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A irredutibilidade remuneratória como garantia fundamental coletiva

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A irredutibilidade remuneratória instituída no art. 37, XV, da Carta Constitucional é direito ou garantia? Trata-se de direito ou garantia individual ou de garantia ou direito coletivo da categoria?

Sumário:1. Introdução. 2. Bens, direitos e garantias. 3. Irredutibilidade remuneratória: direito ou garantia? 4. A natureza coletiva da garantia de irredutibilidade remuneratória. 5. A natureza fundamental da garantia de irredutibilidade remuneratória. 6. Conclusão. 7. Bibliografia.


1. Introdução

O objeto do presente estudo é examinar a estrutura e a natureza da irredutibilidade remuneratória, que compreende vencimentos e subsídios, assegurada no art. 37, XV, da Constituição da República. A finalidade principal desse exame é esclarecer a abrangência subjetiva dessa norma, bem como as conseqüências que eventual ofensa à proibição constitucional de redução de remuneração produz na categoria de servidores ou agentes políticos, como um todo.

Buscaremos, no decorrer do estudo, solucionar as seguintes questões: (i) a irredutibilidade remuneratória instituída no art. 37, XV, da Carta Constitucional é direito ou garantia? (ii) Trata-se de direito ou garantia individual ou de garantia ou direito coletivo da categoria? (iii) O direito ou garantia em questão é direito ou garantia fundamental?

São essas questões que enfrentaremos a seguir, de cujas respostas dependerá a aferição das conseqüências de eventual ofensa à regra constitucional que assegura a irredutibilidade de vencimentos e subsídios.


2. Bens, direitos e garantias

A distinção entre direitos e garantias, segundo José Afonso da Silva [01], foi mais perfeitamente desenvolvida na doutrina brasileira por Rui Barbosa, o qual firmou a seguinte distinção: direitos traduzem-se em normas – "declarações" – que tutelam interesses e bens da pessoa, enquanto que garantias são disposições que asseguram o respeito a esses direitos.

Com base nessa distinção e com apoio no texto constitucionalmente positivado em nossa ordenação jurídica, observamos a existência de três elementos normativos distintos: bens, direitos e garantias. Bens, para efeito dessa distinção constitucional, são interesses e valores que buscam ser tutelados pelo Estado Constitucional. Direitos são preceitos de tutela dos bens. Garantias são instrumentos que asseguram a efetividade prática e jurídica dos direitos.

Dos bens tutelados juridicamente, alguns foram acolhidos pela Constituição como bens fundamentais. São bens tutelados com primazia pelo Estado Constitucional e que também representam opções valorativas que dão plasticidade a toda a ordem constitucional. Os bens fundamentais podem ser encontrados no caput do art. 5º da Lei Maior; são eles: vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade. Esses bens devem ser entendidos em sentido amplíssimo, incorporando todos os bens que circundam sua esfera. Assim, por exemplo, a vida engloba a integridade física e mental, bem como a incolumidade do meio ambiente; a liberdade engloba a intimidade e a livre iniciativa; a propriedade engloba a chamada propriedade intelectual. Além desses bens expressos no art. 5º, devem ser considerados fundamentais todos os bens que derivam diretamente da dignidade humana, que é fundamento de nossa República (art. 1º, III, CRFB). Logo, e.g., a honra também deve ser tomada por bem fundamental.

Direitos fundamentais, por sua vez, são direitos que tutelam diretamente bens fundamentais. Vale dizer, em cada direito fundamental é possível reconhecer um bem fundamental. Às vezes, essa relação é óbvia e tautológica, como o direito fundamental à vida, a que corresponde o bem fundamental vida. Noutros casos, esse elo é menos evidente, como no caso do direito à autonomia associativa (art. 5º, XVII), que tutela o bem fundamental liberdade.

