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A não recepção do instituto da reincidência pela Constituição Federal de 1988

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31/07/2007 às 00:00
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IV – DA NÃO RECEPÇÃO DA REINCIDÊNCIA PELA CARTA MAGNA. OFENSA AOS PRINCÍPIOS DO NON BIS IN IDEM, ISONOMIA E CULPABILIDADE.

Com o advento da Carta Magna de 1988, faz-se necessário analisar a adequação ou compatibilização das normas infraconstitucionais com as regras e princípios hierarquicamente superiores (normas constitucionais), e não sendo possível essa adequação, tem-se que aquelas não foram recepcionadas pela Constituição.

Dessa forma, interpretando conforme a Constituição o artigo 63 do Código Penal, conclui-se que o instituto da reincidência não se compatibiliza com alguns dos princípios constitucionais fundamentais, tais como o princípio da culpabilidade, do non bis in idem e da isonomia.

E a doutrina nacional, na voz autorizada de Fauzi Hassan Choukr, já advertiu: "O direito brasileiro impossibilita a dupla persecução pelo mesmo fato criminoso. Tal previsão não está expressamente prevista na Constituição Federal, mas pode ser dela extraída tanto do seu artigo 5º, § 1º, como da Convenção Interamericana (Pacto de San Jose da Costa Rica)." [28]

A reincidência viola o princípio da culpabilidade porque sanciona mais gravemente a quem é menos culpável. Esta teoria defende que o fracasso da pena anterior atribuída ao agente significa menos a sua culpabilidade, vez que o agente, por ter estado mais tempo no cárcere, está também mais deteriorizado pela segregação marginalizante a que foi submetido. Considerá-lo reincidente "afrontaria o princípio da culpabilidade, por estabelecer-se sobre uma pessoa cuja imputabilidade está diminuída por obra do próprio Estado". [29]

Segundo a lição de Boschi:

"O aumento de pena pela reincidência vem sendo intensamente contestado. Argumenta-se, primeiro, que a prática de nova infração pelo mesmo réu decorre menos de sua predisposição de não atender às recomendações da pena e mais da falta de assistência ao deixar a penitenciária. Os presos, em razão do estigma, dificilmente conseguem restabelecer seus vínculos sociais e recolocarem-se no mercado de trabalho. É nessa direção a proposta de consideração da co-culpabilidade como fator de influência na dosimetria da pena, examinada no capítulo anterior". [30]

E, por fim, conclui o mesmo autor:

"A primeira orientação [inconstitucionalidade da reincidência] é, sem dúvida, consentânea com o princípio que proíbe a dupla valoração da mesma circunstância. É, também, a que melhor reflete a tese de que a reincidência não pode ser sempre e necessariamente justificada como imperiosa punição ao condenado que, por má formação, desvio de conduta, tendência ao crime, insiste em continuar violando a lei, como tradicionalmente se afirma, mas, isto sim, pode e deve ser compreendida, também, como a expressão final do processo perverso de estigmatização do homem pela prisão e da absoluta falta de políticas oficiais de amparo ao egresso, criadoras de novas oportunidades para a harmônica reintegração ao mundo livre pelo trabalho, pela edificação da moradia, pela reconstrução da família." [31]

A reincidência também viola, sob outra perspectiva, o princípio do non bis in idem, ou seja, o princípio de que ninguém pode ser punido duas vezes pelo mesmo fato. Se questiona a reincidência na medida em que se traduz uma maior gravidade da pena do segundo delito, posto que essa maior gravidade é resultado de um delito anterior, já julgado em definitivo, pois a condenação anterior, pressuposto da reincidência, é a conseqüência do delito anterior. [32]

Assim, a reincidência realizaria um "duplo jogo de penas" [33]: primeiro castiga-se o autor pelo delito cometido, logo este delito vale para que na 2ª ou 3ª condenação se aplique outra pena mais grave. Este argumento não é novo, já tendo sido proposto, no século XIX, por Gesterling.

