Resumo: O presente trabalho visa analisar o instituto do impedimento cautelar do direito de licitar e contratar com a Administração Pública, perante a ótica da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, Lei nº 14.133/2021, como meio garantidor da preservação do interesse público. Para tanto, foi adotado o método de abordagem dialético e hipotético-dedutivo, utilizando como elementos de pesquisa a bibliografia, artigos, doutrina e jurisprudência. Alicerçado em uma interpretação extensiva da lei e de princípios, como o do interesse público, conclui-se pela possibilidade de a Administração Pública aplicar o instituto do impedimento cautelar, nos processos administrativos sancionatórios movidos em face de licitantes e contratados que infringiram regras estabelecidas em edital e/ou contrato administrativo, sem a prévia ciência e manifestação desses particulares, uma vez que a NLLC deixou de prever as especificidades de aplicação, permitindo assim a salvaguarda do interesse coletivo.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho estuda o instituto do impedimento cautelar de licitar e contratar com a Administração Pública nos processos administrativos sancionatórios como meio de resguardar o patrimônio e a ordem pública, investigando o instituto das medidas cautelares, como forma de esclarecer a extensão da sua aplicabilidade, uma vez que a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos deixou de trazer parâmetros para a sua aplicabilidade.
No curso do processo licitatório ou até mesmo durante a execução do contrato administrativo, é comum que a Administração Pública se depare com cometimento de fraudes, malversação de recursos públicos e reincidentes descumprimentos contratuais por parte de licitantes e contratados.
À vista dessas situações, incumbe ao Estado a necessidade/obrigatoriedade de adotar medidas que afaste os particulares que cometeram tais condutas ilegais, bem como que evite que novos ilícitos administrativos tornem a ser praticados por licitantes e contratados.
Nestes casos é que se questiona a aplicabilidade do impedimento cautelar de licitantes e contratados, pois ao se deparar com provas robustas do cometimento de graves ilícitos, se a Administração aguardar o término do processo administrativo, poderá colocar em risco o funcionamento de seus serviços, principalmente quando se tratar de contratações essenciais para o desempenho do órgão ou da entidade.
Nesse contexto este trabalho se insere, objetivando analisar as possibilidades de aplicação e as razões para justificar a incidência do impedimento cautelar às empresas licitantes e contratadas que podem ameaçar a ordem pública e conferir um real prejuízo para a Administração e, consequentemente, para a sociedade.
2. A RELEVÂNCIA DA APLICAÇÃO DAS SANÇÕES ADMINISTRATIVAS AOS LICITANTES E CONTRATADOS
Com o advento da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, Lei nº 14.133/2021, a gestão de riscos, o compliance e a governança jurídica na Administração Pública ganharam força como meio garantidor da efetividade na promoção dos interesses da sociedade, tornando-se ainda mais visível e relevante o alcance do Direito Administrativo Sancionador nas condutas que feriram ou possam vir a ferir o interesse público.
A Administração Pública, ao contratar com particulares, necessita de meios viáveis para garantir a entrega dos produtos e serviços contratados, além de punir aqueles que deixaram de cumprir as regras estipuladas em contrato e, para isso, utiliza-se das suas prerrogativas contratuais denominadas de cláusulas exorbitantes, que são, conforme Di Pietro:
[…] aquelas que não seriam comuns ou que seriam ilícitas em contrato celebrado entre particulares, por conferirem prerrogativas a uma das partes (a Administração) em relação a outra; elas colocam a Administração em posição de supremacia sobre o contratado (DI PIETRO, 2014, p. 314).
Analisando a incidência de cláusulas exorbitantes na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, Ronny Charles Lopes de Torres (2021, p. 569), entende que o art. 104 do referido diploma elenca alguns exemplos dessas cláusulas de privilégio, possibilitando a modificação unilateral do contrato, extinção unilateral dos contratos, fiscalização da execução dos contratos, aplicação de sanções e ocupação provisória.
