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Direito e literatura. Carlos Heitor Cony e o Habeas Corpus nº 40.976-GB.

A história entre penas, togas e tanques de guerra

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A Denúncia da Quartelada

Cony foi denunciado como incurso na lei de segurança nacional por conta das crônicas que publicou no Correio da Manhã. O jornalista denunciava veementemente o regime que tomava conta da situação. Em 7 de abril de 1964 na crônica Sangue e Palhaçada, Cony ainda se mostrava parcimonioso, porém já assumia posição; o escritor sempre deixou bem claro que não se alinhava com a " (...) esquerda oportunista e desonesta que cercava o Sr. João Goulart" (CONY, cit., p. 21). Cony condenava todas as formas de hipocrisia: política, sexual, social e religiosa (cf. CONY, cit., loc.cit.). E, especificamente, em relação a seu trabalho, os militares e o governo deposto, foi enfático:

"(...) Não acredito que nem o alto nem o baixo Comando Militar compreendam a minha literatura. Não escrevo para ser lido por generais e acredito sinceramente que eles, além de não compreenderem, não gostariam de minha literatura. Mas não sou apenas escritor. Trabalho em jornal, em função das mais humildes, por sinal. Gasto minhas noites às voltas com os títulos, as legendas, as fotos, a diagramação, a oficina, cortando ali, metendo um sinônimo aqui, invertendo uma frase no chumbo para dar na medida da página, funções inglórias e que em nada contribuíram para a implantação do governo do Sr. João Goulart". (CONY, cit., loc.cit.).

A censura à imprensa foi característica daquela época tumultuada. O Correio da Manhã viveu seus dias de glória, "(...) tornando-se em 1964 e 1965, o baluarte das liberdades individuais, no protesto e na denúncia das torturas, das arbitrariedades que passaram a constituir o quotidiano da vida brasileira" (WERNECK SODRÉ, 1999, p. 435). O próprio Werneck Sodré foi perseguido e preso. Em livro de memórias registrou, inclusive, que Cony publicou crônica elogiosa a ele, Nelson Werneck Sodré (cf. WERNECK SODRÉ, 1988, p. 299). A retaliação começou a ser feita concomitantemente. E a tentativa de se enquadrar Cony na lei de segurança nacional é disso prova muito eloqüente. As denúncias de Cony ganharam peso a partir da edição do Ato Institucional nº 1, contra o qual publicou a crônica O Ato e o Fato, que também dá nome ao livro que reúne os textos que Cony escreveu naquele período. Há três motivos que ensejaram os fatos que estão sendo aqui narrados. De um modo mais abrangente, a oposição que setores democratas fizeram ao golpe de 1964. No plano casuístico, as críticas que Carlos Heitor Cony fez especificamente ao Ministro da Guerra e ao Ato Institucional nº 2. E no sentido de procedimento jurídico, a discussão em torno do rito que seria seguido, lei de imprensa ou de segurança nacional. Reproduzo, em seguida, o referido Ato Institucional, núcleo das críticas de Cony:

" ATO INSTITUCIONAL (Nº 1)

À NAÇAO

É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro. O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução.

A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação.

A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória. Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação, representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o único titular. O Ato Institucional que é hoje editado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em nome da revolução que se tornou vitoriosa com o apoio da Nação na sua quase totalidade, se destina a assegurar ao novo governo a ser instituído, os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa Pátria. A revolução vitoriosa necessita de se institucionalizar e se apressa pela sua institucionalização a limitar os plenos poderes de que efetivamente dispõe.

O presente Ato institucional só poderia ser editado pela revolução vitoriosa, representada pelos Comandos em Chefe das três Armas que respondem, no momento, pela realização dos objetivos revolucionários, cuja frustração estão decididas a impedir. Os processos constitucionais não funcionaram para destituir o governo, que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o País. Destituído pela revolução, só a esta cabe ditar as normas e os processos de constituição do novo governo e atribuir-lhe os poderes ou os instrumentos jurídicos que lhe assegurem o exercício do Poder no exclusivo interesse do País. Para demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la, apenas, na parte relativa aos poderes do Presidente da República, a fim de que este possa cumprir a missão de restaurar no Brasil a ordem econômica e financeira e tomar as urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do governo como nas suas dependências administrativas. Para reduzir ainda mais os plenos poderes de que se acha investida a revolução vitoriosa, resolvemos, igualmente, manter o Congresso Nacional, com as reservas relativas aos seus poderes, constantes do presente Ato Institucional.

Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação.

Em nome da revolução vitoriosa, e no intuito de consolidar a sua vitória, de maneira a assegurar a realização dos seus objetivos e garantir ao País um governo capaz de atender aos anseios do povo brasileiro, o Comando Supremo da Revolução, representado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica resolve editar o seguinte.

ATO INSTITUCIONAL

Art 1º - São mantidas a Constituição de 1946 e as Constituições estaduais e respectivas Emendas, com as modificações constantes deste Ato.

Art 2º - A eleição do Presidente e do Vice-Presidente da República, cujos mandatos terminarão em 31 (trinta e um) de janeiro de 1966, será realizada pela maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, dentro de 2 (dois) dias, a contar deste Ato, em sessão pública e votação nominal.

§ 1º - Se não for obtido o quorum na primeira votação, outra realizar-se-á no mesmo dia, sendo considerado eleito quem obtiver maioria simples de votos; no caso de empate, prosseguir-se-á na votação até que um dos candidatos obtenha essa maioria.

§ 2º - Para a eleição regulada neste artigo, não haverá inelegibilidades.

Art 3º - O Presidente da República poderá remeter ao Congresso Nacional projetos de emenda da Constituição.

Parágrafo único - Os projetos de emenda constitucional, enviados pelo Presidente da República, serão apreciados em reunião do Congresso Nacional, dentro de 30 (trinta) dias, a contar do seu recebimento, em duas sessões, com o intervalo máximo de 10 (dez) dias, e serão considerados aprovados quando obtiverem, em ambas as votações, a maioria absoluta dos membros das duas Casas do Congresso.

Art 4º - O Presidente da República poderá enviar ao Congresso Nacional projetos de lei sobre qualquer matéria, os quais deverão ser apreciados dentro de 30 (trinta) dias, a contar do seu recebimento na Câmara dos Deputados, e de igual prazo no Senado Federal; caso contrário, serão tidos como aprovados.

Parágrafo único - O Presidente da República, se julgar urgente a medida, poderá solicitar que a apreciação do projeto se faça, em 30 (trinta) dias, em sessão conjunta do Congresso Nacional, na forma prevista neste artigo.

Art 5º - Caberá, privativamente, ao Presidente da República a iniciativa dos projetos de lei que criem ou aumentem a despesa pública; não serão admitidas, a esses projetos, em qualquer das Casas do Congresso Nacional, emendas que aumentem a despesa proposta pelo Presidente da República.

Art 6º - O Presidente da República, em qualquer dos casos previstos na Constituição, poderá decretar o estado de sítio, ou prorrogá-lo, pelo prazo máximo de 30 (trinta) dias; o seu ato será submetido ao Congresso Nacional, acompanhado de justificação, dentro de 48 (quarenta e oito) horas.

Art 7º - Ficam suspensas, por 6 (seis) meses, as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade e estabilidade.

§ 1º - Mediante investigação sumária, no prazo fixado neste artigo, os titulares dessas garantias poderão ser demitidos ou dispensados, ou ainda, com vencimentos e as vantagens proporcionais ao tempo de serviço, postos em disponibilidade, aposentados, transferidos para a reserva ou reformados, mediante atos do Comando Supremo da Revolução até a posse do Presidente da República e, depois da sua posse, por decreto presidencial ou, em se tratando de servidores estaduais, por decreto do governo do Estado, desde que tenham tentado contra a segurança do País, o regime democrático e a probidade da administração pública, sem prejuízo das sanções penais a que estejam sujeitos.

§ 2º - Ficam sujeitos às mesmas sanções os servidores municipais. Neste caso, a sanção prevista no § 1º lhes será aplicada por decreto do Governador do Estado, mediante proposta do Prefeito municipal.

§ 3º - Do ato que atingir servidor estadual ou municipal vitalício, caberá recurso para o Presidente da República.