Na doutrina, posicionam-se a favor da abolição da reincidência do ordenamento jurídico pátrio, por violação ao princípio do non bis in idem, Alberto Silva Franco, que ressalta que "o princípio da legalidade não admite, em caso algum, a imposição de pena superior ou distinta da prevista e assinalada para o crime e que a agravação da punição, pela reincidência, faz, `no fundo, com que o delito anterior surta efeitos jurídicos duas vezes´". [34]

O jurista italiano Ferrajoli igualmente questiona a constitucionalidade da reincidência, in verbis:

"A condição de reincidente (o pré-julgado) [...], foi severamente criticado por muitos escritores renomados que com razão rechaçaram, por respeito ao princípio da retribuição, em considerá-la como um motivo de agravamento da pena. A pena, escreve Pagano, cancela e extingue integralmente o delito, e o condenado que já a sofreu se transforma em inocente [...]. Portanto, não se pode incomodar o cidadão por aquele delito cuja pena já foi cumprida. E Morelly chega inclusive a pedir que se castigue a quem ousar recordar publicamente as penas sofridas no passado por alguém por causa delitos precedentes". [35]

Na doutrina estrangeira, Muñoz Conde ensina que:

"(...) a reincidência não passa de `pena tarifada´ por ensejar pena sem culpabilidade e por fato diverso. Desse modo, afronta ao princípio do ne bis in idem, sendo evidência da opção legislativa pela culpabilidade de caráter (ou pelos fatos da vida), em detrimento da culpabilidade pelo fato do agente, em que se sustenta o moderno direito penal da culpa". [36]

Nesse diapasão é a posição de Zaffaroni e Pierangeli, para os quais a agravação da pena pela reincidência é incompatível com os princípios de um direito penal de garantias e a sua constitucionalidade é duvidosa.

Esses autores asseveram que:

"Nada mais sendo do que uma nova reprovação ao delito anterior, a aplicação do plus de gravidade da pena (seja em sua quantidade, seja na forma de seu cumprimento), decorrente do reconhecimento a reincidência, constitui intolerável afastamento de princípios e regras constitucionais, devendo, assim, ser rechaçado numa nova atuação de Justiça Criminal, pautada por um exercício de poder que faça do exercício da função judiciária um instrumento de limitação, controle e redução da violência punitiva". [37]

Ademais, para Maia Neto:

"O instituto da reincidência é polêmico e incompatível com os princípios reitores do direito penal democrático e humanitário, uma vez que a reincidência na forma de agravante criminal configura um plus para a condenação anterior já transitada em julgado. Quando o juiz agrava a pena não sentença posterior, está, em verdade, aumentando o quantum da pena do delito anterior, e não elevando a pena do segundo crime". [38]

Destarte, a agravação da pena pela reincidência, consoante o próprio autor, constitui-se em violação ao princípio do non bis in idem.

Ao cumprir a pena, o indivíduo satisfez a sanção estatal estabelecida. O agravamento pela reincidência implica em penalizar outra vez o mesmo delito (o primeiro), com a projeção de uma pena, já cumprida, sobre outra, em total desacordo com os princípios adotados em nossa Constituição Federal.

Com o agravamento da pena pela reincidência pune-se o autor do delito e não o fato típico por este cometido, projetando-se no futuro as conseqüências de um ato já perfeitamente concretizado.

Por fim, a reincidência viola o princípio da isonomia, pois ao se proibir, e.g., a concessão de liberdade condicional aos reincidentes, há a consagração de uma desigualdade de tratamento entre aqueles que a lei classifica como reincidentes e os que carecem dessa condição.

Trata-se, na realidade, de emprestar ao indivíduo, por determinado período de tempo, um estigma, que o acompanhará e sobre ele incidirá, no caso da prática de outro fato delituoso. É a forma objetiva de desintegração social, que descumpre a finalidade oficial da pena, qual seja, a ressocialização, eis que o reincidente é indivíduo rotulado, pertencente a um grupo especial de pessoas, diferente dos demais.