As cláusulas exorbitantes, portanto, se referem às prerrogativas de fiscalização, alteração e rescisão unilaterais do contrato, à exceção do contrato não cumprido e, principalmente ao que pertine a este trabalho, ao direito de aplicar sanções aos administrados.
Este último, também advindo do princípio da autoexecutoriedade, pautado no poder que a Administração Pública possui de executar as suas próprias decisões sem a necessidade de tutela judicial.
Deste modo, proveniente do Direito Penal que, tradicionalmente possui caráter opressor e punitivo de comportamentos que ofendem bens jurídicos relevantes para a sociedade, o Direito Administrativo Sancionador obedece a uma lógica de punir, pautada em garantir direitos materiais e processuais. Neste sentido, Sandro Lúcio Dezan complementa que:
Com efeito, o direito público sancionador abrange o direito material e o direito processual punitivo do Estado, configurando, assim, o conjunto de normas materiais e processuais que dão base aos subsistemas representativos do jus puniendi e do jus pesequendi estatais. (DEZAN, 2021, p. 39)
Sob este prisma, Anielo Parziale explicita que:
Reconhece-se o caráter administrativo de uma sanção em razão da autoridade competente para impô-la. Apenas existirá sanção administrativa, portanto, quando o Estado estiver no exercício da função administrativa, a exemplo de quando se socorre de particulares para a persecução de seus objetivos institucionais, seja de forma típica ou atípica, no âmbito dos Poderes constituídos, vale dizer, Executivo, Legislativo e Judiciário.
As sanções administrativas caracterizam-se como atos administrativos punitivos extroversos, ou seja, aplicados aos administrados. São punitivos os atos que têm por objeto a aplicação de sanções impostas pela Administração, nas hipóteses em que lhe couber reprimir violações ao Direito. (PARZIALE, 2021, p. 121).
Assim sendo, como forma de efetivar a garantia do interesse público e a boa prestação do serviço público, o Estado possui a prerrogativa de imputar sanções administrativas aos licitantes e contratados que se vinculam ao órgão através do Edital do certame e/ou através do contrato administrativo e que deixaram de cumprir as regras preestabelecidas.
Nesta toada, se por um lado o Direito Penal é tradicionalmente conhecido pelo seu caráter opressor, como dito alhures, o Direito Administrativo Sancionador possui o condão de prevenir condutas malquistas e evitar danos potenciais que ameaçam, mesmo que indiretamente, a sociedade. Eis, portanto, a função da sanção administrativa, resguardar o interesse público.
Sobre a função do Direito Administrativo Sancionador, o Manual de Sanções do Tribunal de Contas da União de 2020 define que ele possui caráter duplo, quer seja, a função educativa e a repressiva, tanto para mostrar que condutas ilícitas não serão toleradas quanto para repreender e impedir que a Administração e a Sociedade sofram prejuízos pelos licitantes e contratados, vejamos:
Podemos afirmar que a aplicação das sanções administrativas tem dupla finalidade. A primeira é de caráter educativo e busca mostrar à licitante e contratada que cometeu o ato ilícito, e também às demais licitantes/contratadas, que condutas dessa natureza não são toleradas pela Administração, de forma a reprimir a violação da legislação. Outra finalidade da sanção administrativa tem caráter repressivo, e busca impedir que a Administração e a sociedade sofram prejuízos por licitantes/contratados que descumprem suas obrigações.
Sob este aspecto, o professor Hely Lopes Meireles (1973, p. 23) já enfatizara que a jurisdição é a atividade estatal de dizer o direito, sendo certo que para uma boa gestão pública é substancial que o direito administrativo sancionador seja aplicado em sua completude, alcançando a sua dupla finalidade, fazendo com que o interesse público seja resguardado.