§ 4º - O controle jurisdicional desses atos limitar-se-á ao exame de formalidades extrínsecas, vedada a apreciação dos fatos que o motivaram, bem como da sua conveniência ou oportunidade.

Art 8º - Os inquéritos e processos visando à apuração da responsabilidade pela prática de crime contra o Estado ou seu patrimônio e a ordem política e social ou de atos de guerra revolucionária poderão ser instaurados individual ou coletivamente.

Art 9º - A eleição do Presidente e do Vice-Presidente da República, que tomarão posse em 31 de janeiro de 1966, será realizada em 3 de outubro de 1965.

Art 10 - No interesse da paz e da honra nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, os Comandantes-em-Chefe, que editam o presente Ato, poderão suspender os direitos políticos pelo prazo de 10 (dez) anos e cassar mandatos legislativos federais, estaduais e municipais, excluída a apreciação judicial desses atos.

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Parágrafo único - Empossado o Presidente da República, este, por indicação do Conselho de Segurança Nacional, dentro de 60 (sessenta) dias, poderá praticar os atos previstos neste artigo.

Art 11 - O presente Ato vigora desde a sua data até 31 de janeiro de 1966; revogadas as disposições em contrário.

Rio de Janeiro-GB, 9 de abril de 1964.

ARTHUR DA COSTA E SILVA Gen. -Ex.

FRANCISCO DE ASSIS CORREIA DE MELLO Ten.-Brig.

AUGUSTO RADEMAKER GRUNEWALD Vice-Alm. "

Ao que parece, o autor do documento fora Francisco Campos, jurista mineiro, talentoso, cuja biografia é inesgotável apologia ao poder. Sua inteligência granjeou-lhe o epíteto de Chico Ciência. Campos nasceu em Dores do Indaiá, em 18 de novembro de 1891. Ao que consta também teria relações familiares com Benedito Valadares, Gustavo Capanema, Magalhães Pinto e Olegário Maciel. Ainda estudante de direito teria discursado em favor de Afonso Pena (outro mineiro), efusivamente; biógrafo dá conta que o episódio anunciava ligação com o conservadorismo (cf. MALIN, in Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro da Fundação Getúlio Vargas, 2001, p. 997 e ss.). Trata-se da relação entre intelectual e poder, que recorrentemente dá guinadas à direita. A aproximação de Carl Schmitt com a Alemanha nazista é do fato indicação freqüente (cf. BALASKRISHNAN, 2000). Francisco Campos revelou-se como o mais seguro defensor da ordem.

Foi Ministro da Educação no governo provisório de Vargas, com quem teria acertado a participação da Aliança Liberal no golpe de 30, sempre sob o monitoramento de Olegário Maciel, aquele que teria preferido 10 Prestes a uma revolução. Próximo a Miguel Costa, João Alberto e Juarez Távora, bem como de outros tenentes, Campos articulou em Minas a Legião de Outubro. Redigiu manifesto inflamado, e que também fora assinado por Gustavo Capanema. Desenhou a constituição autoritária de 1937; consta que contou com o auxílio de Vicente Ráo. Com o golpe de 1937 Francisco Campos passou a exercer o cargo de Ministro da Justiça. Sempre junto ao poder, do qual era a própria expressão intelectualizada, Francisco Campos sistematizou o Ato Institucional nº 1, combatido por Cony. Teria se comprovado a tirada de Rubem Braga, para quem toda vez que o Sr. Francisco Campos acende sua luz, há um curto-circuito nas instalações democráticas brasileiras" (cf. MALIN, cit., loc.cit.).

A propósito da participação de Francisco Campos na concepção e redação do Ato Institucional nº 1, é realista a passagem que segue, de Elio Gaspari:

