Ao constituir uma sociedade empresarial, principalmente na modalidade limitada, os quotistas o fazem acreditando estarem amparados pelo princípio da autonomia patrimonial, apenas possuindo a responsabilidade direta nos limites dos valores de capital social investidos.
Considerando que esta autonomia de direitos e obrigações entre a pessoa jurídica e o sujeito que a constituiu não pode ser absoluta, uma vez que empresários mal-intencionados poderiam praticar atos de abuso da personalidade jurídica, surgiu o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, para que nestes casos os mesmos respondam pessoalmente com seu patrimônio para cobrirem os prejuízos advindos de atos lesivos cometidos pela sociedade empresária.
No entanto, a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, criada pela doutrina e jurisprudência com base numa interpretação ampliativa conferida ao artigo 28, §5º, do Código de Defesa do Consumidor (CDC)1, acaba obrigando os sócios a responderem pelos atos da empresa sem conferir aos mesmos qualquer direito de provarem que não cometeram atos de abuso ou má administração que tenham provocado falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica.
Assim, segundo a referida teoria, basta uma empresa ficar insolvente para que seus sócios possam ser diretamente responsabilizados pelas dívidas da mesma, mesmo que não tenham praticado atos de abuso ou má administração.
O presente estudo visa demonstrar que a teoria menor do CDC se demonstra inconstitucional por ferir frontalmente os constitucionais princípios da livre iniciativa, direito de propriedade, igualdade, ampla defesa e contraditório, principalmente após o advento da Lei de Liberdade Econômica (LLE), de nº 13.874/19, que é lei especial mais recente responsável pela introdução dos artigos 49-A e 50 ao Código Civil Brasileiro (CCB) e que devem ser aplicados para qualquer tipo de relação jurídica, inclusive a consumerista.
O art. 1º do CCB estabelece que “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.”. Assim, partindo-se desta premissa, conclui-se que a personalidade jurídica é instituída com o objetivo de garantir direitos e gerar deveres à mesma perante a sociedade civil.
Por sua vez, o artigo 49-A do mencionado diploma legal, introduzido pela LLE, expressamente prevê o seguinte acerca da pessoa jurídica:
“Art. 49-A. A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
Parágrafo único. A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos.”
Portanto, o artigo supratranscrito possui dois comandos distintos: no caput, estabelece que a pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios e demais membros, sendo que no parágrafo único afirma que “a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos”.
Para melhor compreender a extensão da norma lançada no parágrafo único deste artigo 49-A, há de se atentar ao fato que o legislador, ao utilizar o termo “segregação de riscos”, bem observou o fato de que a abertura de uma empresa gera riscos ao empreendedor e, buscando estimular a livre iniciativa e geração de empregos, fez questão de garantir aos empresários que os mesmos (e seu patrimônio) não se confundiriam com a pessoa jurídica, tanto que na parte final fica destacado que tal garantia se dá “com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos.”.
Porém, como já adiantado, tal garantia não é absoluta, tendo em vista que se o empresário praticar atos de abuso da personalidade jurídica, através de desvio de finalidade ou confusão patrimonial, poderá o juiz proceder a desconsideração da personalidade jurídica para que os bens do empresário sejam atingidos a fim de ressarcir os prejuízos advindos destes atos, nos termos do artigo 50 do CCB, também introduzido pela LLE:
“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.”
Destarte, o artigo 50 do CCB deixa claro quais seriam as exceções à regra da separação patrimonial entre a pessoa jurídica e seus sócios ou membros: a prática de atos de abuso da personalidade jurídica, caracterizados pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, sendo que no § 1º e no § 2º deste mesmo artigo, restou definido, respectivamente, o que se entende por desvio de finalidade e confusão patrimonial:
“§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.” (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
Portanto, a recente LLE, visando garantir o constitucional princípio da livre iniciativa, alterou o CCB para deixar expresso que a pessoa física (e seu patrimônio) não se confunde com a pessoa jurídica, apenas autorizando a desconsideração da personalidade jurídica em casos de abuso da personalidade jurídica (prática de atos de desvio de finalidade ou confusão patrimonial).
Por sua vez, o artigo 1º, IV da Constituição Federal (CF) estabelece o seguinte:
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
...
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;” (grifo nosso)
Há de ser observado que este constitucional direito da livre iniciativa foi garantido logo no primeiro artigo da CF, no elevado rol dos princípios fundamentais, exatamente para servir como um dos pilares/fundamentos do nosso estado republicano.