As garantias fundamentais, por fim, asseguram o respeito aos direitos fundamentais. Citamos aqui alguns exemplos elencados por Afonso da Silva: o direito fundamental à liberdade de pensamento é garantido pelo chamado "direito de resposta" (o qual, nessa classificação, não é exatamente direito, mas sim garantia); o direito fundamental à intimidade é garantido pela inviolabilidade do lar; o direito fundamental de livre locomoção é garantido pela previsão do habeas corpus [02]. Com bem anota o constitucionalista em questão, a garantia é muitas vezes confundida com o direito em si [03], havendo casos em que não se sabe se está diante duma espécie ou doutra. Citamos nós o caso do direito ou garantia de greve, em que a doutrina diverge quanto a se tratar de direito ou garantia social. Essa dificuldade surge quando não se vislumbra claramente se a posição jurídica em exame tutela diretamente um bem jurídico ou se esta tutela é mediata, de segundo grau; vale dizer, se a tutela é diretamente do próprio bem ou do direito que tutela esse bem. Num caso, temos o direito; noutro, a garantia. O mesmo problema de raciocínio também surge no momento de distinguir o bem do próprio direito que o tutela (exemplo já dado aqui: vida e direito à vida).

A garantia, em geral, além de tutelar um ou mais direitos em especial, também acaba funcionando como uma tutela direta do bem fundamental segurança, traduzindo-se em desdobramento do direito de segurança em sentido amplo, assim entendido como o direito que tem a pessoa "de gozar de seus direitos livre de ameaças e contestações" [04]. Por "ameaças e contestações", entenda-se também incertezas e surpresas. Acrescente-se, ainda, o conceito dado por Ingo Wolfgang Sarlet, que identifica segurança em sentido jurídico como "um atributo inerente a todos os titulares de direitos fundamentais, a significar, em linhas gerais, a efetiva proteção dos direitos fundamentais contra qualquer modo de intervenção ilegítimo por parte de detentores do poder, quer se trate de uma manifestação jurídica ou fática do exercício do poder" [05]. Enfim, a garantia fundamental sempre representa uma relação estreita entre a segurança e outro direito fundamental.

A distinção entre bens, direitos e garantias não é de interesse meramente acadêmico. A análise dessa tricotomia possui duas utilidades: (i) identificar a estrutura da norma e da relação jurídica, alcançando a natureza do que se está a analisar; (ii) perceber que o direito só existe em concreto, em sentido subjetivo, se existir o bem, e que a garantia só existe em concreto, em sentido subjetivo, se existir o direito. Essa segunda utilidade é mais importante em termos práticos e significa que o direito desaparece se desaparecer o bem e a garantia desaparece se desaparecer o direito.

É relevante também destacar que os bens, direitos e garantias fundamentais têm uma dimensão objetiva e outra subjetiva. Em sua dimensão subjetiva, bem jurídico fundamental é o que concretamente integra a esfera jurídica da pessoa, direito fundamental é a pretensão ou faculdade de que dispõe em concreto a pessoa e garantia fundamental é o instrumento – poder ou imunidade – à disposição da pessoa a fim de que defenda o respeito a seus direitos. Perceba-se que, em sentido subjetivo, os direitos e garantias representam relações jurídicas concretas. Em sentido objetivo, bens, direitos e garantias assumem não mais a feição de relação jurídica, senão de normas jurídicas abstratas que impõe o respeito a determinados valores constitucionalmente acolhidos. É o que muito se chama de "efeito irradiante dos direitos fundamentais". Essa "perspectiva jurídico-objetiva dos direitos fundamentais" significa, na doutrina de Sarlet, que "os direitos fundamentais não se limitam à função precípua de serem direitos subjetivos de defesa do indivíduo contra atos do Poder Público, mas que, além disso, constituem decisões valorativas de natureza jurídico-objetiva da Constituição, com eficácia em todo o ordenamento jurídico e que fornecem diretrizes para os órgãos legislativos, judiciários e executivos" [06].