"Desde o início da tarde de terça-feira, 7 de abril, o jurista Francisco Campos estava no gabinete do general. Autor da Carta de 1937, último instrumento ditatorial da República Brasileira, Chico Ciência era um mineiro miúdo, autoritário, brilhante e extrovertido. Chegou ao Ministério da Guerra acompanhado pelo ex-colaborador e amigo Carlos Medeiros Silva, que, em 1937, datilografara e revira em segredo toda a Constituição. Medeiros aprontara no domingo, dia 5, um Ato Constitucional Provisório que previa uma fornada de cassações de mandatos e suspensões de direitos políticos pelo ‘prazo máximo’ de cinco anos. Castello e Costa e Silva receberam cópias do Ato Provisório entre a madrugada e a manhã de segunda-feira, dia 6. Reunido com Costa e Silva e um grupo de generais, Francisco Campos captou neles uma vontade de praticar a violência política, inibida pelo escrúpulo de atropelar a Constituição. Agitado, andando de um general para outro, atirou: ‘Os senhores estão perplexos diante do nada!’ E deu uma aula sobre a legalidade do poder revolucionário. Era o que eles precisavam ouvir. Perguntaram-lhe do que precisava para redigir uma proclamação: ’Papel e máquina de escrever’, respondeu. Mostraram-lhe a proposta mandada por Gallotti, e ele a julgou ‘obra de amanuense’. (GASPARI, 2002, p. 123).

As linhas retóricas do Ato Institucional nº 1 são impressionantes. A ortodoxia das informações e das imagens é questionável. Desconhece-se, efetivamente, motivação civil e militar que abre o Brasil para o futuro. Não bastasse a manipulação freqüente que o direito faz da história, utilizando-a para todos os fins, na deliciosa imagem de Walter Benjamin, fez-se também do futuro um refém de legislações arbitrárias. Afirmou-se peremptoriamente que o país vivia uma autêntica revolução. A colocação do adjetivo na frente do substantivo, o que não é comum em nossos registros lingüísticos, potencializa mais a autenticidade imaginada, do que a revolução que se afirmava realizar. E porque interesses reais da nação estariam sendo protegidos, a revolução se diferenciaria de demais movimentos armados. Passados menos de 10 dias do golpe, os golpistas já se viam revolucionários vitoriosos.

Em ousado passo de teoria constitucional, afirmou-se que o poder constituinte decorreria de eleições populares ou da revolução. Neste sentido, a força normativa da revolução, expressada ordinariamente no ato que se baixava, decorreria diretamente do sucesso da revolução putativa. A engenhosidade de Francisco Campos era ilimitada. A forma como o jurista mineiro expressava idéias autoritárias são dignas de registro. O Chico Ciência era um mestre da retórica. Não se recebia a normatividade que antecedia o ato institucional, mas com ele inaugurava-se uma nova ordem, baseada na ordem deposta, que permanecia incólume, com alterações casuísticas. Matava-se para em seguida se ressuscitar. Revela-se uma das contribuições mais expressivas do constitucionalismo brasileiro. Infelizmente.

Francisco Campos teria engendrado inusitada contribuição brasileira à teoria constitucional. O poder constituinte, metanarrativa insuflada pelas barricadas parisienses de 1789, detentor de vontade popular, e justificativa para todos comandos, mandos e desmandos, ganhou do jurisconsulto de Dores do Indaiá matiz inovador. Tratava-se de um poder constituinte por imposição. Hoje é recorrente a fixação de constitucionalistas menos avisados, que louvam os serviçais das ditaduras. A prova pode estar na retomada que há no estudo dos textos de Carl Schmitt Para quem não sabe, ou não se lembra, ou não quer saber, ou esqueceu, Carl Schmitt defendeu o Führer, discutiu com Kelsen, e acreditava que o controle de constitucionalidade das leis deveria ser feito pelo poder executivo.

Indicava-se duvidoso apoio inequívoco da Nação. Buscavam-se meios para que os novos mandarins enfrentassem os problemas. Mas a vida política é problema mesmo. Locuções prenhes de romantismo pretendiam iludir o realismo das circunstâncias. Alguns juristas, que comungam diuturnamente com os poderosos, e que são homenageados como saudosos doutrinadores, colocaram-se em favor do regime de exceção. Por sorte, ou por regra, havia exceções. Na dicção do próprio texto, institucionalizava-se o regime vitorioso. O apelo à idéia de vitória, bem como sua repetição, sugerem o uso de um mantra, saído dos quartéis, e imposto à sociedade civil. Utilizando-se da retórica maniqueísta da guerra fria, o autor (ou os autores do ato institucional) anematizavam a ordem deposta, acusada de pretender blochevizar o país. As peças se encaixavam.

