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Direito e Literatura: Vargas, o Estado Novo, a Lei de Segurança Nacional e o habeas corpus em favor de Olga Benário Prestes.

A história entre foices, martelos e togas

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3. A Inicial do Habeas Corpus em Favor de Olga Prestes

O caso de Olga é de uma violência jurídica que indica nódoa na história do direito brasileiro. O objetivo do habeas corpus era no sentido de que Olga permanecesse presa no Brasil; alterava-se a lógica do remédio heróico; pedia-se que a paciente continuasse encarcerada, pretendendo-se, com a negação da liberdade, garanti-la. Grávida, havia mais interesses em jogo. A crueza e a formalidade do procedimento de expulsão de Olga ilustram justiça que não se fez, solidariedade humana que não houve, violência que se perpetrou. As cartas trocadas entre Luis Carlos Prestes e Olga levam ao extremo a dor que a situação enceta. Um exemplo – e eu ainda não transcrevo excertos que se referem à pequena filha do casal, que nasceu em campo de concentração:

"(...) Carlos, faltam apenas alguns dias para completar um ano que me trouxeram do navio em Hamburgo para Berlim e depois para a prisão de mulheres. Devo confessar-te que, devido a minha situação particular, eu esperava logo obter novamente a liberdade. Mas agora já passou um ano e, ainda que não esteja condenada à punição alguma por nenhum tribunal, o termo ‘detenção preventiva’ é suficiente para estar detida. Começo agora a me habituar à idéia de uma detenção mais longa. Melhores dias virão (...)" (Carta de Olga a Luís Carlos Prestes, datada de 9 de outubro de 1937).

A petição inicial de habeas corpus protocolada pelo advogado Heitor Lima em defesa de Maria Prestes (Olga) tinha como centro da argumentação a tese de que a paciente não poderia ser expulsa e que deveria permanecer no Brasil, para aqui ser julgada pelas autoridades nacionais. Tratou-se de habeas corpus inusitado. É o que o remédio se presta historicamente para libertar o preso (chamado de paciente). No caso de Olga pretendia-se o contrário; isto é, que permanecesse encarcerada, condição única de sobrevivência, não obstante os maus tratos. É que, judia, seria entregue à Gestapo, a temível e terrível polícia secreta do nazismo. Seria encaminhada para um campo de concentração, no qual a morte a esperava. E foi o que aconteceu.

A peça inicial do habeas corpus foi endereçada à Egrégia Corte Suprema. Seu autor era o advogado Heitor Lima. Iniciava-se com simplicidade, apontando que "o advogado Heitor Lima vem impetrar habeas corpus a favor de Maria Prestes, presa à disposição do Senhor Ministro da Justiça para ser expulsa do território nacional". Em seguida, Heitor Lima indicava as razões da prisão de sua cliente:

"A paciente foi recolhida há meses à Casa de Detenção, onde ainda continua na mais rigorosa incomunicabilidade, sob a acusação de que participara, direta e indiretamente, nos graves acontecimentos de novembro último. A ela atribuem-se atos e fatos que, a serem verdadeiros, determinariam necessariamente a sua condenação como autora intelectual e cúmplice em vários delitos contra a ordem política e social".

O estilo forense de meados do século passado, especialmente em matéria criminal, era contundente, direto, e o pano de fundo político da questão substancializava reflexões de cunho metajurídico, que tocam o leitor contemporâneo, porque decorrentes de testemunha ocular de tempo de triste memória. A referir-se a novembro último, reportava-se à Intentona Comunista de 1935. Heitor Lima escreveu parágrafo denso, invocando a competência da União para processar criminosos no Brasil, engate lógico que vai ensejar o pedido, no sentido de que a paciente ficasse no país:

"Ora, dentro das nossas fronteiras a ninguém é lícito fugir à ação da soberania nacional, salvas as disposições dos tratados e as regras do direito das gentes. A lei penal é aplicável a todos os indivíduos, sem distinção de nacionalidade, que, em território brasileiro, praticarem fatos criminosos e puníveis. A União, sem dúvida, expulsará os estrangeiros perigosos à ordem pública ou nocivos aos interesses do país; mas não há de a expulsão assumir o caráter de burla às nossas leis penais, nem terá aspecto de prêmio ao alienígena que, abusando da nossa hospitalidade, aqui delinqüe, e, repatriado, vai livremente viver onde quiser".