Assim, é cediço que a aplicação de sanções administrativa é, por si só, de suma importância para resguardar o interesse público. Todavia, em que pese a matéria possuir grande relevância, ela enfrenta diversos embaraços para solidificar a sua aplicabilidade de maneira efetiva, uma vez que a NLLC deixou de trazer critérios específicos para a sua aplicação e, inclusive, acerca da aplicação das medidas liminares, carecendo o tema de legislação específica.
3. A NECESSIDADE DE AVENTAR O IMPEDIMENTO CAUTELAR DE LICITAR E CONTRATAR COM O PODER PÚBLICO
No curso do processo licitatório ou, até mesmo durante a execução do contrato administrativo celebrado com particulares, é comum que a Administração se depare com cometimento de fraudes, malversação de recursos públicos e reincidentes descumprimentos contratuais, condutas que atrapalham o bom andamento do certame licitatório e a boa execução contratual, lesando, muitas vezes, de forma direta o bem jurídico aqui tutelado.
À vista dessas situações, o Estado se vê na necessidade/obrigatoriedade de adotar medidas que afastem os particulares que cometeram tais condutas ilegais, bem como que evite que novos ilícitos tornem a ser praticados por tais licitantes e contratados.
Notadamente, tais medidas restritivas são tomadas com fulcro no exercício do poder disciplinar, decorrente da relação existente entre a Administração Pública e a empresa licitante ou contratada.
Na lição de Hely Lopes Meirelles, o poder disciplinar é:
a faculdade de punir internamente as infrações funcionais dos servidores e demais pessoas sujeitas à disciplina dos órgãos e serviços da Administração. É uma supremacia especial que o Estado exerce sobre todos aqueles que se vinculam à Administração por relações de qualquer natureza, subordinando-se às normas de funcionamento do serviço ou do estabelecimento que passam a integrar definitiva ou transitoriamente (MEIRELLES, 2009, p. 126).
Matheus Carvalho (2019, p. 130) entende que o poder disciplinar é a atribuição pública de aplicação de sanções àqueles que estejam sujeitos à disciplina do ente estatal, ou seja, é o poder de aplicar sanções a todos aqueles que tenham vínculo de natureza especial com o Estado, como é o exemplo daqueles que disputam licitação e celebraram contrato com o Poder Público.
Como abordado alhures, deriva do poder disciplinar, a possibilidade de a Administração Pública aplicar sanções administrativas, estas que na lição de Torres e Pedra não tem a função precípua de:
impor consequências (econômicas ou restritivas) desagradáveis ao particular, mas garantir a eficácia das normas de conduta previamente estipuladas no edital ou no contrato, numa espécie de indução do particular para o comportamento desejado pela Administração, servindo como instrumento de prevenção e de caráter pedagógico (PEDRA e TORRES, 2021, p.212).
O poder disciplinar administrativo, portanto, tem o objetivo de promover a regularidade do serviço público com a correção do comportamento das empresas licitantes e contratadas dos deveres a elas impostos, sob pena de ineficácia e descrédito das punições administrativas tardiamente infligidas.
A Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, Lei Federal nº 14.133/21, absorveu características importantes tanto da Lei nº 8.666/93, que em breve revogada, como da Lei do Pregão, Lei nº 10.520/2002, estabelecendo um regime jurídico sancionatório que mescla os anteriores e apresenta alguns avanços (TORRES, 2021, p. 755).
Nesse sentido, em seu art. 156, a Lei nº 14.133/21 elencou as sanções à disposição da Administração Pública com o objetivo de repreender licitantes e contratados que cometem infrações administrativas, quais sejam: advertência, multa, declaração de inidoneidade e o objeto de nosso estudo: o impedimento de licitar e contratar com a Administração Pública.
Consoante ensinamento de Torres (2021, p. 759), com o propósito de mesclar as sanções previstas na Lei 8.666/93 e na Lei 10.520/02, a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos retirou a sanção de suspensão de licitar, que se tornou desnecessária em decorrência à inserção da sanção de impedimento de licitar e contratar, com maior amplitude restritiva.
