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O caos tributário brasileiro

26/07/2007 às 00:00
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Proponho-me a abordar brevemente a caótica sistemática tributária brasileira como um sintoma das deformações muito maiores – sociais e econômicas – que se verificam no Brasil. Não se trata aqui, como assunto principal, de falar sobre as incoerências internas e defeitos de redação da legislação e, principalmente, do código tributário nacional.

As obscuridades, antíteses e incoerências que se vêem nas leis são sintomas em segundo grau do que chamo caos tributário. Enfim, as deficiências formais nas leis apontam deficiências no sistema tributário que, por sua vez, apontam problemas na estruturação do país.

Sintoma aqui é utilizado como elemento revelador de alguma situação, ou seja, um aspecto perceptível de uma realidade maior. Claro que a visão que se lança a partir de um aspecto será enviesada. Porém, esse perspectivismo é inevitável e declarado, não tendo pretensão de visão integral. Tem, isso sim, pretensão de apontar a possibilidade de se verem as estruturas a partir de pequenos traços seus.

A confecção de um conjunto normativo tendente à ambiguidade e à extorsão tributária revela mais que ignorância formal dos instrumentos de técnica legislativa. Aponta, sim, o desejo de assim proceder e a conveniência dessa ordem para aqueles que atuam nos seus limites. Contudo, os custos começam a recomendar uma revisão e o desmonte de certas posições.


Evidências recentes

O estado brasileiro, em três âmbitos federativos – abstraindo-se o artificialismo municipalista – apropria-se, mediante cobrança de tributos, de trinta e oito por cento da riqueza produzida, em números aproximados e válidos para esta metade do ano de 2007. O valor é altíssimo para o retorno apresentado, o que tem evidenciado a deformação e demandado reparos.

No Brasil, os problemas necessitam chegar a níveis muito próximos do insuportável para prenunciarem mudanças contra o pacto de cumplicidade dos estratos dominantes da burocracia pública, da burocracia privada e dos detentores de capitais. Parece que a estrutura tributária está gerando problemas nesse nível, ainda que não se fale propriamente em valores. Basta vermos a enorme complicação que significam as obrigações tributárias acessórias, consistentes em manutenção de registros contábeis em tal ou qual formato e na prestação de informações aos diversos fiscos.

A percepção do problema faz-se, mais frequentemente, a partir do critério da proporcionalidade entre o que se cobra e aquilo que o estado presta em serviços à população. Hoje, é lugar-comum de revista semanal dizer-se que apropriações tributárias da ordem de certos países europeus com retornos próprios de países africanos sub-saarianos é um absurdo. Claro que é.

Há outra desproporção dentro daquela acima apontada. Os mais pobres pagam mais, sobre o consumo. E recebem menos, ainda que se considere que são os únicos a utilizarem a maioria dos mal-prestados serviços públicos. Do montante arrecadado, uma parte vai aos que mais pagaram proporcionalmente, por meio de péssimos serviços, outra parte vai para uma minoria, mediante remunerações várias.

A chave para a compreensão das raízes de tal sistema é a auto-referência histórica das camadas detentoras de poder no país. Toda e qualquer atuação é auto-referente e, quando a referência não é diretamente a si, dirige-se ao grupo. Nunca, ao conjunto total. Nem idealismo, nem inteligência de promover descompressão social, conduziram as classes dominantes ao pensamento amplo e público.


Auto-referência e migalhas

Certos grupos sempre apropriam-se mais da riqueza produzida. Empenham mais fatores econômicos na produção, ou entram com fatores mais escassos e, por isso mesmo, mais bem remunerados. Geralmente, o fator mais escasso é o capital e mostra-se perfeitamente conforme à teoria econômica que esse fator seja o mais caro, principalmente em países periféricos.

No Brasil não ocorre diferentemente senão em dois aspectos deformantes do modelo superficialmente apontado acima. Os detentores do capital encontraram menos resistências à implementação e manutenção de uma ordem de poucas limitações, por um lado. De outro lado, a pouca resistência originou-se em camadas médias altas que se acomodaram em posições burocráticas estatais e tiveram seu preço por bem pago.

Não há histórico de fortes resistências populares organizadas, no sentido de se balizarem as operações privadas segundo interesses mais amplos. Formataram-se órgãos e regulações de mera aparência, de nítida conotação farsesca.