A tese de Heitor Lima centrava-se na afirmação de que criminosos deveriam ser punidos, depois de julgados, e não expulsos, antes de qualquer julgamento sumário. No entanto, ainda segundo Heitor Lima, o estrangeiro nocivo, e só este, é que poderia ensejar expulsão. E porque a paciente supostamente teria cometido crime, aqui mesmo no Brasil deveria ser julgada, processada e eventualmente penalizada. E também pelo fato de que era estrangeira, porém não nociva, até porque estava grávida, não haveria razões justificativas de expulsão. É este o sentido da continuidade da petição, em seguida reproduzida:

"Se o estrangeiro, sem infringir determinada disposição de lei, exerce entretanto atividade nociva à ordem pública ou à segurança nacional, tem o Estado o direito de expulsá-lo. As mais desastrosas conseqüências adviriam se a autoridade esperasse que o forasteiro perigoso à ordem pública delinqüisse, para só então contra ele proceder. A lei não diz que criminosos serão expulsos; diz que serão processados e punidos. Mas o Estado ver-se-ia impotente para prover a própria defesa, se não pudesse eliminar o estrangeiro não criminoso, e entretanto nocivo aos interesses do país. De que modo se defende o Estado? Recorrendo ao instituto da expulsão. O estrangeiro não delinqüente, mas nocivo, será arremessado além das fronteiras".

Heitor Lima desenvolveu o tema da imprestabilidade da expulsão. Olga seria efetivamente condenada; porém, o Ministério da Justiça pretendia premiá-la com a expulsão. E como o destino seria a Alemanha, onde a condição de judia e o passado de comunista também a condenavam, potencializava-se com o prêmio a condenação. A condição da liberdade seria a condenação definitiva, que a paciente encontraria no campo de concentração de Ravensbrück. Continuava Heitor Lima:

"Em que situação se encontra a paciente, e em face dela o Estado? Maria Prestes foi presa como delinqüente, indiciada em fatos punidos com grande rigor. A polícia, ou o Ministério da Justiça, a que é subordinada, não faz mistério de que contra a paciente coligiu elementos de suma importância, e tem como certa a sua condenação. Se a polícia não exagera, também esta é a convicção do impetrante: Maria Prestes será condenada. Mas condenada por que autoridade? Pela única investida das funções de julgar: a autoridade judiciária. Que pretende, porém, o Ministério da Justiça? Dispõe-se a remeter os autos do inquérito ao juízo competente? Não. Pretende dar à paciente, como prêmio aos delitos que lhe atribui, a liberdade sob a forma de expulsão".

Heitor Lima insistia no fato de que havia crime a ser processado, e que por esta razão à paciente não se poderia conceder liberdade, mediante expulsão. É neste sentido que o habeas corpus é diferente, inusitado e inesperado. O impetrante pretendia manter a paciente encarcerada. Além do que, a prestigiar-se a pretensão da polícia, que objetivava expulsar a interessada, ter-se-ia, por via indireta, invasão de competência, de modo que a parte subtrairia conteúdo do todo, isto é, a polícia, subordinada, mitigaria a capacidade do Ministério da Justiça. É o sentido do excerto que segue:

"Se a paciente fosse apenas um elemento nocivo, mas nunca houvesse delinqüido, a expulsão já não seria prêmio à agitadora, mas ato de legítima defesa do Estado: não tendo base para condená-la, mas não convindo ao interesse público a sua permanência em território nacional, o Estado elimina-la-ia pela expulsão. O Governo, porém, afirma que a paciente é co-autora intelectual e cúmplice de vários crimes, apurados em inquérito rigoroso; não é lícito, pois, subtraí-la ao gládio da justiça. Não pode a polícia arrebatar aos tribunais a competência, que só eles têm, de julgar criminosos. No correr desta exposição o impetrante explicará porque a paciente prefere viver condenada no Brasil, a viver livre em qualquer outra parte do mundo".