Deveras, o impedimento de licitar e contratar previsto no artigo 156, inciso III, da Lei 14.133/21, é inspirado na sanção prevista no art. 7º da Lei do Pregão (TORRES, 2021, p. 761) e será aplicada ao responsável pelas infrações administrativas previstas nos incisos II, III, IV, V, VI e VII do caput do art. 155 desta Lei, quais sejam:
Art. 155. O licitante ou o contratado será responsabilizado administrativamente pelas seguintes infrações:
[...]
II - dar causa à inexecução parcial do contrato que cause grave dano à Administração, ao funcionamento dos serviços públicos ou ao interesse coletivo;
III - dar causa à inexecução total do contrato;
IV - deixar de entregar a documentação exigida para o certame;
V - não manter a proposta, salvo em decorrência de fato superveniente devidamente justificado;
VI - não celebrar o contrato ou não entregar a documentação exigida para a contratação, quando convocado dentro do prazo de validade de sua proposta;
VII - ensejar o retardamento da execução ou da entrega do objeto da licitação sem motivo justificado;
Com efeito, segundo § 4º, do referido dispositivo, a aplicação da sanção será realizada quando não se justificar a imposição de penalidade mais grave, e impedirá o responsável de licitar ou contratar no âmbito da Administração Pública direta e indireta do ente federativo que tiver plicado a sanção, pelo prazo máximo de 3 (três) anos.
Ressalte-se, pois, que a amplitude dos efeitos restritivos da sanção de impedimento de licitar e contratar é somente do ente federativo que tiver aplicado a sanção. Isto é, o caráter da sanção é funcional e não geográfico, sendo assim, caso a sanção tenha sido aplicada por um órgão federal, isso não afetará o direito de licitar e contratar com Estados e Municípios.
Sucede-se que, para a aplicação da sanção administrativa é necessário o prévio processo administrativo em que seja assegurado ao suposto infrator os direitos à ampla defesa e ao contraditório, conforme expressa dicção do art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal.
Neste sentido, mister conter na legislação as possibilidades de sanções, inclusive, como elucida Marcelo Madureira Prates, “é imperioso que a possibilidade de antecipação da sanção administrativa venha expressa em ato normativo, não podendo jamais resultar de uma livre opção da autoridade administrativa sancionadora” (PRATES, 2005, p. 204).
Todavia, pelo fato de a Nova Lei de Licitação não prever expressamente a descrição dos procedimentos a serem adotados pela Administração para aplicação das penalidades, é cediço na praxe administrativa, jurisprudência e doutrina pátria que se aplicam as regras contidas na Lei nº 9.784/99 no âmbito do processo administrativo sancionador, uma vez que o próprio art. 69 do referido diploma permite expressamente a aplicação subsidiária dos preceitos ali contidos. A saber:
Art. 69. Os processos administrativos específicos continuarão a reger-se por lei própria, aplicando-se-lhes apenas subsidiariamente os preceitos desta Lei.
Apoiado, portanto, na aplicabilidade da Lei 9.784/99 no âmbito do processo administrativo sancionador, é que se investiga a aplicabilidade do art. 45 do referido diploma para a aplicação das penalidades previstas no art. 156, III, 14.133/21, qual seja, a possibilidade de o Estado impedir cautelarmente o direito de uma empresa de participar de licitação e contratar com a Administração Pública antes do término do processo administrativo instaurado para apurar a suposta conduta ilícita.
Para tanto, vejamos o disposto no art. 45, da Lei nº 9.784/99:
Art. 45. Em caso de risco iminente, a Administração Pública poderá motivadamente adotar providências acauteladoras sem a prévia manifestação do interessado.
À vista disso, relevante se faz o presente estudo, especialmente porque é crescente número de fraudes, descumprimentos e inexecuções perpetrados pelos licitantes e contratados que, geralmente, são fartamente demonstrados por meio de provas na apuração dos processos administrativos sancionatórios.
