comunicação, e d) importadores de bens e mercadorias” (MELO, José Eduardo Soares de. ICMS – teoria e prática. P. 152).

Nos termos da Lei Complementar nº. 87/96, temos:

“Art. 4º Contribuinte é qualquer pessoa, física ou jurídica, que realize, com habitualidade ou em volume que caracterize intuito comercial, operações de circulação de mercadoria ou prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior.”

Assim, na situação em estudo, o primeiro questionamento a ser feito diz respeito ao efetivo enquadramento do vendedor remetente na condição de contribuinte quanto à diferença de alíquota.

Nos termos da fundamentação do REsp 1.174.489/SP (recurso apontado como paradigma no EREsp n. 1.657.359/SP), de relatoria do Ministro Napoleão Maia, o remetente não revestiria a condição de contribuinte por não guardar relação pessoal e direta com o fato gerador, entendido este como a ‘tredestinação da mercadoria vendida, que não chegou ao seu destino, fora dos limites estaduais paulistas’.

Ocorre que houve aqui uma interpretação equivocada quanto ao efetivo fato gerador. Uma vez verificada pela autoridade fiscal que a mercadoria não transpôs os limites territoriais do estado-membro, houve uma desclassificação do fato gerador formal (circulação de mercadoria entre estados diferentes) para o fato gerador efetivo – circulação de mercadoria dentro do estado-membro. E, neste contexto, o vendedor remetente reveste a condição sim de contribuinte, sendo devedor, por conseguinte, pelo ICMS com alíquota interna, o que gera sua responsabilização pelo diferencial de alíquota.

Por sua vez, no campo da responsabilidade tributária, reconhece-se doutrinariamente duas modalidades: por substituição e por transferência. Nas lições de Luciano Amaro, esta responsabilidade por substituição ocorre quando “a lei desde logo põe o terceiro no lugar da pessoa que naturalmente seria definível como contribuinte, ou seja, a obrigação tributária já nasce com seu polo passivo ocupado por um substituto legal tributário”[5]. Como exemplo, temos o imposto de renda incidente na fonte, de responsabilidade da fonte pagadora, de modo que o beneficiário da renda é previamente substituído pelo terceiro. Como se pode notar, esta espécie de responsabilidade tributária não alcança o vendedor remetente pelo diferencial de alíquota.

A responsabilidade por transferência, conforme exposição de Rubens Gomes de Sousa, é modalidade de sujeição passiva que se subdivide em: sucessão, solidariedade, e a responsabilidade em sentido restrito. Em comum, observa-se que, na responsabilidade por transferência, “a obrigação de um devedor (que pode ser um contribuinte ou um responsável) é deslocada para outra pessoa, em razão de algum evento”[6].

Neste sentido, também não se vislumbra que haja a sujeição passiva do remetente pelo diferencial de alíquota seja decorrente da responsabilização tributária por transferência. Para tanto, seria necessário admitir que a responsabilidade nasceu originalmente, com o fato gerador, para um sujeito, e, posteriormente, com um evento determinado, teria sido deslocada para o vendedor remetente. Não é disso que se trata. Há um único fato gerador original – a circulação de mercadoria internamente – pelo qual responde o vendedor remetente na condição de contribuinte, nas mesmas condições dos demais, com a aplicação da alíquota interna integralmente.

Nem se vislumbra aqui, por sua vez, hipótese de responsabilização por infração, prevista no art. 136 do CTN, onde se prevê uma responsabilização objetiva, embora já mitigada pela orientação da jurisprudência do STJ, conforme se pode depreender do enunciado de súmula 509 do STJ, bem como do precedente no REsp n. 1.148.444/MG. A investigação da boa-fé na conduta dos agentes relacionados na operação de circulação de mercadoria, na esteira da jurisprudência do STJ, até poderia ser importante na aplicação das multas tributárias por penalidade, mas não para definição do fato gerador efetivamente ocorrido.

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Sobre o autor
Paulo Henrique Procópio Florêncio

Procurador do Estado de São Paulo em Brasília, atuante perante os Tribunais Superiores. Ex-Procurador do Estado do Mato Grosso e Ex-Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FLORÊNCIO, Paulo Henrique Procópio. A sujeição passiva pelo diferencial de alíquota do ICMS na tredestinação de mercadorias em operações interestaduais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7122, 31 dez. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/101793. Acesso em: 21 nov. 2024.

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