Portanto, esse princípio fundamental sempre deve ser levado em conta na interpretação de qualquer dispositivo infraconstitucional ou até mesmo quando ocorra confronto entre o mesmo e outra norma constitucional.
Para melhor compreendermos a extensão do princípio fundamental da livre iniciativa, mister se faz voltarmos ao que está harmonicamente definido no artigo 49-A do CCB:
“Art. 49-A. A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
Parágrafo único. A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos.”
Destaca-se que a livre iniciativa não está baseada apenas nos atos administrativos e reguladores a serem adotados pelo estado no sentido de estimular e facilitar a abertura e o funcionamento das empresas, mas também, na necessidade de se garantir direitos mínimos aos empresários que se arriscam a empreender em nosso país, como a devida observância à autonomia patrimonial entre a pessoa jurídica e a pessoa física (ou jurídica) que a constituiu.
Desta forma, o empresário precisa manter garantido o princípio da separação patrimonial, principalmente quando se trata de sociedade por quota de responsabilidade limitada, somente podendo haver exceção a esta regra quando o mesmo praticar atos indevidos, tipificados na legislação. Não pode responder por dívidas de terceiros (a empresa), mesmo que em relações consumeristas, apenas e tão somente porque a mesma ficou insolvente, sob pena de afrontar o princípio da separação patrimonial e a própria modalidade da sociedade por quota de responsabilidade limitada.
Sobre a direta ligação entre o princípio da livre iniciativa e o princípio da autonomia patrimonial, cabe a transcrição de parte dos ensinamentos trazidos por Camila Castanhato2 e Thiago Brazolin Abdulmassih3, no brilhante artigo Sociedades Limitadas e Livre-Iniciativa: Concretização dos Ditames da Constituição Federal de 19884:
“Finalmente, abordando a livre-iniciativa na sociedade limitada pelo viés do princípio da subsidiariedade da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais, temos que, sem a limitação mencionada neste princípio, qualquer empreitada seria extremamente arriscada, porque teria a potencialidade de exaurir todas as reservas financeiras do empresário, com dois resultados: (i) tornaria a empresa uma atividade para poucos, que buscariam lucros excessivos e, após conseguirem se manter, virtualmente dominariam o mercado; (ii) geraria um problema social, pois aqueles que não tivessem sucesso certamente perderiam grande parte do seu patrimônio, sem a possibilidade de empreender novamente, e sob as custas do sistema da seguridade e assistência social.
Inclusive podemos vislumbrar que a sociedade empresarial assume a sua utilidade máxima quando prevê uma forma de limitação da responsabilidade dos sócios, o que é amplamente percebido pelo declínio dos tipos societários que não oferecem esta possibilidade (GONÇALVES, 2010, p. 67).
O princípio da livre-iniciativa, portanto, encontra na sociedade limitada uma das suas formas mais acessíveis de expressão, mas que vem sendo vulnerado por relativizações da separação patrimonial da empresa e os seus sócios, gerando um déficit de efetividade deste princípio, como veremos a seguir.
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Partindo das premissas acima, a livre-iniciativa é fundamento da ordem econômica, bem como fundamenta e justifica a separação patrimonial entre a empresa e os seus sócios.
A sua efetividade, destarte, se encontraria na preservação desta técnica de segregação mesmo nos casos em que a empresa não atinja os resultados econômicos desejados, pois, assim, o empreendedor veria que a sua decisão sobre como empregar apenas parte do seu patrimônio seria respeitada, para que ele, eventualmente, pudesse em outro momento mais favorável buscar outras empreitadas, movimentando a economia sob a égide deste princípio.
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Para que a desconsideração da personalidade jurídica não seja aplicada indiscriminadamente, é necessário que o princípio da livre-iniciativa seja entendido como integrante de uma Constituição que visa ter “força vinculante dos princípios” (MOREIRA NETO, 2005, p. 273) nela encartados. Tais princípios são exigíveis pela via judicial, e no âmbito de uma Constituição inserida na pós-modernidade, se prestam a proteger a humanidade em todas as suas potencialidades, inclusive aquelas de cunho econômico.