Notadamente, é bem verdade que, em muitos desses processos e casos, a relação fornecedor/cliente que existia entre a Administração e particular já está extremamente desgastada, fazendo com que se perca a confiança na prestação do serviço ou na contratação, urgindo a tomada de decisão por parte da Administração Pública com escopo preventivo, evitando novos ilícitos, uma vez que o tempo do trâmite do processo administrativo se apresenta como um verdadeiro perigo, podendo acarretar novas lesões ao patrimônio público.
Diante dessa conjuntura se aventa a possibilidade de impedimento cautelar do direito de licitar e contratar com a Administração Pública, pois até o presente momento o Estado não possui um instrumento hábil e ágil de impedir, ainda que temporariamente, a participação do particular em processos licitatórios e a sua contratação, consequentemente, em muitos casos a Administração pode ficar impedida de adquirir produtos ou serviços essenciais ao seu funcionamento, sobretudo se a empresa suspeita continuar vencendo novas licitações antes do término do regular processo legal.
4. O IMPEDIMENTO CAUTELAR DE LICITAR E CONTRATAR COMO MEIO DE PRESERVAÇÃO DO INTERESSE PÚBLICO
Na esteira da governança da Administração Pública, abarcada pelo Decreto Federal nº 9.203/2017, o artigo 2º define essa função como o conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para avaliar, direcionar e monitorar a gestão, com vistas à condução de políticas públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade.
Dessa maneira, a governança atua em conjunto com a gestão pública, de modo que enquanto a primeira visa conferir efetividade e economicidade, estabelecendo diretrizes em conformidade com os interesses da sociedade, a gestão possui o fito de planejar a forma mais adequada de implementar as diretrizes estabelecidas, conferindo eficácia e eficiência à execução dos planos traçados.
Nesse sentido, realizar a gestão de contratos de maneira eficaz, significa que o gestor público, ao se deparar com faltas e inexecuções da empresa contratada ou da licitante, possui o dever de instaurar o devido processo administrativo sancionatório, informando, inclusive, quais os danos foram causados à Administração, razão pela qual, a Nova Lei de Licitações e Contratos reforça a presença de uma conduta ativa na gestão de riscos, conforme disposto em seus artigos 11, parágrafo único e 169, caput, vejamos:
Art. 11. O processo licitatório tem por objetivos:
(...)
Parágrafo único. A alta administração do órgão ou entidade é responsável pela governança das contratações e deve implementar processos e estruturas, inclusive de gestão de riscos e controles internos, para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e os respectivos contratos, com o intuito de alcançar os objetivos estabelecidos no caput deste artigo, promover um ambiente íntegro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias e promover eficiência, efetividade e eficácia em suas contratações.
Art. 169. As contratações públicas deverão submeter-se a práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e de controle preventivo, inclusive mediante adoção de recursos de tecnologia da informação, e, além de estar subordinadas ao controle social, sujeitar-se-ão às seguintes linhas de defesa:
Sob este aspecto, mister elucidar que as normas devem estar coerentes com os caminhos traçados pela sociedade, buscando ser interpretado em conjunto, de modo que não surjam contradições e espaço para anomalias jurídicas. Assim, um sistema jurídico é caracterizado pela dinamicidade das normas que vigoram no ordenamento jurídico e organizam a sociedade, de forma que o Direito deve ser interpretado sistematicamente, englobando decisões e movimentos hodiernos, aumentando a flexibilização e harmonização da justiça para o alcance o seu ideal.
Desta forma, observando o direito como um sistema dinâmico, modificado em conformidade com a evolução da sociedade, depreende-se que hoje é inconcebível que a atuação da Administração Pública esteja em desconformidade a prestar a melhor resposta à sociedade, resguardando os bens coletivos diretamente tutelados.
