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Ligeiras observações sobre a im(p)unidade penal nos crimes contra o patrimônio

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06/08/2007 às 00:00
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3. A OBJEÇÃO IDEOLÓGICA

            Com certeza, as posições externadas no presente artigo atrairão os protestos dos autodesignados ‘penalistas modernos’, que, escandalizados, focarão suas críticas no fato de que direitos dos acusados, expressos legislativamente, não poderiam ser suprimidos na ‘via interpretativa’.

            Na dogmática ‘garantista’, o Direito Penal existe tão-somente para a proteção daquele que seus adeptos denominam ‘o mais débil’ (o acusado) diante do Leviatã (o Estado).

            Nessa visão estreita e unilateral do fenômeno jurídico, o Direito Penal tem como única finalidade proteger o acusado da fúria punitiva do Estado.

            Só não percebeu o ‘garantista’, ‘neto retardatário do Iluminismo’, que na realidade brasileira o débil na relação penal é o Estado (depauperado, sem condições de equipar sua polícia e o Poder Judiciário, ou dar vida digna aos seus cidadãos), enquanto o Leviatã é o criminoso, cada vez mais ousado, organizado e bem armado. Isso é mais uma prova do equívoco que é transplantar-se doutrinas alienígenas para aplicação em solo pátrio, sem qualquer observância das realidades locais.

            Na linha de pensamento ‘garantista’, conforme as necessidades de proteção do ‘mais débil’, ora a legalidade se flexibiliza (concedendo-se direitos sem previsão legal), ora torna-se uma muralha intransponível (restringindo-se interpretações desfavoráveis ao acusado).

            Essa cegueira ideológica, no entanto, não se harmoniza com a Constituição brasileira, que deve ser a bússola na interpretação do Direito. Pode-se dizer que se extrai do sistema constitucional o mandamento de criminalizar os delitos patrimoniais praticados pelos agentes elencados no artigo 181 do Código Penal.

            O ‘garantista’ constrói sobre areia movediça, ao interpretar o Código Penal e a Constituição com olho de Polifemo: ‘só o delinqüente tem direitos’.

            Ora, análise ponderada da Constituição revela, como não poderia deixar de ser, que ela faz o justo equilíbrio entre a proteção dos direitos individuais do acusado e a defesa da sociedade (individual x coletivo). Pode-se dizer com todas as letras que a Constituição Federal não acolheu o comando normativo estampado no artigo 181 do CP.

            A não ser assim, o Direito Penal chancelaria situações teratológicas e afrontosas aos mais elementares sentimentos de justiça, como, por exemplo, não punir o agente que lesa patrimonialmente a mãe com 59 anos de idade, cega e analfabeta; ou então, isentar de pena o agente relacionado no art. 181 do CP pela prática do grave delito de abuso de incapaz débil mental.

            Como já referido neste texto, se de um lado o Estado não pode usar de arbítrio contra o cidadão, excedendo-se no rigor punitivo (proibição de excesso), também não pode pecar pela proteção deficiente à coletividade na seara penal.

            E é justamente a tarefa do aplicador do direito encontrar o ponto de equilíbrio entre direitos do acusado e os direitos da sociedade, não permitindo o aniquilamento de uma espécie por outra. Não existem ‘modelos’ de interpretação pré-definidos, sujeitando-se o intérprete, também, às variáveis sociais.

            No Brasil, infelizmente, os operadores do Direito que se intitulam ‘garantistas’ (termo que usurparam) cingem-se a criar doutrinas pró-delinqüentes, esquecendo que as vítimas também têm direitos, o que faz relembrar as agudas palavras de VOLNEY CORRÊA JÚNIOR [09]:

            "Todos os séculos registram surtos espasmódicos de contracultura e anticivilização. Neste fim de século, a revivescência cínica em voga é a bandidolatria. Cegos à dramática situação da população atormentada por assaltantes e surdos aos gemidos das vítimas, insensatos há que se propõem a identificar no ladrão-assaltante uma auréola robin-hoodiana: ele, a seu modo e em última instância, estaria a promover redistribuição de renda...Seria cômico, se não fosse trágico.