Ignorar a autonomia patrimonial da sociedade limitada sem a devida fundamentação, ou com uma fundamentação que não atente ao fato de estarmos protegendo um princípio constitucional fundamental, pode ser encarado como um ato de violência simbólica, instituindo uma luta de classes que se procura debelar pela conciliação no texto constitucional, a partir do momento que o trabalho e a livre-iniciativa são colocados em conjunto ao sagrarem-se fundamentais à República e à ordem econômica.
O princípio da livre-iniciativa, diretamente conectado com a proteção à propriedade privada coletiva, e os princípios da autonomia patrimonial da sociedade empresária e da subsidiariedade da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais, devem ser tomados pelo viés prospectivo (MOREIRA NETO, 2005, p. 277), de forma que os atos dos Poderes que compõem a União possibilitem a criação de novas empresas socialmente responsáveis e alinhadas aos demais valores constitucionais, em detrimento do viés retrospectivo, pelo qual a atuação – principalmente do Poder Judiciário – se dá sobre fatos pretéritos, procurando corrigir injustiças.
...
Pelo que foi amealhado quando da pesquisa, foram encontrados diversos textos legais que fragilizaram a independência entre os patrimônios da empresa e dos quotistas, o que, se de um lado facilita a cobrança por credores, impõe mais riscos à atividade empresarial, o que enseja custos em cadeia para que possamos tratar de atividades lucrativas. É assim que enxergamos, por exemplo, a facilitação da desconsideração promovida pelo atual Código de Processo Civil em seus arts. 133 a 137, que passam a ser aplicados junto a outros textos legais que privilegiam a ampla busca na satisfação de créditos contra as empresas em detrimento da racionalização do risco empresarial: o art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, o art. 34 da Lei 12.529/2011 e o art. 4º da Lei 9.605/1998.
Fundada na interpretação do texto constitucional e nos tratados internacionais, visamos demonstrar que os argumentos a favor da ampla desconsideração devem ser admitidos cum grano salis. Proteger a constituição legítima de sociedades limitadas é dar oportunidade a empreendedores de todos os matizes, e se alinha à proposta de termos instrumentos jurídicos efetivos, que auxiliam na resolução os conflitos apresentados pela sociedade (SALAMA, 2008, p. 61) – no nosso caso, os conflitos característicos da economia, centrados na distribuição de recursos escassos.
Para tanto, como derradeira mensagem, têm-se que é essencial que o princípio da livre-iniciativa seja reconhecido como de igual valor dos demais princípios constitucionais, para que o empresário criador de novas iniciativas se sinta confortável e guarnecido na ordem jurídica, e não sob a pressão constante de riscos superiores aos que ele pode assumir. A efetividade da livre-iniciativa como fundamento para a separação patrimonial, para milhares de sócios de sociedades limitadas em funcionamento no Brasil, passa a ser a forma jurídica de racionalização dos riscos, e a sua defesa adequada, a contribuição que a comunidade jurídica pode dar ao desenvolvimento nacional.”
Nesse viés, resta evidente que a interpretação conferida pela doutrina e jurisprudência ao art. 28, §5º do CDC, no sentido de criar a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, demonstra-se flagrantemente inconstitucional, por não levar em consideração o princípio fundamental da livre iniciativa, que é constitucionalmente assegurado pelo artigo 1º, IV da nossa Carta Magna.
Ademais, tal interpretação conferida ao artigo 28, §5º do CDC para sustentar a “teoria menor” torna inócuo o próprio caput do aludido artigo, não sendo essa a intenção do legislador. Não por outra razão, Fábio Ulhoa Coelho5 apresenta a correta interpretação a ser dada ao aludido §5º:
“Em primeiro lugar, porque contraria os fundamentos teóricos da desconsideração. Como mencionado, a disregard doctrine representa um aperfeiçoamento do instituto da pessoa jurídica, e não a sua negação. Assim, ela só pode ter a sua autonomia patrimonial desprezada para a coibição de fraudes ou abuso de direito. A simples insatisfação do credor não autoriza, por si só, a desconsideração, conforme assenta a doutrina na formulação maior da teoria. Em segundo lugar, porque tal exegese literal tornaria letra morta o caput do mesmo art. 28 do CDC, que circunscreve algumas hipóteses autorizadoras do superamento da personalidade jurídica. Em terceiro lugar, porque essa interpretação equivaleria à eliminação do instituto da pessoa jurídica no campo do direito do consumidor, e, se tivesse sido esta a intenção da lei, a norma para operacionalizá-la poderia ser direta, sem apelo à teoria da desconsideração.”