Como vimos alhures, a sanção prevista no inciso III do caput do art. 156, da Lei nº 14.133/21, impedirá o sancionado de licitar e contratar no âmbito da Administração Pública direta e indireta do ente federativo que tiver aplicado a sanção, pelo prazo máximo de 3 (três) anos, nos termos do § 4º do mesmo artigo.
Entretanto, para a execução da sanção é necessário o devido processo legal, este que, em alguns casos em que o particular se mostra reincidente ou existem provas inquestionáveis sobre o ilícito administrativo cometido, razões pelas quais o curso do processo sancionador pode ser um verdadeiro potencial de lesar o interesse público, pois esses particulares podem continuar vencendo licitações e contratando com o Poder Público, gerando uma sequência de inexecuções com prejuízos inestimáveis para o patrimônio público.
Rememorando a análise feita no capítulo anterior, percebemos que o disposto no art. 45, da Lei 9.784/99, permite que a Administração Pública tenha a prerrogativa de, em caso de risco iminente, poder motivadamente adotar providências acauteladoras sem a prévia manifestação do interessado.
Analisando o referido dispositivo, Miranda (2010, p. 23) entende que tal previsão não afronta a Constituição Federal/1988. Pelo contrário, na verdade, em muitas situações, se a Administração Pública não adotar tais medidas acauteladoras é que estará indo de encontro à Constituição, na medida em que colocaria em risco o interesse público. Veja:
Tal previsão não representa afronta às garantais constitucionais dos administrados à ampla defesa e ao contraditório, porquanto, em muitas situações, a Administração agiria ao arrepio das normas e dos princípios previstos na Constituição Federal, caso tivesse de aguardar o desfecho do processo administrativo para aplicar determinadas medidas restritivas à liberdade e ao patrimônio dos administrados, necessárias para resguardar o interesse público de risco iminente.
Todavia, consoante lição de Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari (2007, p. 150), vislumbra-se dois requisitos para a adoção de medida cautelar em processo administrativo, quais sejam "a configuração de risco iminente e a motivação, que engloba a necessidade de demonstrar existirem indícios suficientes que amparem a adoção da medida até a devida apuração dos fatos".
Ademais, tal como as medidas cautelares judiciais, em que exigem a demonstração do fumus boni juris e do periculum in mora, depreende-se também que a medida cautelar em âmbito administrativo, que ora se aventa, não deve ultrapassar as restrições estritamente necessárias para resguardar o interesse público do risco a que está exposto.
Em outros termos, a medida cautelar prevista no art. 45 da Lei nº 9.784/99 não pode antecipar a sanção a ser cominada ao fim do processo e nem pode se assemelhar à penalidade que eventualmente será aplicada ao final do processo, uma vez que essas sanções também tem caráter de proteção do interesse público (MIRANDA, 2010, p. 24).
Investigando a possibilidade cautelar dos efeitos restritivos das sanções administrativas, Torres (2021, p. 767) defende que, excepcionalmente, em situações extraordinárias, até as renovações com empresas possuindo restrição poderiam ser temporariamente admitidas, para evitar prejuízos maiores. Para o autor, em casos extraordinários, o interesse público tutelado pela contratação essencial, pode ter objetivos nobres relacionados à saúde e segurança pública, verbi gratia, podendo nesses casos sobrepor a legalidade.
Nesse ponto é que, mesmo sob o silêncio da doutrina e jurisprudência, o debate sobre a aplicabilidade do impedimento cautelar de licitantes e contratantes ganha relevo, pois ao se deparar com provas robustas do cometimento de graves ilícitos, se a Administração aguardar o término do processo administrativo, poderá colocar em risco o funcionamento de seus serviços, principalmente quando se tratar de contratações essenciais para o desempenho do órgão ou da entidade.
Observemos, a exemplo, a situação de empresas de prestação de serviços de mão de obras terceirizadas, como limpeza, segurança e portaria, que, por muitas vezes, possuem contratos com quantias vultuosas, e que no decorrer da prestação de serviço deixam de efetuar o pagamento de seus colaboradores, incorrendo em uma série de inexecuções contratuais.