Fazia-se o jogo que se esperava de país periférico (que sempre fomos), no sentido de opção pelas ordens de Washington. Retórica anticomunista anunciava pomposamente que se pretendia ‘drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do governo como nas suas dependências administrativas". Intrigante o vocabulário, tomado da fisiologia e da medicina. Apoiava-se abertamente aos norte-americanos, que concebiam uma teoria dos dominós. Assim, "a América Latina foi uma região particularmente afetada pelas políticas dos Estados Unidos, ao promoverem o liberalismo econômico através do autoritarismo político, de governos militares, a serviço da comunidade dos homens de negócios" (MONIZ BANDEIRA, 2005, p. 199).

Manteve-se a constituição de 1946. Isto é, neutralizou-se o texto então vigente. Potencializou-se o executivo. Trata-se de engenharia institucional que Francisco Campos dominava, como bem demonstrou na constituição de 1937. Mantinha-se a aparência da legalidade. O Congresso Nacional permanecia funcionando. Embora, bem entendido, firmou-se o pé no sentido de que não era o Congresso quem legitimava a quartelada; era esta última quem legitimava aquele. Fixaram-se eleições presidenciais indiretas para o prazo de dois dias após a divulgação do ato institucional. O mandato encerrar-se-ia em 31 de janeiro de 1966. Nesta data tomaria posse presidente que deveria ser eleito por voto direto, marcado para 3 de outubro de 1965. As eleições nunca se realizariam, para desespero de Carlos Lacerda, o demolidor de presidentes, que Cony também fulminou.

O presidente estava autorizado a mandar para o Congresso projetos de emenda à constituição. O presidente também poderia decretar o estado de sítio. Estavam suspensas por seis meses as garantias decorrentes da vitaliciedade e da estabilidade. Demissões, então, poderiam se reproduzir, o que de fato ocorreu. O controle jurisdicional de eventuais afastamentos de trabalhadores seria possível tão-somente quanto às formalidades extrínsecas. Direitos políticos poderiam ser suspensos por 10 anos. Cony foi o primeiro a denunciar este estado de coisas, engendrando ponte discursiva entre o ato e o fato. Segundo Cony:

"Enfim, temos o Ato e o Fato. O Ato é esse monstrengo moral e jurídico que empulhou o Congresso e manietou a Nação. O Fato é a prepotência de hoje, o arbítrio de hoje, a imbecilidade de hoje, estão preparando, desde já, um dia melhor, sem ódio, sem medo. E esse dia ainda que custe a chegar, ainda que chegue para nossos filhos ou netos, terá justificado e sublimado o nosso projeto e nossa ira" (CONY, cit., p. 27).

Cony fustigou o Ato Institucional nº 1, levantando-se na denúncia de instrumento normativo que qualifica o arbítrio e a força bruta. Na mesma crônica:

" (...) Lendo o preâmbulo do Ato, tive repugnância pelos seus redatores. Mas tive de sorrir ante a dificuldade com que o Alto Comando se deparou: ‘promulgava’ ou ‘dava’ um Ato Institucional à Nação? Os juristas de sempre, sempre subservientes, cooperaram com as luzes: e arranjaram o termo antigo, romano: ‘editar’. E o Alto Comando editou. Na realidade, não foi editado. Foi simples e tiranicamente imposto a uma Nação perplexa, sem armas e sem líderes para a reação. Foi desprezivelmente imposto a um Congresso emasculado. O ato não foi um ato: foi um fato, fato lamentável, mas que, justamente por ser um fato, já contém, em si, os germes do antifato que criará o novo fato". (CONY, cit., p. 26).

Na crônica publicada em 14 de abril de 1964 Cony afirmou que se tínhamos revolução, e não quartelada, teríamos revolução de caranguejos. A crítica é contundente:

"Já que o Alto Comando Militar insiste em chamar isso que aí está de Revolução – sejamos generosos: aceitemos a classificação. Mas devemos completá-la: é uma Revolução, sim, mas de caranguejos. Revolução que anda para trás. Que ignora a época, a marcha da história, e tenta regredir ao governo Dutra, ou mais longe ainda, aos tempos da Velha República, quando a probidade dos velhacos era o esconderijo da incompetência e do servilismo (...)" (CONY, cit., loc.cit.).