E continuava a argumentação, insistindo na necessidade de que Olga fosse processada e punida aqui no Brasil. O que se esperava era tão-somente a condução do procedimento dentro das regras claras do devido processo legal. Por outro lado, as autoridades policiais contavam com argumento muito forte; é que se vivia estado de exceção, no qual não há regras a serem respeitadas, pelo menos em favor dos que estivessem contrários ao regime que se instala no poder. Prossigo com o advogado de Olga, reparando que a paciente era recorrentemente referida como Maria Prestes:

"Não há dúvida, assim, de que Maria Prestes, acusada de participação em graves delitos contra a ordem política e social, está devendo contas a justiça punitiva. Não pode, pois, ser expulsa. Primeiro irá a julgamento; se o remate do processo for a condenação, cumprirá a pena. Depois, se o Executivo apurar que ela, sem praticar novos crimes, terá constituído em elemento nocivo á segurança nacional, expulsa-la-á para sempre. A paciente impetra habeas-corpus, não para ser posta em liberdade; não para neutralizar o constrangimento de qualquer processo; não para fugir ao julgamento dos seus atos pelo judiciário: mas, ao contrário, impetra habeas-corpus para não ser posta em liberdade; para continuar sujeita ao constrangimento do processo que contra ela se prepara na polícia; para ser submetida a julgamento perante os tribunais brasileiros. Em suma: o habeas-corpus é impetrado a fim de que a paciente não seja expulsa".

Em seguida Heitor Lima partiu para argumento muito sólido, com o objetivo de indicar que a pena, se aplicada, transcenderia a pessoa da acusada. O passo avançava algumas questões de biotética, e dizia respeito à própria noção de direito à vida. Também, é da tradição normativa ocidental, e brasileira em particular, a defesa dos direitos da nascitura. A gravidez de Olga fora aspecto essencial na discussão, de muito relevo, mas que não foi adequadamente levado em conta pelos julgadores. Continuava o impetrante:

"Além disso, a expulsão teria ainda outra face de ilegalidade, que, nem por ser implícita, seria menos estridente. O decreto de expulsão aludiria apenas a paciente Maria Prestes; mas realmente dois são os expulsandos, dois seriam os expulsos: Maria Prestes traz no seio, com quatro meses de gestação, o fruto do seu amor apaixonado, tormentoso, inexaurível e cego por Luiz Carlos Prestes. Há um ente gerado no Brasil, e que seria atingido iniquamente pelo decreto de expulsão. Apesar de não ter ainda vindo à luz, nem assim essa vida em embrião escapa dos cuidados e á proteção da lei. O nosso direito é nas suas linhas gerais o romano, e Roma, sempre que se tratava dos interesses do nascituro, considerava-o como se já houvesse nascido. A criança simplesmente concebida adquiria todos os direitos que lhe tocariam se tivesse visto o dia no momento em que esses direitos lhe coubessem por sorte (...). O direito nacional manteve a tradição romana. A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro (Código Civil, art. 40). Muitas são as situações em que o nascituro se apresenta como pessoa, em nosso direito: apenas concebido, pode o filho ser legitimado; o reconhecimento do filho pode dar-se no período da gestação; ao nascituro pode ser deferida curatela; a pessoa apenas concebida pode adquirir por testamento. Por sua vez, a lei penal protege a pessoa desde a concepção; o aborto, que é a expulsão prematura do feto, provocada com intenção criminosa em qualquer época da vida uterina, constitui uma das espécies do gênero homicídio, punida com a pena de dois a seis anos de prisão celular. Mas se o feticídio é uma espécie do gênero homicídio, segue-se que a lei penal opera uma verdadeira antecipação da personalidade, quando pune os provocadores de aborto. Assim, tanto o Código Civil como o Penal consideram em muitos casos o fruto da concepção como pessoa, mesma antes do parto. Relativamente à expulsão da mulher gestante a lei nada esclarece. Segue-se daí que os tribunais devam interpretar o silêncio da lei contra a acusada? A Constituição determina que o juiz, em caso de omissão na lei, decidirá por analogia, pelos princípios gerais de direito, ou por equidade. Se a lei considera na gestante duas pessoas distintas, a mãe e o nascituro; se a Constituição estatui que nenhuma pena passará da pessoa o delinqüente (...),- se a expulsão é uma pena; se tal pena alcançará em seus efeitos o filho da expulsanda, embora ainda não nascido: segue-se que o decreto de expulsão, além de ferir o preceito constitucional protetor da maternidade, ofende ainda o principio da personalidade da pena. A existência jurídica da criança ainda não nascida, afirmada no direito civil e penal pátrio de modo insofismável, é argumento tirado principalmente do fato de dar a lei um curador ao nascituro, na hipótese de falecer o pai, e não ter a mulher o pátrio poder. É claro que, se vivos estão pai e mãe, ou se, morto o pai, a mãe conserva o pátrio poder, fala aquele, ou fala esta, em nome do nascituro. Não tendo podido provar o seu casamento com Luiz Carlos Prestes, que aliás reconhece como seu o filho de Maria Prestes, a paciente pode falar em nome do nascituro, para protestar contra uma expulsão que o atingirá, como se um decreto penal pudesse passar da pessoa do acusado. Maria Prestes sustenta que o seu filho é brasileiro, foi concebido no Brasil, quer nascer e viver no Brasil. Como brasileiro, têm o direito de não ser expulso do Brasil (...). A paciente afirma e reafirma que a nacionalidade de seu filho é a brasileira. Se o decreto de expulsão o atingisse, seria uma diminuição média de cabeça, uma pena aplicada a quem não cometeu crime".

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Do argumento seguia o comando constitucional de proteção à maternidade, que protegeria a nascitura, de qualquer movimento referente à expulsão:

"Em amparo da paciente vem ainda a Carta Magna. A gestante é ai objeto de extrema solicitude. Nos termos do art. 141, ‘é obrigatório, em todo o território nacional, o amparo à maternidade e à infância, para o que a União, os Estados e os Municípios destinarão um por cento das respectivas rendas tributarias’. A expulsão neste período delicado para a vida da gestante e do feto, a deslocação, sem destino certo, de uma mulher em tal situação, reduzida ao extremo grau da pobreza, equivaleria ao mais eficaz concurso para matá-la. O decreto de expulsão de Maria Prestes será a sentença de morte proferida ao mesmo tempo contra a mãe e o filho, mas, não só no Brasil não há pena de morte contra as mães, como até, muito ao contrário, a Lei Primária, assimilando as máximas conquistas da civilização, coloca sob a tutela do Estado a maternidade. Como conciliar o texto constitucional que torna obrigatório o amparo à maternidade, com o decreto de expulsão, que equivaleria agora ao sacrifício da maternidade? Sobre todas deve primar a lei que traduz um princípio de humanidade".