Nesses casos, esses particulares poderiam seguir contratando com o poder público mesmo demonstrando que não possuem condições de arcar com os contratos em andamento?
Por esta ótica, não possuir sanção aplicada não é, ou ao menos não deveria ser, requisito para a aplicação de sanção cautelar, sendo certo que, mesmo com o processo em curso, a empresa poderá ter seus direitos de contratar com o órgão liminarmente suspensos, pois, o que ela causou à Administração foi tão grave que justifica a imposição de tal medida.
Noutro passo, a aplicação da medida cautelar pressupõe, além da plausibilidade do direito invocado e a probabilidade da ocorrência de um dano potencial, a reversibilidade da medida que, para o Ministro Og Fernandes no julgamento do REsp 1.779.976, não se aplica no presente caso, pois mesmo que se esteja sancionando uma pessoa jurídica, as pessoas físicas responsáveis sentirão os prejuízos da medida, sendo estes, por muitas vezes irreversíveis, devendo a decisão ser pautada no dever geral de cautela do artigo 297, do Código de Processo Civil.
A respeito do artigo 297 do CPC, Cássio Scarpinella Bueno (2015, p. 216) leciona que o dispositivo este “dever-poder” pode ser empregado tanto para fins de cautelar, garantindo o resultado útil do processo, como também para fins de satisfação imediata de um direito.
Sob este ponto, fundamenta-se, ainda, que a irreversibilidade da medida está pautada no questionamento que a antecipação da medida sancionatória, via cautelar, possui natureza jurídica de sanção, fato que, por si só, impediria a tutela antecipada, ferindo os princípios do contraditório, ampla defesa e devido processo legal do artigo 5º, LIV e LV da Constituição Federal.
Contudo, vivemos a era da interpretação neoconstitucionalista do Direito, que Prieto Sanchís, estimulado pelas teorizações de Robert Alexy, entende como postura teórica que possui “mais princípios que regras; mais ponderação que subsunção; mais Constituição que lei; mais juiz que legislador; e pela coexistência de uma constelação plural de valores, por vezes contraditórios, antes que homogeneidade ideológica” (WOLKMER e MELO, 2013).
O devido processo legal, que deve ser respeitado para possibilitar a sanção administrativa, deriva também do princípio da legalidade, decorrente do Estado de Direito e fundamentalmente garantista e está elencado em diversas passagens da Constituição (art. 5, II e art. 37 da CFRB/88) buscando atender os valores de justiça, segurança jurídica, obrigando a vinculação do Estado às normas de conduta que produz (FONTE, 2009).
Por esse ângulo, Torres (2021, p. 768) discorre que em situações em que há restrições ao direito do particular de ser contratado em função da aplicação de sanção administrativa, sendo que ele é o único fornecedor, justifica-se o afastamento da restrição, pois deve ser ponderado o princípio da legalidade e os princípios da eficiência e da razoabilidade.
Assim leciona o Autor:
Deve ser feita uma ponderação de interesses entre o princípio da legalidade e os princípios da eficiência e da razoabilidade. Seria razoável deixar a sociedade sem o atendimento de uma necessidade relevante, sensível, prestigiando a restrição aplicada? Ou teríamos aí uma disfunção da regra que teria como objetivo, justamente, proteger esta mesma sociedade? (TORRES, 2021, p. 768)
O Ministro Luís Roberto Barroso (2003, p. 293) registra que diante de um aparente conflito entre princípios, é possível uma solução flexível, na qual um ceda em relação ao outro, para se chegar à norma jurídica aplicável.
De acordo com o ensinamento de Fonte (2009), a legalidade está em crise desde os meados do século XX e a lei, como mecanismo de justiça e garantia, já não presta aos mesmos fins, emergindo assim a necessidade de adequar forma de interpretar o Direito pela noção de juridicidade, permitindo que a Administração Pública paute sua atividade pela normatividade constitucional, especialmente os direitos e garantias fundamentais.