Sobre esta questão, também cabe transcrição de parte do artigo produzido pelos Professores Maria Macena de Oliveira; Jussara Borges Ferreira e Galdino Luiz Ramos Junior6:
“Vale mencionar que, apesar de sua inovação, o CDC sofreu severas críticas de renomados estudiosos sobre o tema, vez que ficou claro que a desconsideração ali prevista não levou em conta a noção de fraude.
Um dos principais pontos de crítica ao CDC é exatamente o §5º do art. 28, sendo este considerado pela doutrina como uma verdadeira atecnia legislativa. Isso se caracteriza pelo fato do citado parágrafo ser mais amplo do que o próprio caput do artigo, dando uma abrangência desproporcional para aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.
Ora, jamais um parágrafo de um artigo pode ser mais amplo do que o caput, sendo esta uma grave falha do legislador ordinário que reflete diretamente na aplicação da desconsideração, inclusive refletindo em aspectos econômicos.”
Por sua vez, segundo Luciano Amaro7:
“O enunciado do parágrafo é tão genérico, abrangente, ilimitado, que, aplicado literalmente, dispensaria o caput do artigo, e tornaria inócua a própria construção teórica da desconsideração, implicando em derrogar (independentemente de qualquer abuso ou fraude) a limitação de responsabilidade dos sócios de todos e qualquer empresa fornecedora de bens ou serviços no mercado de consumo.”.
Como se não bastasse, o artigo 170 da CF estabelece expressamente que a ordem econômica é fundada na livre iniciativa, bem como, que deve ser observado o princípio da propriedade privada, dentre outros.
Tem-se, pois, que a legislação infraconstitucional deve respeitar os preceitos constitucionais da livre iniciativa e propriedade privada.
Portanto, o afastamento do princípio da autonomia patrimonial das sociedades limitadas sem que haja um justo motivo para tal exceção, acaba por ferir o princípio do direito de propriedade, pois os sócios da empresa terão sua propriedade penhorada para responder por dívida de terceiros (no caso, a sociedade empresária), sem que os mesmos tenham praticado qualquer ato que contribuísse para o surgimento daquela dívida (ferindo, nesse ponto, os constitucionais princípios do direito à propriedade, do contraditório e ampla defesa, pois perdem sumariamente os seus bens, sendo impedidos de fazerem uso, de forma regular e tempestiva, do direito ao contraditório e à ampla defesa).
A contradição reside no seguinte ponto: se o empresário perder seus bens, automaticamente, nos casos decorrentes de relações de consumo em que o patrimônio da empresa não for suficiente para arcar com eventuais prejuízos causados a terceiros, então qual a razão da existência do instituto da separação patrimonial e das sociedades por quota limitada se a quase totalidade das relações jurídicas de uma empresa são de consumo?
Na mesma linha de raciocínio, qual a razão do próprio instituto da desconsideração da personalidade jurídica, se nesses casos a responsabilidade pessoal será automática? Resta evidente que esta teoria menor do CDC é inconstitucional, ainda porque nem sempre a insolvência ou falência de uma empresa ocorre por decorrência de atos de abuso da personalidade jurídica, má administração ou má-fé pelos sócios da mesma.
Tomemos como clássico exemplo a gravíssima crise econômica gerada pela pandemia da COVID- 19 que forçou a paralização total das atividades das empresas nos períodos de lockdown e a proibição de funcionamento por vários meses consecutivos às empresas que não atuavam nas atividades consideradas essenciais. Este fato, considerado um caso fortuito ou força maior (conforme a interpretação a ser dada), que gerou a insolvência e/ou a falência de um sem número de empresas em todo o país, na sua esmagadora maioria não ocorreu por culpa dos sócios das empresas, que certamente também foram vítimas deste lamentável episódio, assim como os consumidores.
Portanto, o princípio da autonomia patrimonial não pode deixar de ser considerado quando do exame de um pedido de desconsideração da personalidade jurídica, pois anda lado a lado com o princípio constitucional da livre iniciativa.
É inegável que, sem a garantia da autonomia patrimonial, milhares de empresários deixarão de empreender, em decorrência do elevado risco de perderem seu patrimônio pessoal em casos como o previsto no art. 28, §5º do CDC, sendo certo que a esmagadora maioria das suas atividades comerciais são classificadas como relações de consumo.