O advogado de Olga insistia que a maternidade alterava profundamente o comportamento da paciente. A passagem é demonstrativa de uma advocacia diferente, talentosa, qualificadora de peça de rara beleza:

"A paciente não quer mais deixar o Brasil. Grandes revoluções morais operam-se no coração de Maria Prestes. Dir-se-ia que, preparando-se para a maternidade, um novo mundo se elabora dentro da sua alma e novos horizontes se rasgam ás suas aspirações. O modo como alude ao advento do ser que alimenta dentro de si com o próprio sangue, e fará vivê-la pelo amor, prenuncia radicais transformações na sua conduta futura. A maternidade vai mudar completamente a sua concepção da existência da sociedade e do universo. Quando Maria Prestes fala no filho, os seus olhos ganham um brilho úmido e amplo, e a sua beleza desfeita, os traços prematuramente deformados pela fadiga, pelas lágrimas, pelas privações e pela saudade parecem refletir uma anciã infinita de paz; alenta-a a suprema esperança de reintegrar-se no verdadeiro papel da mulher, o sonho de um lar tranqüilo, no qual possa ela afinal sentir que é uma força da criação, porque é uma força criadora. Neste momento deve Maria Prestes estar definitivamente convencida de que, fora do amor, da ternura e do devotamento, nada vale a mulher".

É advocacia política em toda sua extensão. A peça continuava com firme referência ao Presidente da República, temperada por jogo retórico sutil e inteligente, que apelava para suposta ternura familiar que caracterizava o ditador:

"O Snr. Getúlio Vargas tem mostrado, como chefe de governo, surpreendentes defeitos. Falece-lhe a visão do conjunto, reveladora do estadista, e o próprio sentido das realidades manifesta-se nele fragmentariamente. Aos panoramas totais não se acomodam as pupilas do seu espírito, que maneja as parcelas será chegar a soma. Entretanto, se não deve aspirar ao título de homem de Estado, pode reivindicar, como homem de governo, méritos notáveis, que o coloquem muito acima da mediania, da mediocridade, da chatice política brasileira. A especialidade do Snr. Getúlio Vargas é o dom de dispor e coordenar os detalhes. Seria preciso, para isso, que ele jogasse com dois fatores: o governo de si mesmo, e o conhecimento dos homens. Ai está, precisamente, o segredo do seu êxito, mantendo-se no trapézio, em equilíbrio instável, quando todo o círculo já se desmantelou. O que lhe falta em cultura sobre-lhe em inteligência, e a intuição empresta-lhe todas as capacidades. Acerta menos por clarividência que por instinto, e sabe com tamanha habilidade auscultar as coisas e esbater as arestas, que a generalidade sofre as conseqüências dos seus erros sem conseguir identificá-los, tais as nuances em que se adelgaçam, perceptiva apenas pelos mais argutos, quer dizer, por uma minoria reduzida. O que, porém, o recomenda ao respeito dos seus cidadãos, e, ao lado de urna probidade modelar, o espírito de larga tolerância, o amor á liberdade, a coragem cívica e o primor da sua conduta na vida privada. Observadores superficiais têm-no tachado de insensível, quando ele, pele horror á declamação, à ênfase e aos gestos teatrais, nada faz senão dominar-se, conservando sempre a elegância das atitudes, fácil nas fases tranqüilas da existência, mas difícil nos transes de dor e sobressalto. No mais intimo dos seus círculos, que é o da família, atua pela persuasão e pela brandura, deixando a cada um o máximo possível de iniciativa, não se fazendo temer porque sabe que na base da educação está o afeto e não o terror, deixando que os espíritos se expandam no sentido das vocações respectivas, preparando com cuidado aqueles que dela diretamente dependem, e que deseja lançar à luta aptos para vencerem. Com essas finas qualidades de sentimento, está o impetrante certo de que, se o Snr. Getúlio Vargas tivesse conhecimento da situação de Maria Prestes no cárcere, ordenaria providências imediatas para que se modificasse o regime desumano a que está submetida, sem qualquer vantagem para a ordem pública e a segurança nacional. A impropriedade e a deficiência da alimentação; a falta de cuidados higiênicos, tanto mais indispensáveis quanto se trata de uma gestante; a interdição de qualquer leitura, seja livro ou jornal, o que constitui verdadeiro martírio para uma mulher de inteligência cultivada - todas essas e outras mortificações já reduziram doze quilos no peso de Maria Prestes. Não constituirá isso uma criminosa provocação de aborto?"