Em realidade, a verdadeira dimensão objetiva dos direitos e garantias fundamentais arrima-se nos bens fundamentais que eles acolhem. Estes sim, os bens fundamentais, denotam a opção fundamental do Estado Constitucional. Os direitos e garantias fundamentais, porém, demonstram a forma especial como o Poder Constituinte almejou proteger os bens fundamentais. Essa forma especial, por sua vez, revela os meios adequados pelos quais deve ser efetivada a tutela dos bens fundamentais, meios estes que corroboram na formação da arquitetura constitucional.

A distinção aqui feita entre bens, direitos e garantias destina-se a buscar a essência e a estrutura da irredutibilidade remuneratória que favorece os servidores públicos e os agentes políticos em geral, alcançando-se sua razão de ser e sua finalidade, a fim de responder às indagações feitas na introdução deste estudo.


3. Irredutibilidade remuneratória: direito ou garantia?

A irredutibilidade remuneratória não é um bem em si mesmo; é instrumento. Assim, pode-se intuir que se está diante dum direito ou duma garantia. É possível cogitar dum direito, cujo bem protegido seria a propriedade – interesse patrimonial – dos servidores públicos ou agentes políticos. Contudo, não é essa nossa conclusão. Deveras, cremos ser a irredutibilidade remuneratória uma garantia, a qual tutela um direito específico: o direito de "segurança administrativa" (segurança na Administração Pública). Por esta expressão, entenda-se o desempenho de funções na Administração dentro de regramento previsível, de modo estável e equilibrado, livre de pressões. Esse direito, por sua vez, é uma das formas de tutela do bem jurídico segurança.

O Estado de Direito finca-se em dois pontos basilares: a isonomia e a segurança. Ambos bens devem ser observados internamente (no âmbito interior da Administração) e externamente (na relação entre Administração e administrado).

A isonomia, sob o ponto de vista interno, traduz-se na igualdade de acesso aos órgãos da Administração. Assim o direito ao livre e igual acesso aos cargos públicos, por meio de concurso público, é o maior exemplo da isonomia "dentro" da Administração. Eis o direito de igual participação da Administração. No Estado Democrático de Direito, ao lado desse direito de igual participação da Administração, existe o direito de igual participação no governo do Estado, que exprime o direito ao ingresso, em igualdade de condições com os demais cidadãos, nos órgãos que exercem atividade típica de governo, vale dizer, que exercem funções típicas de Poder. Trata-se do direito de acesso aos cargos políticos do Poder Executivo, do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e do Ministério Público. Trata-se de direitos inseridos no âmbito dos direitos políticos (direito de participação no governo do Estado, na definição de Pimenta Bueno [07]). Já sob o ponto de vista externo, a isonomia significa que o Estado não poderá tratar distintamente administrados que se encontram em situação idêntica. Exemplo típico dessa isonomia externa é a garantia de licitação para a contratação de obras e serviços pelo Poder Público.

A segurança, sob o ponto de vista externo da Administração Pública, manifesta-se na necessidade desta relacionar-se estavelmente com os administrados, de modo previsível e com respeito à confiança destes. O exemplo mais típico dessa segurança "externa" é o próprio princípio da legalidade administrativa, segundo o qual a atuação da Administração que avance nas esferas jurídicas dos indivíduos depende de expressa previsão legal [08]. A essa legalidade estatal corresponde a legalidade geral do indivíduo ou ente privado, que não está obrigado a fazer ou deixar de fazer coisa alguma senão em virtude de lei. Já sob o ponto de vista interno (que, em especial, interessa ao nosso estudo), a segurança diz respeito à segurança administrativa, que deve se revelar nas relações entre Estado e agentes públicos, de modo que o serviço público seja desenvolvido de modo contínuo, estável, livre de riscos, ordenado e repetitivo (em sentido positivo).

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A segurança administrativa tanto pode ser examinada como um direito do Estado, como um direito da categoria de agentes públicos ou do servidor identificado em concreto. Como direito do Estado, a segurança administrativa é garantida pela previsão constitucional de limitação legal à greve dos agentes públicos (art. 37, VII, CRFB). Como direito também dos servidores, a segurança administrativa é tutelada pela garantia de estabilidade nos cargos públicos e pela irredutibilidade remuneratória.