Noutro giro, como já afirmado, cabe ser destacado que no art. 170 da CF está previsto que a ordem econômica também deve observar a defesa do consumidor. Porém, para garantir este princípio constitucional da defesa do consumidor basta que o intérprete siga o estabelecido no artigo 50 do CCB, ou, ao menos, o caput do art. 28 do CDC. Jamais poderá conferir uma interpretação ampliativa a um procedimento que é restritivo de direitos, como o da desconsideração da personalidade jurídica.
Assim, a interpretação (inconstitucional) até agora conferida ao art. 28, §5º do CDC, acabou criando uma modalidade de desconsideração da personalidade jurídica que contraria o próprio caput do aludido artigo e, principalmente, o art. 1º, IV c/c 170, II da CF.
Cabe ser salientado, ainda, que o CDC entrou em vigor na década de 1990 enquanto que a nova redação do art. 50 do CCB deu-se em 2019. Portanto, estamos diante de um conflito de normas provenientes de legislações especiais, devendo, por óbvio, prevalecer a norma mais recente que, sem dúvidas, se encontra harmonicamente alinhada aos ditames constitucionais.
Observe-se que o art.1º, §1º da LLE deixou expresso que o disposto na aludida lei será “observado na aplicação e na interpretação do direito civil, empresarial, econômico...”, sendo certo que quando há uma relação de consumo, automaticamente, nesta mesma relação, também se está diante de uma relação civil, devendo prevalecer, então, as normas elencadas nesta legislação especial, que, inclusive, é posterior ao CDC.
Nesse diapasão, a declaração de inconstitucionalidade do art. 28, §5º do CDC deve ser buscada, uma vez que, além dos princípios mencionados, tal dispositivo fere, ainda, o princípio da igualdade estampado no art. 5º da CF, em virtude da disparidade de tratamento aos créditos de que são titulares os consumidores e os demais créditos de outros parceiros contratuais, como os trabalhistas, fiscais e quirografários, por exemplo.
Cabe deixar registrado, por fim, que de modo algum a adoção destas medidas deixará o consumidor desprotegido, ante a garantia do art. 50 do CCB, podendo-se promover a desconsideração da personalidade jurídica quando a empresa ficar insolvente ou falir em decorrência de atos praticados pelos seus sócios de forma abusiva (desvio de finalidade ou confusão patrimonial).
Tais reflexões merecem ser urgentemente debatidas no atual momento, tendo em vista que a quase totalidade das relações jurídicas das empresas em nosso país ocorre através de alguma relação de consumo e em virtude da grave crise econômica mundial gerada pela pandemia da COVID-19, que culminou em terríveis consequências para milhares de empresas, de forma imprevisível e inevitável, sendo que os sócios de grande parte destas empresas estão sendo obrigados a responder pessoalmente com os seus bens (e, consequentemente, de suas respectivas famílias) pelas dívidas de terceiros (as empresas), sem terem, ao menos, a oportunidade de tentarem provar que tais dívidas não surgiram em decorrência de atos de abuso da personalidade jurídica, má administração ou má-fé praticados pelos mesmos.
Nesse diapasão, é imperioso afirmar que com o advento da LLE – norma especial mais recente que o CDC - foi reforçada a necessidade de se observar o princípio da autonomia patrimonial, em homenagem ao constitucional princípio da livre iniciativa, devendo, então, passar a ser aplicado apenas o estabelecido nos artigos 49-A e 50 do Código Civil, afastando-se o artigo 28 e seu §5º do CDC, tornando-se urgente uma nova análise doutrinária e jurisprudencial sobre este importante tema para que não haja um desestímulo ao empreendedorismo em nosso país.
Por fim, mas não menos importante, é válido destacar que ao apreciar, em 2010, o Recurso Extraordinário nº 5622768, com Repercussão Geral – Tema 13, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucional a norma previdenciária que previa a responsabilidade solidária automática dos sócios quando houvesse débito daquela natureza, por considerar que “não é dado ao legislador estabelecer confusão entre os patrimônios das pessoas física e jurídica, o que, além de impor desconsideração ex lege e objetiva da personalidade jurídica, descaracterizando as sociedades limitadas, implica irrazoabilidade e inibe a iniciativa privada, afrontando os arts. 5º, XIII, e 170, parágrafo único, da Constituição.”.
Tal raciocínio deve se aplicar, por pressuposto lógico, à situação examinada no presente artigo.