O impetrante explorou as condições do cárcere, responsabilizando também indiretamente o Presidente da República pelos desmandos do administrador da prisão, a quem, no entanto, o advogado de Olga trata com certa indulgência retórica:

"Não é crível que essas monstruosidades corram por conta do Dr Aloysio Neiva, diretor do estabelecimento. Quem conhece o seu coração compassivo não lhe fará a injúria de responsabilizá-lo por um aborto criminoso na Casa de Detenção. Quando, no recesso do seu lar feliz, dispuser de um minuto para pensar nas desditas alheias, recorde-se o Dr Aloysio Neiva de que, arrastada pela ambição dos homens, instrumento de paixões masculinas, a poucos passos sofre uma mulher, cuja vida se concentra hoje na vida do ser cujo coração já palpita no fundo do seu ser, e que tem direito a um duplo respeito: o devido a mulher que vai ser mãe, e o devido à mais infeliz das mães. Como advogado de Maria Prestes o impetrante tinha de mencionar tais fatos nesta petição".

Heitor Lima avançou com passo muito sutil, focado na personalidade da mulher, indicando ser a paciente detentora de direito potestativo, nas entrelinhas de aparente pedido de indulgência; ainda, Heitor Lima elogiou Prestes, e afirmou que a criança e Olga fariam com que aquele que um dia fora e esperança da pátria pudesse retrilhar o bom caminho, longe da boa via, então perdida, na dicção do passo clássico de Dante. Seguia Heitor Lima:

"Assim como há sempre, nos desvios, na degradação, no infortúnio, na ruína da mulher a ação corrosiva e dissolvente de um homem, assim também, na correção, no salvamento, na regeneração do homem á sempre a intervenção providencial de uma mulher. Foram as fantasias reformadoras, os erros e o egoísmo dos homens que reduziram Maria Prestes a uma sombra, e lhe comprometeram o destino. Agora todos os seus pensamentos, todos os seus ensejos têm por objeto o filho que vai nascer. E a ele que pretende dedicar as energias que lhe restam, é por ele e para ele que viverá de hoje em diante. Mas, vivendo para o filho, compreendendo afinal a missão da mulher no mundo, Maria Prestes há de necessariamente almejar a companhia, do pai de seu filho. Na aurora que para ela vai raiar com o primeiro vagido do fruto de seu amor sem limites por Luiz Carlos Prestes, outros quadros oferecer-se-ão á sua retina deslumbrada. Pensará em curá-lo da psicose bolchevista, rasgar-lhe novas perspectivas a inteligência, atraí-lo ao âmbito da família, estimulá-lo para o serviço da pátria. Se Maria Prestes, mesmo presa, mesmo condenada, ficar no Brasil, a sua influência maternal (porque a mulher é sempre maternal) sobre o espírito do marido contribuirá provavelmente para que o Brasil volte de novo a contar com a cooperação de um dos seus filhos mais ilustres, matemático, técnico, engenheiro insigne, laureado da Escola Militar. Só uma mulher poderá operar esse milagre, e entre todas as mulheres só uma poderá trazer de novo Luiz Carlos Prestes a comunhão nacional: só Maria Prestes, na tríplice qualidade de mulher, esposa e mãe, poderá modificar a mentalidade daquele que já foi um dia a grande esperança da pátria, tão necessitada hoje da união de seus filhos. Por todos esses motivos, Miaria Prestes não deve partir".