Na Constituição passada (1967/1969), a irredutibilidade de vencimentos era prevista somente como garantia dos juízes (art. 108, III), e não dos funcionários públicos em geral. Atualmente, além de ser prevista como garantia dos juízes (art. 95, III), a irredutibilidade remuneratória também é garantida aos membros do Ministério Público (art. 128, § 5º, I, a) e aos servidores públicos em sentido amplo (art. 37, XV). No caso dos magistrados do Poder Judiciário e dos membros do Ministério Público, a doutrina costuma relacionar a presente garantia à proteção da dignidade e da independência desses agentes políticos [09]. Em verdade, essa independência funcional é corolária da segurança institucional, que diz respeito à segurança no desempenho das funções típicas desses órgãos políticos.

Perceba-se que a irredutibilidade remuneratória diz sempre respeito à segurança e à estabilidade. No caso dos juízes e membros do MP, defronta-se com a segurança institucional; no caso dos servidores públicos em sentido amplo, a segurança administrativa.

Em suma, conclui-se que a irredutibilidade remuneratória é garantia, atada ao direito de segurança administrativa, o qual tutela diretamente a segurança no seio das relações internas da Administração (segurança na burocracia estatal).


4. A natureza coletiva da garantia de irredutibilidade remuneratória

Este é o ponto nevrálgico de nosso estudo. A irredutibilidade de vencimentos ou subsídio é somente garantia individual do servidor público ou agente político, ou é também garantia coletiva da categoria de servidores ou agentes?

Para saber se estamos diante de garantia coletiva ou meramente individual, precisamos verificar se o bem e o direito tutelados são de interesse do indivíduo (servidor) ou da coletividade (categoria) como um todo. Assim, deve-se questionar se o direito de segurança administrativa interessa somente ao servidor concretamente identificado, e se a segurança aí protegida diz respeito só ao servidor, ou se também interessa à categoria como um todo.

A segurança administrativa, segundo nos parece, interessa, simultaneamente, ao agente como indivíduo, à categoria, ao Estado e à coletividade indeterminada de administrados como um todo. É que o funcionamento estável da burocracia administrativa interessa a todos eles. O servidor, podendo sofrer impacto em seu orçamento particular, acaba por desconectar a totalidade de suas energias no serviço público. Esse efeito negativo afeta diretamente a categoria de servidores, que sofre abalo interno, bem como o Estado, que passa a enfrentar um problema gerencial, como também os administrados, que sofrem impacto negativo na qualidade do serviço público prestado.

É preciso perceber que a redução de remuneração da categoria profissional pública tem efeito muito mais abrangente do que o mero desfalque no orçamento individual de cada agente. A manipulação negativa da verba remuneratória percebida pelos agentes públicos repercute nas próprias manifestações de vontade que estes formalizam enquanto agentes do Estado, como já atestava Hamilton, citado por Rui Barbosa: "In general course of human nature, a power over a man’s subsistence amounts to a power over his will" [10]. O próprio "Águia de Haia" professava que a ofensa à irredutibilidade de vencimentos poderia abalar a estrutura e as relações dos poderes constituídos [11].