Na legislação estrangeira, é importante fazer um comparativo com o instituto da reincidência nos Códigos Penais Alemão e Colombiano. Naquele, as condenações anteriores do réu só podem ser consideradas como agravantes dentro de uma escala penal, e à medida que são relevantes, não mais permite a modificação da escala. A reincidência, na Alemanha, tem efeito somente em relação ao estabelecimento prisional à modalidade de execução da pena, com fulcro numa maior periculosidade do agente. [39] Já na Colômbia, o instituto da reincidência foi abolido de ordenamento jurídico. [40]

Na jurisprudência, tem-se decisões paradigmas negadoras da aplicação da reincidência, expressis:

"TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. A reincidência, além de agravar a pena do novo delito, constitui-se em fator obstaculizante de uma série de benefícios legais, tais como a suspensão condicional da pena, o alongamento do prazo para o deferimento da liberdade condicional, a concessão do privilégio do furto de pequeno valor, só para citar alguns. Esse duplo gravame da reincidência é antigarantista, sendo, à evidência, incompatível com o Estado Democrático de Direito [...]" [41][sem grifo no original].

"TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. EMBARGOS INFRINGENTES. AGRAVAÇÃO DA PENA PELA REINCIDÊNCIA. A agravação obrigatória da pena pela reincidência, caracteriza bis in idem. Um mesmo fato não pode ser tomado em consideração duplamente porque possibilita uma inadmissível reiteração no exercício do jus puniendi do Estado. Embargos acolhidos para que prevaleça o voto minoritário que afasta o acréscimo da pena pela reincidência. Predominância dos votos mais favoráveis em razão do empate" [42] [sem grifo no original].

"SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RESP – Penal – Processual – Agravante – Reincidência – Prova – Certidão de Trânsito em Julgado. A reincidência está incluída no rol das circunstâncias agravantes [...]. Ademais, o instituto da reincidência não se esgota, porém, em dado meramente cronológico: crime praticado depois de condenação por crime anterior, com trânsito em julgado. Impõe-se, além disso, examinar se a repetição do agente evidencia tendência genérica, ou específica para a criminalidade, aferindo, assim, a personalidade do autor". [43] [sem grifo no original]

Portanto, a caracterização da reincidência em desfavor do acusado enseja evidente violação aos princípios do non bis in idem, da isonomia e da culpabilidade, valores vigentes em todo e qualquer Estado (que afirme ser) Democrático de Direito.


VI - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOSCHI, José Antônio Paganella. Das Penas e seus Critérios de Aplicação. 2 ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.

CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da Pena e Garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.

FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Teoría del garantismo penal. 4ª ed. Trotta: Madrid, 2001.

FRANCO, Alberto Silva. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. 5. ed. São Paulo: RT, 2001.

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GARCIA, Luiz M. Reincidencia y punibilidad: aspectos constitucionales y dogmática penal desde la teoría de la pena. Buenos Aires: Astrea, 1985.

JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal – Parte Geral. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. Tradução de: João Baptista Machado. Coimbra: Coimbra, 1984.

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 13. ed. São Paulo: Atlas, 1998.

NETO, Cláudio Furtado Maia. Direitos Humanos do Preso. Porto Alegre: Fabris, 1998.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. 2 ed. São Paulo: RT, 1999.


Notas

01 KELSEN, H. Teoria pura do direito. 6.ed. Tradução de: João Baptista Machado. Coimbra: Coimbra, 1984.

02 JESUS, Damásio E. Direito Penal – Parte geral. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 554.

03 Apud SÁ, José Sinval. Aspectos jurídicos da reincidência. 1981. 51 f. Dissertação de Mestrado em Direito e Estado. Faculdade de Direito. Universidade de Brasília. Brasília. Recomenda-se a leitura deste notável trabalho, fruto da tese de mestrado do autor na Universidade de Brasília, aprovado com louvor pela banca examinadora.