Nas considerações finais, que antecedem ao pedido propriamente dito, Heitor Lima apelou para a sensibilidade e para a humanidade que se esperava da Suprema Corte, invocando compreensão mais arejada dos fatos:

"A Colendíssima Corte Suprema, é claro, não vai julgar da conveniência ou da oportunidade da medida coercitiva que ameaça a paciente: examina-la-á apenas sob o angulo da legalidade, ou constitucionalidade. No processo de expulsão há somente três depoimentos de investigadores de polícia, ouvidos na ausência da acusada; os investigadores limitam-se a informar que na Delegacia de Segurança Política a expulsanda é tida por agitadora, e por isso os depoentes afirmam que ela constitui perigo para a segurança nacional, nada mais. Não seria preferível o decreto de expulsão puro e simples, sem essa simulação de respeito às fórmulas jurídicas? A que fica reduzido o preceito constitucional assegurador da ampla defesa? O impetrante recusou-se a colaborar em tamanha manifestação. Se o hábeas corpus for concedido, que sucederá? Presa e incomunicável continuará a paciente. Prosseguirá o inquérito no qual a polícia vê fortes elementos para a condenação ao poder judiciário, tomando conhecimento das provas que a polícia afirma irrefragáveis contra a paciente, condená-la. Ficará assim Maria Prestes reduzida á condição de nada fazer de nocivo á ordem pública. Mas, embora presa e condenada, muito poderá fazer de útil, como esposa, mãe e mulher".

Porque Olga não possuía recursos financeiros para providenciar o recolhimento de custas e protocolar o pedido, a petição ainda explicitava os porquês do descumprimento da referida exigência legal:

"A presente petição não vai selada, nem devidamente instruída, porque a paciente se encontra absolutamente desprovida de recursos. O vestido que traz hoje é o mesmo que usava quando foi presa; e o pouco dinheiro, os valores e as roupas que a polícia apreendeu na sua residência até hoje não lhe foram restituídos".

Heitor Lima, por fim, deduzia o pedido:

"Requer, pois, o impetrante que esta Egrégia Corte Suprema: 1º - Determine que o presente pedido se processe sem custas. 2º - Solicite do Snr. Ministro da Justiça informações sobre o alegado neste requerimento, do qual se lhe remeterá cópia. 3º - Requisite os autos do processo de expulsão. 4º - Ordene o comparecimento da paciente para a sessão de julgamento. 5º - Faça submeter a paciente a uma perícia médica, no sentido de precisar o seu estado de gravidez. 6º - Solicite que o Snr. Chefe de Polícia informe se, no inquérito a que, juntamente com Luiz Carlos Prestes, responde a paciente, é Maria Prestes acusada de vários delitos contra a ordem política e social. 7º - Conceda afinal a ordem de hábeas corpus, a fim de que a paciente não seja expulsa do território nacional, sem prejuízo do processo ou processos a que esteja respondendo ou venha a responder".

Heitor Lima datava a petição, 3 de junho de 1936, assinando-a. Bento de Faria, então presidente do Supremo Tribunal Federal, no mesmo dia, 3 de junho, despachou em manuscrito, determinando que o impetrante recolhesse as custas, querendo. Heitor Lima, provavelmente enfurecido, datilografou réplica, de riqueza e de coragem e de nobreza de espírito inalcançáveis:

"Se a justiça masculina, mesmo quando exercida por uma consciência do mais fino quilate, como o insigne presidente da Corte Suprema, tolhe a defesa a uma encarcerada sem recursos, não há de a história da civilização brasileira recolher em seus anais judiciários o registro desta nódoa: a condenação de uma mulher, sem que a seu favor se elevasse a voz de um homem no Palácio da Lei. O impetrante satisfará as despesas do processo. Rio de Janeiro, 4 de junho de 1936. Heitor Lima".

Com a palavra o Supremo Tribunal Federal. É o que segue.

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Sobre o autor
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Professor universitário em Brasília (DF). Pós-doutor pela Universidade de Boston. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Procurador da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GODOY, Arnaldo Sampaio Moraes. Direito e Literatura: Vargas, o Estado Novo, a Lei de Segurança Nacional e o habeas corpus em favor de Olga Benário Prestes.: A história entre foices, martelos e togas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1495, 5 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10245. Acesso em: 29 mar. 2024.

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