Cony insistia. Tinha-se quartelada, e não revolução. A escolha do substantivo que adjetivasse o golpe transcendia ao jogo de palavras, revelava verdades silenciadas pelo direito (cf. AGUIAR E SILVA, 2001, p. 45). Continuo com Cony:

"Sem medo, e com coerência, continuo afirmando: isso não é uma revolução. É uma quartelada continuada, sem nenhum pudor, sem sequer os disfarces legalistas que outrora mascararam os pronunciamentos militares. É o tacão. É a espora. A força bruta. O coice". (CONY, cit., p. 30).

Em 16 de abril de 1964 o Correio da Manhã publicava nota de apoio a Cony. Havia ameaças de que o lar do escritor seria invadido. Dois indivíduos que se identificaram como funcionários do Ministério da Justiça teriam abordado as empregadas do escritor. Fizeram perguntas sobre os hábitos do investigado. Espionava-se (cf. FIGUEIREDO, 2005, p. 121 e ss.). No mesmo dia, a propósito da posse de Castello Branco como Presidente da República, Cony publicou texto afável ao chefe militar. Afinal, segundo Cony, "(...) não se pode querer mal a um camarada – embora general – que seja parente de José de Alencar e Rachel de Queiróz" (CONY, cit., p. 33). Em crônica publicada em 28 de abril de 1964 Cony motejou do farto material subversivo que as forças militares encontravam em poder dos perseguidos pelo regime:

" A relação é inquietante. Bustos do Sr. Luís Carlos Prestes, flâmulas da União Nacional dos Estudantes, bandeiras de Cuba, edições completas de Dostoievski. Leio, aterrado, que numa sangrenta célula de Brás de Pina foi apreendido um disco de alta periculosidade: trechos seletos de Boris Godunov. Entro em pânico. Lá em casa, por culpa de uma subversiva Enciclopédia Britânica que herdei de meus maiores, há um verbete (flag) ilustrado com uma subversiva bandeira cubana. Vou tratar de, com minhas próprias mãos, expurgar tamanha subversão de meu cristão e patriótico lar, antes que o Dops me expurgue a cabeça, a alma e os livros". (CONY, cit., p. 47).

Em crônica de 25 de abril de 1964 Cony brincou com palavras, e a partir do substantivo castelo, que grafado com maiúscula é nome próprio, do próprio Presidente, o jornalista expôs o bizarro da situação, em jogo que nos lembra a polissemia e a antanáclase:

" (...) Por ora, temos um castelo no ar – à espera de uma concretização em nobre metal. Dispensamos o castelo de areia que se dissolverá aos apetites do poder e da tirania. Queremos um castelo que fique para sempre, e cuja memória seja abençoada por todos os brasileiros desoprimidos do medo e da vergonha". (CONY, cit., p. 51).

Para Cony o Ato Institucional "(...) institucionalizou a confusão, os equívocos e as precipitações" (CONY, cit., p. 52). Para o escritor "(...) no Brasil de 1964 não se respeita nada" (CONY, cit., loc.cit.). E continuava:

" Cassam mandatos sem que os réus tenham a oportunidade de abrir a boca. Suspendem direitos políticos e nem os punidos sabem por que crime, por que omissão ou ação perderam seus direitos. Quem está por trás de toda esta aberração jurídica, desse estupro moral em que se violenta toda a Nação? Não sabemos. O que vemos é estarrecedor. Quem parece ditar as leis e os modos à Revolução são alguns histéricos e analfabetos: Flávio Cavalcanti, Ibrahim Sued, Hélio Fernandes, César de Alencar e outros vultos do mesmo gabarito e da mesma fossa".

Em 30 de abril de 1964 Cony escrevia que a quartelada de 1º de abril insistia em popularizar-se. Em 3 de maio do mesmo ano, na crônica Missa do Trigésimo Dia, a crítica voltava fortíssima:

"A quartelada de 1º de abril providenciou uma indecente recauchutagem para o 1º de maio. Sob o pretexto de reprimir possíveis manifestações operárias, os chamados revolucionários – civis ou incivis – encheram as prisões já cheias, afastaram indecentemente um governador indecente, e, praticamente, colocaram na posição de prisioneiros dois outros governadores, por sinal, homens da primeira hora do movimento". (CONY, cit., p. 57).