            "Humanismo sadio é o que se volta para o trabalhador pacato: para a faxineira e para a lavadeira (que não delinqüem); para o balconista e para o ascensorista (que não delinqüem); para o metroviário e para o bancário (que não delinqüem); para o rurícola, cujo único crime é suplicar um pedaço de terra; para o funileiro, o carpinteiro, o operário em construção (que não delinqüem); para todos quantos se vêem submetidos a formas espoliativas de trabalho, abrigam-se em sub-habitações, alimentam-se precariamente, vestem-se mal, afligem-se em corredores de hospitais deficientes (e não delinqüem, não delinqüem, não delinqüem, porque mansos de espírito, puros, dotados de boa índole).

            "Falso e hipócrita humanismo é o que prodigaliza benesses aos que estupram, seqüestram, matam e roubam."


4. BREVES CONCLUSÕES

            1. A imunidade prevista no artigo 181 do Código Penal, tal como posta, é inconstitucional, pois: a) fere o princípio da igualdade, já que o patrimônio da vítima naquelas hipóteses é tão digno de proteção quanto o de qualquer cidadão; b) a proteção à intimidade familiar, buscada pelo instituto, pode ser alcançada por outros meios, tal como a decretação de sigilo no procedimento investigatório; c) muitas vezes não há vínculos afetivos a proteger entre autor e vítima; d) a vítima pode ter interesse na condenação do culpado para exercer a ação ex delicto; e) há uma quebra de coerência interna do sistema penal, já que a imunidade não é aplicada para outros delitos cometidos pelos agentes relacionados no art. 181 do CP, inclusive para os com menor quantitativo de pena.

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            2. Ainda, a imunidade positivada no artigo 181 do Código Penal estimula a impunidade, pois sabendo de antemão que não poderá ser perseguido penalmente, o simples temor de sofrer uma ação indenizatória, de difícil execução posterior, não intimidará o agente.

            3. Contra as pessoas elencadas no artigo 181 do CP, pode haver a deflagração de ação penal, mas condicionada a representação da vítima.

            4. A Lei 11.340/06 ("Maria da Penha") derrogou tacitamente o artigo 181 do Código Penal, fazendo com que as imunidades penais entre cônjuges e parentes não tenham mais aplicabilidade quando se tratar de violência patrimonial contra a mulher (artigo 5º, incisos I a III, c/c o artigo 7º, inciso IV).

            5. O Direito Penal não pode ser visto somente sob a ótica dos direitos do acusado (visão monocular), devendo a interpretação da lei levar em consideração os interesses da vítima, pois o princípio da proporcionalidade é uma via dupla: de um lado, contém o arbítrio do Estado, de outro proíbe proteção deficiente ao lesado em seus direitos fundamentais.


REFERÊNCIAS

            DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça. Editora RT, 2007.

            DÓRIA, A. Sampaio. Direito Constitucional, 5ª edição, vol. I, Tomo I, São Paulo: Max Limonad, 1962.

            FELDENS, Luciano. A Constituição Penal – A dupla face da proporcionalidade no controle das leis penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005.

            JÚNIOR, Volney Corrêa Leite de Moraes. Crime e Castigo – Reflexões Politicamente Incorretas. Campinas: Millennium Editora, 2002.

            NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado, 5ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2005.

            SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 9ª edição, 4ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores.


NOTAS

            01

Código Penal Comentado, 5ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2005, P. 731.

            02

RHC 63.673-0-SP, DJU 20.06.1986, p. 10.929.

            03

DÓRIA, A. Sampaio. Direito Constitucional, 5ª edição, vol. I, Tomo I, São Paulo: Max Limonad, 1962, p. 244.

            04

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 9ª edição, 4ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, p. 208.

            05

A Constituição Penal – A dupla face da proporcionalidade no controle das leis penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005, p. 73.

            06

Art. 63. Transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros.

            07

Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

            I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

            II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

            III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

            (...)

            Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

            I, II, III – (omissis)

            IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

            08

A Lei Maria da Penha na justiça, RT, pp. 88-89.

            09

Crime e Castigo – Reflexões Politicamente Incorretas. Campinas: Millennium Editora, 2002, p. 90.
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Sobre o autor
Cláudio da Silva Leiria

Promotor de Justiça no Rio Grande do Sul.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEIRIA, Cláudio Silva. Ligeiras observações sobre a im(p)unidade penal nos crimes contra o patrimônio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1496, 6 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10235. Acesso em: 19 abr. 2024.

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