A mesma garantia de irredutibilidade remuneratória de que aqui estamos tratando, porém no âmbito da magistratura, teve seu interesse supraindividual reconhecido pela Suprema Corte dos Estados Unidos, em julgamento realizado em 1980, em que funcionou como Relator o Chief Justice Warren Burger, conforme nos narra Geraldo Ataliba [12]. Segundo o saudoso jurista, "há de ter sido fundamento deste modo correto de ver o problema a idéia segundo a qual a irredutibilidade dos vencimentos da magistratura é um direito dos jurisdicionados, é uma prerrogativa do povo, que tem direito a que os exercentes das sagradas funções jurisdicionais independam absolutamente da ação e até mesmo da omissão dos Poderes Legislativo e Executivo. Tal conceito está não só no ideário de tripartição dos poderes e do Estado de Direito, como foi o próprio fundamento da inovadora disposição da Constituição da Filadélfia" [13]. Transportando a garantia da magistratura para a burocracia administrativa, podemos afirmar que a irredutibilidade remuneratória é não mais um "direito dos jurisdicionados", mas sim um garantia "dos administrados". Ainda assim, pode-se dizer tratar-se de uma "prerrogativa do povo", que decorre do mesmo ideário do Estado de Direito, porquanto tutela o bem jurídico fundamental segurança, seja sob a ótica dos administrados, seja sob a ótica do povo em geral, seja sob a ótica da categoria de agentes públicos, seja sob a ótica individual do agente.

Ainda citando o leading case acima mencionado, Ataliba informa-nos que a Corte americana, "(c)omo considerações secundárias, disse assegurar a evitação da renúncia de muitos juízes e a criação de atrativos a advogados capazes para a função, mantendo a qualidade da justiça distribuída ao povo" [14]. Essas mesmas homenagens podem ser prestadas aos agentes do Estado como um todo, substituindo-se no texto transcrito a expressão "qualidade da justiça distribuída ao povo" por "qualidade do serviço público distribuído ao povo".

O reconhecimento dessa profusão e difusão de interesses que embasa a garantia da irredutibilidade de vencimentos dos agentes públicos não tem como escopo negar que a garantia em questão também é, em sentido subjetivo, incorporada na teia de relações jurídicas do individuo. Nossa finalidade é aqui demonstrar que, ao lado dessa perspectiva individual, há também uma perspectiva coletiva da garantia e outra perspectiva difusa social. Antes mesmo do indivíduo, a garantia em questão interessa à categoria à qual pertence o servidor ou agente e à sociedade como um todo.

Interessa à categoria, em primeiro lugar, a irredutibilidade da remuneração prevista para seus cargos, para que sua carreira não perca dignidade e prestígio, não se desfaleça em decorrência da baixa remuneração e não passe a enfrentar patologias administrativas. Eis o verdadeiro interesse da segurança administrativa.

Ao servidor, enquanto pessoa, interessa a irredutibilidade antes mesmo como proteção de seu patrimônio – propriedade – do que como tutela de sua segurança na Administração, apesar de ser este último interesse também abarcado pela irredutibilidade. Assim, a irredutibilidade também ingressa em seu patrimônio pessoal, o que é inegável.

Sem embargo de ser também garantia individual do agente, a irredutibilidade remuneratória vincula-se, antes de tudo, à categoria – grupo, coletividade de servidores ou agentes. Prova disso é que o servidor estável, se voluntariamente opta por vagar um cargo público a fim de ingressar noutro inacumulável com o anterior, pode ter sua remuneração tranquilamente reduzida, não podendo se valer da garantia aqui apreciada, como recentemente decidiu o Supremo Tribunal Federal, por meio de sua Ministra Presidente, no julgamento da Reclamação 5.258/PI, ainda pendente de publicação.

Essa primazia do caráter metaindividual é confirmada pela análise geográfica da garantia da irredutibilidade remuneratória dos servidores públicos e agentes públicos no Texto Constitucional. Sabe-se que a irredutibilidade salarial é garantida aos trabalhadores em geral, em norma contida no art. 7º, VI, da Lei Magna. No art. 39, § 3º (Seção II do Capítulo VII, reservada aos servidores públicos), a Constituição enumera quais direitos dos trabalhadores em geral são extensíveis aos servidores públicos. Assim, se fosse intuito do Constituinte meramente garantir mais esse direito ao servidor individualmente identificado, bastaria que fizesse menção ao inciso VI do art. 7º no mencionado art. 39, § 3º. Porém, não o fez. Em vez disso, preferiu-se positivar a garantia no art. 37, XV (Seção I), isto é, em seção e artigo que tratam das normas gerais que interessam à Administração Pública como um todo. Essa opção aponta que a garantia em questão não diz respeito somente à pessoa do servidor, mas, principalmente, a toda a categoria, como um todo, e, reflexamente, à Administração Pública.