Na mesma crônica Cony afirmava que o Presidente da República já não era mais " (...) um líder da revolução, mas um robô da revolução" (cit., loc.cit.). Na medida em que a repressão aumentava, Cony também se acautelava. Na crônica de 5 de maio de 1964 avisou:

"Por hoje chega. Aproveito esse final de crônica para dar um recado às pessoas que me ameaçam, por carta ou por telefone: sou um homem desarmado, não tenho guarda-costas nem medo. Tenho, isso sim, uma obra literária que, bem ou mal, já me dá uma razoável sobrevivência. Esse o meu patrimônio, essa a minha arma. Qualquer violência que praticarem contra mim terá um responsável certo: general Costa e Silva, Ministério da Guerra, Rio – e, infelizmente – Brasil. " (CONY, cit., p. 62).

Em 7 de maio de 1964 Cony denunciou na crônica A Herança que as prisões se multiplicavam. Lembrava a perseguição pela qual passavam Anísio Teixeira, Celso Furtado e Edmar Morel. Três dias depois, na crônica A Necessidade das Pedras, Cony lembrava que o tempo passava e que o Brasil permanecia encravado no mesmo lugar. No mesmo dia, em outra crônica, Waterloo e o Desconfiômetro, Cony espetava:

"Não se pode cobrar tamanha lucidez aos marechais de 1º de abril. Mas aqui fica uma advertência: analisem detidamente o pano de fundo dessa revolução idiota. Liguem o desconfiômetro – se é que dispõem de algum desconfiômetro. E verão que estão fazendo o triste papel de cooperar com o leilão de mercados e produções – leilão anti-histórico, antinacional, anti-humano. Enfim, cada soldado tem o Waterloo que merece. Ainda que esse Waterloo tenha o nome ridículo de 1º de abril" (CONY, cit., p. 74).

Em 14 de abril de 1964 Cony falava sobre a repugnância que lhe causava a oficialização e santificação da delação. No dia 23 de maio Cony convocava os intelectuais para que tomassem posição em face do regime opressor que se instalou no País. Continuando com a ironia, Cony desconfiava dos documentos que a policia apresentava. E lembrava que se as autoridades lhe apresentassem documento que provasse que tinha nascido, duvidaria do próprio nascimento... (cf. CONY, cit., p. 95). Na crônica de 28 de maio de 1964 Cony atacou diretamente Costa e Silva:

"Foi um espetáculo deprimente a entrevista do honrado ministro da Guerra em São Paulo. Metade cômico, metade infantil, e integralmente agramatical, o nobre senhor Costa e Silva fez um strip-tease mental, cívico e político que deixa muito mal a chamada Revolução. As fotografias e mapas exibidos, documentos esses considerados subversivos e dramáticos, limitaram-se a clichês razoavelmente antigos, já publicados em jornais e revistas. Ficamos sabendo que, em quase 60 dias de terror, o comando militar conseguiu documentar o óbvio: aquilo que todos sabíamos, víamos e líamos nos jornais e nas televisões." (CONY, cit., p. 96).

Em 9 de junho de 1964 Cony criticou a lista de cassações, chamando-as de cacho de bananas jogado numa jaula de macacos famintos. Na mesma crônica, protestou em favor de Nelson Werneck Sodré, que estava preso. O próprio Sodré reconheceu o gesto, como acima indicado. As crônicas de Carlos Heitor Cony marcaram o Correio da Manhã como jornal de oposição, de denúncia, de defesa das liberdades democráticas. Os militares, incomodados com o escritor, tentam enquadrá-lo na lei de segurança nacional. Segue a batalha jurídica.

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Sobre o autor
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Professor universitário em Brasília (DF). Pós-doutor pela Universidade de Boston. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Procurador da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GODOY, Arnaldo Sampaio Moraes. Direito e literatura. Carlos Heitor Cony e o Habeas Corpus nº 40.976-GB.: A história entre penas, togas e tanques de guerra. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1492, 2 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10224. Acesso em: 27 dez. 2024.

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