Nesta intelecção, Carvalho (2008, p. 240 e 241) ensina que embora na rotina administrativa, a maior parte das questões possam ser resolvidas pelo método da subsunção do fato às regras legais, não se deve ignorar as situações complexas em que haja diversos conflitos de interesse e mais de um princípio a ser aplicado, demandando, portanto, que o aplicador do Direito recorra à ponderação como técnica.
Deveras, ao longo deste estudo percebemos que uma das sanções previstas para quem comete um ilícito administrativo durante a licitação ou contrato administrativo é o impedimento de licitar e contratar com a administração pública por no máximo 3 (três) anos.
Além disso, notamos que, o art. 45 da Lei nº 9.784/99, que é aplicável aos processos administrativos sancionatórios por expressa dicção do art. 69 da mesma lei, prevê a possibilidade de adoção medidas cautelares pela Administração Pública no curso dos processos administrativos, de que estejam previstos alguns requisitos, objetivando resguardar o interesse público.
À vista dessas lições aprendidas nos capítulos anteriores e do quanto exposto neste capítulo, percebe-se claramente que, conforme expressa dicção do art. 45 da Lei nº 9.784/99, o impedimento de licitar e contratar com administração pública pode ser adotado de forma cautelar, “sem a prévia manifestação do interessado”, nos casos em que haja a configuração de risco iminente e indícios devidamente comprovados, sem impossibilitar, porém, que seja adotada após a instauração e a notificação do administrado, o que se considera inclusive desejável, como forma de evitar possíveis erros que a manifestação do interessado poderia chamar à atenção.
Sucede-se que, é importante fixar parâmetro, especialmente em relação ao prazo máximo para a referida medida cautelar de impedimento do direito de licitar e contratar com a Administração Pública, pois o Estado não pode se aproveitar de sua própria demora para concluir o processo administrativo.
Nesse sentido, Miranda (2010, p. 25), ao analisar a possibilidade da referida medida cautelar à luz da Lei nº 8.666/93, que prevê a pena de suspensão do direito de licitar e contratar por no mínimo 2 (dois) e no máximo 5 (cinco) anos, entende que a Administração não poderia suspender cautelarmente o direito de contratar e licitar de uma pessoa por mais de 2 (dois) anos, pois um período além desse apresentaria restrição maior que aquela eventualmente imposta quando do término do processo.
Nesta lógica, aplicando a mesma proporção do pensamento de Miranda, entende-se que, como a Nova Lei de Licitações e Contratos prevê apenas o máximo da pena, qual seja 3 (três) anos, sendo omissa quanto ao mínimo, o impedimento cautelar do direito de licitar e contratar não deve ultrapassar o período máximo de 1 (um) ano e 2 (dois) meses, porquanto que este prazo representa, proporcionalmente, o mínimo da pena previsto na Lei nº 8.666/93.
Saliente-se mais uma vez que o Estado não pode se aproveitar de sua própria demora para concluir o processo administrativo e manter os direitos do suspeito indefinidamente suspensos. Assim, não se pode conceber que a Administração Pública impeça cautelarmente o direito de contratar e licitar de uma pessoa por um período maior que 3 (três) anos, uma vez que a pena máxima para esse tipo de punição são 3 (três) anos.
Diante do exposto, infere-se que desde que haja elementos de convicção suficientes para embasar a decisão, que se traduz em indícios relevantes da prática do ato ilícito, a Administração Pública pode impedir cautelarmente uma pessoa de licitar e contratar com o poder público, a fim de resguardar as contratações que deverá fazer no curso do processo administrativo instaurado para apurar as supostas faltas cometidas pelo administrado, preservando e se limitando a resguardar o interesse coletivo, caso contrário poderá dar ensejo à responsabilidade civil do Estado se a restrição se mostrar incabível.