04 SÁ, José Sinval. Op. cit., p. 53.

05 Idem, p. 66.

06 Idem, p. 67.

07 Idem, p. 54.

08 Idem, p. 68.

09 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. 3 ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 426.

10 Ibidem.

11 MIRABETE. Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal – Parte Geral, v.1. 8. ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 289.

12 Apud SÁ, José Sinval. Op. cit., p. 07.

13 SÁ, José Sinval. Op. cit..p. 09.

14 Idem, p. 10

15 Ibidem.

16 Idem, p. 18.

17 Idem, p. 19.

18 NORONHA, Magalhães., CERNICCHIARO, Luiz Vicente., FRAGOSO, Heleno., BRUNO, Aníbal. É a doutrina majoritária no Brasil e no mundo.

19 HUNGRIA, Nélson e GARCIA, Basileu.

20 JESUS, Damásio de; e MIRABETE, Júlio F.

21 BOSCHI, José Antônio Paganella. Das Penas e seus Critérios de Aplicação. 2 ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 242.

22 MIRABETE. Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal – Parte Geral, v.1. 13. ed. São Paulo: Atlas, 1998, p. 296.

23 Apud SÁ, José Sinval. Op. cit., p. 48.

24 Idem. p. 47.

25 SÁ, José Sinval. Op. cit., p. 47.

26 Apud SÁ. Op. cit. p. 47.

27 Apud SÁ. Op.cit. p. 50.

28 CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo Penal à luz da Constituição. 1ª ed. Bauru: Edipro, 1999.

29 GARCIA, Luiz M. Reincidencia y punibilidad: aspectos constitucionales y dogmática penal desde la teoría de la pena. Buenos Aires: Astrea, 1985, p. 117/118.

30 BOSCHI, José Antônio Paganella. Das Penas e seus Critérios de Aplicação. 2 ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 244.

31 Idem, p. 246.

32 GARCIA, Luiz M. Op. cit.; p. 127.

33 Ibidem.

34 FRANCO, Alberto Silva. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. 5. ed. São Paulo: RT, 2001, p. 781.

35 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Teoría del garantismo penal. 4ª ed. Trotta: Madrid, 2001. p. 507. "La condición del reincidente (o pre-juzgado), culpabilizada desde la antiguedad, fue acremente criticada por muchos escritores ilustrados que com razón rechazaron, por respeto al principio de retribución, considerarla como un motivo de agravación de la pena. La pena, escribe Pagano, cancela y extingue íntegramente el delito, y el condenado que la há sufrido se transforma en inocent [...]. Por tanto, no se puede incomodar al ciudadano por aquel delito cuya pena ya se há cumplido. Y Morelly llega incluso a pedir que se catigue a quien osare recordar públicamente las penas sufridas en el pasado por alguien a causa de delitos precedentes".

36 Apud GARCIA, Luiz. Op. cit., p. 101.

37 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. 2 ed. São Paulo: RT, 1999, p. 841.

38 NETO, Cláudio Furtado Maia. Direitos Humanos do Preso. Porto Alegre: Fabris, 1998, p. 147.

39 GARCIA, Luiz M. Op.cit.,. p. 97.

40 CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da Pena e Garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 61.

41 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. 5ª Câmara Criminal. AC nº 699.291.050. Relator: Amilton Bueno de Carvalho. Data do julgamento: 11.8. 1999.

42 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. 3º Grupo Criminal. EI n.º 70000916106. Data do julgamento: 13.11.00.

43 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 1ª Turma. RESP nº 158045/BA. Relator: Luiz Vicente Cernicchiaro. Data do julgamento: 17.02.99.

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Sobre o autor
Carlos Odon Lopes da Rocha

advogado, procurador do Distrito Federal, pós-graduando em Direito Público pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Carlos Odon Lopes. A não recepção do instituto da reincidência pela Constituição Federal de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1490, 31 jul. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10212. Acesso em: 22 nov. 2024.

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