A elaboração de ordens jurídicas positivas incoerentes internamente, em linguagem bastante própria, tendentes à ineficácia, viabilizando múltiplas e conflitantes interpretações é o mecanismo que têm as burocracias de se justificarem. Não se demonizam aqui as burocracias, nem se endeusam os possuidores de dinheiros privados. Os últimos são personagens da encenação e consentem que os primeiros vendam as soluções das complicações que criam.

Dito de forma crua e vulgar, sem legislações e práticas ambíguas e redundantes não haveria tantos postos a serem ocupados por juízes, procuradores públicos, promotores, funcionários de justiça, de ministério público, de órgão administrativos, de conselhos de julgamento, de tribunais de contas. Não haveria, tampouco, tantos problemas a se resolverem mediante advogados e outros tipos mais informais de solicitadores.

Convém advertir que não se faz aqui discurso contra serviços e servidores públicos, senão contra o formato de existência desse serviço, cujos objetivos reais são nitidamente auto-referentes. Visam, em última análise, à justificação de vários grupos interessados em posições, maiores ou menores, no estado. Foi a solução de redução de atritos entre as classes altas e médias, implantada com bastante sucesso no país e de pouca flexibilidade.

A falácia da burocracia meritocrática juntou-se como argumento de defesa de uma plêiade de atores que eventualmente se vêem obrigados a justificativas mais enfáticas. Contudo, o próprio conceito de meritocracia desmorona em ambiente de tamanha concentração no fornecimento de educação formal.


Subversão do liberalismo e do estado

Parece-me que efetivamente reunimos o pior do liberalismo e o pior do dirigismo estatal, como muitos autores já disseram em linhas mais bem traçadas. O assunto não se esgota, contudo, e pode ser visto sob vários aspectos, sendo o sistema tributário um deles.

Tributação é manifestação evidente de poder estatal, em relações marcadas pelo unilateralismo. A vontade do devedor é irrelevante no surgimento do crédito tributário, sujeito apenas à ocorrência de uma situação típica prevista legalmente. Nesse ponto, assemelha-se muito ao modelo de adequação típica que é a nota característica do direito penal.

Considerando-se a invasão patrimonial evidente, reserva-se a instituição de tributos ao poder representativo da vontade popular soberana, ou seja, ao parlamento. Supõe-se que uma democracia representativa terá comandos gerais e abstratos gerados no órgão legislativo eleito. Surge a necessidade de se balancearem as necessidades de ingressos financeiros originários do poder soberano com as disponibilidades das pessoas naturais e jurídicas e ainda com a finalidade do dispêndio público.

O equacionamento das três variáveis acima referidas é muito complexo e os equilíbrios às vezes obtidos muito precários. Não se pagam tributos de boa vontade, nunca se acham as prestações estatais suficientes e o estado nunca crê arrecadar o bastante. O poder de tributar, assim como o poder de privar de liberdade, são, pois, as máximas violências que o estado pode realizar. Portanto, regular bem tais invasões nas esferas privadas é indicativo de altos níveis de evolução civilizatória e de conformação do estado.

O estado, ainda que não seja o modelo de paraíso terrestre hegeliano, parece inevitável, pois o poder precisa organizar-se. A história, com efeito, tem dado muitos exemplos de que o poder – sempre existente de fato – gera menos danos à coletividade à medida que se exerce mais organizadamente, segundo regras conhecidas. Daí o estado, forma de uniformizar vontades e impô-las a todo um grupo.

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Numa escala evolutiva, foram-se aperfeiçoando os mecanismos de autocontrole estatal e surgindo normas limitadoras. O constitucionalismo insere-se nessa perspectiva como um marco de estabelecimento de limites ao poder estatal. Passa-se a falar em ilimitado poder soberano, mas limitado poder estatal, submetendo uma esfera à outra, em obediência a uma visão oitocentista. A noção parte do pressuposto de que o poder soberano é do povo e antecede ao estado, que seria resultante de uma espécie de acordo de vontades.

Firmados os pressupostos, obviamente chega-se à possibilidade e, mais que isso, à necessidade de imposição de balizas a serem obedecias pelo próprio estado, atuando na feitura de regras e na sua execução. A constituição é o marco de auto limitação por excelência. Sua desvantagem é que, uma vez superado o marco, faz-se necessário um rompimento mais radical da ordem estabelecida.