Demais disso, mesmo a irredutibilidade salarial, no âmbito do Direito Constitucional do Trabalho, possui feição coletiva. Tanto é assim que a garantia em questão pode ser negociada em convenção ou acordo coletivo (ressalva final do inciso VI do art. 7º da Carta Máxima). Repare-se: a garantia de irredutibilidade salarial, nas relações regidas pelas leis trabalhistas, pode ser objeto de disposição por meio de negociação coletiva, mas não por meio de negócio jurídico entre empregador e empregado. Percebe-se, assim, que, mesmo nas relações trabalhistas, o caráter coletivo prepondera sobre o individual. Com muito mais razão, nas relações públicas entre a Administração e seus agentes fixos (em que há maior quantidade de pretensões em jogo, interagindo interesses do Estado, dos agentes públicos, da categoria e dos administrados em geral, e não somente das partes na relação de trabalho), o caráter coletivo – e quiçá social – deve preponderar sobre a esfera individual.

Sem dúvida alguma, a irredutibilidade de vencimentos alcança imediatamente a categoria e mediatamente o servidor. O interesse aí envolvido é da espécie dos interesses coletivos em sentido estrito, assim entendidos como aqueles "transindividuais indivisíveis de um grupo determinado ou determinável de pessoas, reunidas por uma relação jurídica básica comum" [15]. O grupo de pessoas referido no conceito é a categoria de servidores; a relação jurídica básica é o próprio vínculo comum com a Administração Pública. A comunhão da relação básica determina a indivisibilidade do interesse, de tal forma que qualquer ação judicial que envolva esse interesse "deverá ser necessariamente resolvida de maneira uniforme para todo o grupo lesado" [16].

A natureza coletiva da irredutibilidade de vencimentos e subsídios vincula-se estreitamente a sua dimensão objetiva. A garantia em questão, em sua perspectiva objetiva, serve como verdadeiro limite ao legislador, de tal forma que sua desobediência determina a cominação de invalidade da lei, ainda que parcial, vale dizer, ainda que somente em relação ao intervalo remuneratório que representar diminuição da remuneração anterior. Nesse âmbito objetivo de atuação da garantia, o resultado alcançado será necessariamente abstrato e geral, características estas que identificam todo elemento componente do direito objetivo. Essa aplicação abstrata e geral é que permite a proteção da categoria de agentes – coletividade – como um todo.

Criamos um exemplo, tomando a irredutibilidade dos subsídios dos juízes, cuja lógica estrutural é a mesma. Cogite-se de uma lei que diminua os subsídios dos juízes dum Estado de R$ 20.000,00 para R$ 10.000,00. Essa lei deverá ser declarada inconstitucional. Se a garantia de irredutibilidade tivesse caráter meramente subjetivo, a lei nova não valeria para os juízes que já ganhavam os R$ 20.000,00, mas poderia ser aplicada para os juízes que ingressassem na carreira após esse diploma violador da Constituição. Dessa maneira, a partir da lei, alguns juízes ganhariam R$ 20.000,00, enquanto outros seriam remunerados com R$ 10.000,00. Vale dizer: a lei, embora inconstitucional, teria o condão de produzir, validamente, efeitos discriminatórios dentro da mesma carreira. Ora, se isso fosse permitido, a segurança institucional na magistratura restaria abalada, ofendendo a dignidade e independência de seus membros. Dois juízes do mesmo estrato da carreira teriam remunerações absolutamente destoantes. O prejuízo alcançaria a carreira como um todo, pois afetaria a relação entre os juízes apartados pela lei inconstitucional. Porém, sendo a lei objetivamente inconstitucional, no exemplo dado, a remuneração da carreira permaneceria sendo de R$ 20.000,00, independentemente de quando houvesse cada juiz ingressado na magistratura.

Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a irredutibilidade remuneratória deve ser observada em sua dimensão objetiva ainda quando não se vislumbra em concreto nenhuma ofensa a situações individualizadas. Nesse sentido, a Corte Excelsa, no julgamento da ADI/MC 2.238-DF, suspendeu a eficácia de norma contida no art. 23, §§ 1º e 2º, da LC 101/2001, que admite a redução dos valores atribuídos a cargos e funções a fim de adequar o total de despesas com pessoal aos limites estabelecidos nessa lei. Mesmo considerando que o mero advento dessa lei – a Lei de Responsabilidade Fiscal – não tinha o condão de reduzir em concreto o vencimento de servidor público algum, ainda assim o STF considerou inconstitucional a norma mencionada do diploma legal, por ofender, objetivamente, a norma constitucional que garante a irredutibilidade remuneratória. Isto é: nesse caso, afastou-se da dimensão subjetiva da irredutibilidade remuneratória para efetivar sua dimensão objetiva, em âmbito geral e abstrato.

O principal interesse em perceber o caráter objetivo e coletivo da garantia em questão, em vez de seu caráter meramente individual e subjetivo, é justamente observar que as lides coletivas que envolvem a irredutibilidade remuneratória devem alcançar a carreira como um todo, independentemente do ingresso anterior ou posterior, em relação à lei, do servidor ou agente na instituição. Embora possa o indivíduo litigar em juízo em busca de seu direito individual, se um ente com representatividade coletiva (p. ex., um sindicato ou uma associação) ingressa em juízo para atacar o ato normativo inconstitucional, a decisão daí advinda deve abarcar toda a categoria que se encontra em comunhão na relação jurídica básica. Essa é uma exigência não só da legislação processual infraconstitucional, mas também da própria estrutura e natureza da garantia defendida em juízo. A natureza coletiva da garantia impõe a eficácia coletiva da decisão que lhe faça referência, desde que a jurisdição tenha sido inaugurada por ente com legitimidade adequada. À unidade de interesse deve corresponder a unidade decisória.

A imposição de unidade de solução decorre também do imperativo isonômico, o qual, como já dissemos atrás, também se vincula estreitamente com a noção de Estado de Direito. É pressuposto do tratamento isonômico externo do Estado (na relação entre Administração e administrado) o tratamento isonômico interno (na relação entre Administração e seus agentes). Em dizer simples: se o Estado não é isonômico nem com seus agentes, como poderá sê-lo com os súditos? Se não se faz justiça internamente, como poderá ser o Estado justo externamente?

Soluções apartadas no que tange à remuneração acabaria por criar subclasses privilegiadas e outras desprivilegiadas numa mesma categoria, o que é abjeto num Estado de Direito. É o que leciona J. J. Gomes Canotilho: "Se os códigos civis (a começar no Código de Napoleão de 1807, que influenciou o nosso Código Civil de 1867, também chamado de ‘Código de Seabra’) afirmavam o princípio da igualdade nas relações jurídicas civis, também a legislação administrativa (embora não-codificada) deveria erguer-se sobre um modelo de relações jurídico-funcionais assente na <igualdade do sujeito de direito>. Em termos práticos, isto significa que o exercício de cargos e funções públicas não poderia radicar em condições particularísticas de privilégios" [17].

Enfim, a garantia de irredutibilidade remuneratória é garantia coletiva e, como tal, alcança toda a categoria de agentes, o que demanda a unidade de solução judicial das questões que envolvem o desrespeito a essa garantia/norma.

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Sobre o autor
Anselmo Henrique Cordeiro Lopes

Procurador da República. Mestre e Doutor (cum laude) em Direito Constitucional pela Universidad de Sevilla. Ex-Procurador da Fazenda Nacional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, Anselmo Henrique Cordeiro. A irredutibilidade remuneratória como garantia fundamental coletiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1486, 27 jul. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10202. Acesso em: 19 abr. 2024.

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