O Brasil fixou, na última constituição, limites ao poder de tributar. Sucede que as limitações operam em plano eminentemente formal, exceto talvez, pela vedação ao confisco. Essa é a proibição mais mais difícil de quantificar e, ao mesmo tempo, a mais importante. Tem relação direta com a essência da tributação, na medida em que fronteira entre exigências legítimas e expropriação ilegítima é difícil de estabelecer. Com efeito, somente se comparam e se confundem coisas assemelhadas em algum ponto.

Não há propriamente critérios objetivos para aferição de confisco tributário, mas a falta das balizas tampouco pode ser compreendida como ineficácia da vedação. A cláusula é aberta, porém não se destina à inutilidade. Conforme dito anteriormente, a impossibilidade de se equacionarem as três variáveis em jogo, a necessidade, a disponibilidade e a finalidade dos ingressos tributários pode ser indício da ocorrência de confisco.

Mais que uma violação a limitação constitucional de instituir tributo, o confisco seria uma violação de mandato conferido aos parlamentares e, consequentemente, uma agressão ao modelo democrático representativo. O parlamento estaria traindo a outorga de representação soberana, agindo no sentido de instituir exigência confiscatória. Não parece ser a situação atual no Brasil, embora afigure-se possível sua configuração em futuro breve.

A carga tributária brasileira não é exorbitante em termos absolutos, assumindo-se aqui o valor de trinta e oito por cento sobre o produto interno bruto. Há países que têm incidências tributárias maiores, com retornos em serviços também maiores. Contudo, a diferença mais notável entre o Brasil e países mais desenvolvidos, de cargas tributárias semelhantes, é a complexidade legislativa.

Seria plenamente possível a manutenção do nível atual de ingressos tributários com uma sensível redução da complexidade da legislação e das obrigações acessórias impostas aos contribuintes. A complexidade encontra-se, basicamente, na má-redação pura e simples, na superposição normativa, na redundância e enorme abundância de disposições infralegais.

A superação dos defeitos apontados não é atividade de cunho místico, reservada a iniciados. O direito comparado fornece os exemplos, bons e ruins, a serem seguidos, com as adaptações pertinentes às peculiaridades. O caso é que o Brasil cultiva uma tradição de plagiar aquilo que encontra de pior nas experiências extrangeiras, assumindo enorme pudicícia em incorporar as melhores partes.

Contudo, conviria indagar-se se os interesses na simplificação encontram-se mais bem suportados que os interesses no modelo atual de confusão legislativa. Não se trata de supor um complô de má-fé generalizada, mas de assumir a evidência de que a complicação geradora de demandas interessa a muitos integrantes dos grupos dominantes. Ao mesmo tempo, ainda não se chegou ao total estrangulamento da iniciativa empresarial e, então, a situação segue inalterada.


Algumas conclusões

O debate sobre ingressos e despesas públicas deve-se ampliar, ainda que lentamente. As partes mais bem informadas da população brasileira hesitam em desencadear ou participar da discussão, talvez porque ainda vejam a situação como vantajosa, ou qualquer mudança como muito traumática. Mas, as classes intermediárias vêem-se cada vez mais levadas a crer que há possibilidades de se aperfeiçoar o sistema, sem riscos grandes de perdas.

Os critérios de necessidade dos ingressos, de possibilidade de pagamento dos contribuintes e de finalidade dos recursos devem ser pesados levando-se em conta, quanto a este último, que finalidade pública não é algo restrito. A restrição ou deficiência do serviço custeado com as receitas tributárias implica desequilíbrio que torna todo o discurso formal de legitimação uma farsa.

Para muitos, a carga tributária brasileira beira o efeito confiscatório puro e simples, seja por excesso flagrante de alíquota ou base de cálculo, seja por considerações mais elaboradas de ausência de qualquer retributividade estatal.

O assunto deve, enfim, ser tratado sob a ótica de manutenção do estado constitucionalmente limitado e da representação parlamentar legítima da soberania popular.

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Sobre o autor
Andrei Lapa de Barros Correia

procurador federal em Campina Grande (PB), lotado no órgão de arrecadação da Procuradoria Geral da Fazenda

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORREIA, Andrei Lapa Barros. O caos tributário brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1485, 26 jul. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10201. Acesso em: 22 dez. 2024.

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