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Arma de brinquedo (art. 10, § 1º, inc. II, da Lei 9437/97)

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EXEMPLOS PRÁTICOS

Os exemplos práticos sempre demonstram um fato, um possível acontecimento da vida, e devem se encaixar no crime em estudo para mostrar a sua aplicabilidade. No entanto, não podemos relacionar as situações possíveis para lei abstrata, exaurindo sua aplicação. Essa observação faz-se importante pelo núcleo do tipo, utilizar, que, como visto, tem uma exigência maior que o simples uso ou porte de uma arma de brinquedo. Caberá aos julgadores separar, nas situações de fato, aquelas que se encaixam no tipo e aquelas condutas que se mostrarem atípicas. O legislador foi inteligente com o núcleo do tipo, exigindo mais para configuração do crime, porém restringiu sua aplicação. Bom que seja assim, uma vez que é mais um crime de atos preparatórios somados à finalidade criminosa. A linha que separa a tipicidade da aticipidade é tênue, mas distinta.

O problema do crime em tela é o mesmo que qualquer um da sua espécie, o meio de prova.

Imaginemos dois indivíduos com seus respectivos telefones interceptados conforme a lei vigente. Em sua conversa, combinam e compram duas armas de brinquedo para cometerem crimes. Eles justificam claramente que dois bancos possuem uma vigilância insuficiente e, como "dá cadeia" armas de fogo, eles podem cometer seus roubos com tranqüilidade munidos de armas de brinquedo. Tudo devidamente gravado. Dois dias após, um deles adquire um coldre axilar, pois ouviu de um delinqüente que, ao abrir sua jaqueta e mostrar o instrumento dentro de um coldre de arma de fogo, a vítima fica mais atemorizada, facilitando o seu crime. O outro prefere comprar uma tinta cor prata, pois aprendeu que as pistolas niqueladas são mais efetivas no cometimento de crimes, e assim pinta seu objeto. Uma semana depois são surpreendidos na porta do Banco, sem terem praticado nenhum crime, munidos das armas de brinquedos nas situações descritas. Ainda mais, testemunhas os viram mais de uma vez na frente do banco e em outro, aquele descrito na gravação. Precisamos de mais? Uma ou duas testemunhas, vizinhos dos agentes, afirmando com veemência que ouviram mais de uma vez ambos dizerem que iriam "assaltar" aqueles que saíam do banco. Fica claro que os agentes deram utilidade aos objetos com a finalidade criminosa e o fato se encaixa como uma luva no tipo penal. Difícil, mas pode ocorrer: e se eles confessarem que há dias realmente utilizavam as armas simuladas com intenção de cometer crimes indeterminados?

Desafiamos aqueles que não se contentam com o exemplo a dar um exemplo tão pormenorizado de formação de quadrilha sem outro crime atrelado. É claro, via de regra aquele e este virão acompanhados no processo de outros crimes, pois são estes que demonstraram claramente a intenção do agente.

É por isso que a doutrina unânime aceita e explica o crime de formação de quadrilha como crime autônomo, mas não dá detalhes de um exemplo prático. Sempre haverá alguém, examinando um caso hipotético, exigindo mais provas para a configuração do crime. Quantos planos, quantas reuniões são necessárias para configuração da formação de quadrilha? É penoso o trabalho de saber em que momento começa a associação criminosa, assim como é difícil saber quando o agente deu uso, utilidade, mudou de simples brinquedo para um instrumento de sua finalidade criminosa. Lembramos que a expressão "utilizar" traz carga subjetiva por natureza, não sendo suficiente portar, transportar ou trazer consigo uma arma de brinquedo. Bom que seja assim. Utilizar, tornar útil não em um crime específico, mas sim em seu empreendimento criminoso.

Assim, podemos dar exemplos mais fáceis e que acontecem corriqueiramente. Exemplos do crime em estudo atrelado, ligado a outros delitos, que servirão como meio de prova. Não são meros exemplos doutrinários e apaixonantes como o da embriaguez fortuita, em que o indivíduo tropeça e cai em um tonel de pinga.

Imaginemos que o agente é o "dono" da favela, fato mais do que comum, infelizmente. Munido de uma arma de brinquedo, ele impõe horário para os moradores dos cinco ou seis barracos em frente à favela, a fim de possibilitar a venda de drogas. Essas pessoas são vítimas do crime de constrangimento ilegal, previsto no art. 146 do Código Penal e não há como dizer que o agente, depois de surpreendido, não estava utilizando a arma de brinquedo para o fim de cometer crimes. É um verdadeiro empreendimento criminoso. O agente não quer praticar um crime de constrangimento ilegal hoje ou amanhã, demonstra-se que ele deu utilidade para o objeto em sua vida criminosa para o cometimento de qualquer crime. É típica a conduta, merecendo a reprimenda perfeita do art. 10, § 1º, inc. II, da Lei 9.437/97. Claro, como acontece na formação de quadrilha, a denúncia ministerial trará o crime em conjunto com os delitos de constrangimento ilegal, que são meios de prova do seu assumido estilo de vida.

Podemos dizer mais: se o inc. III, do § 1º, do art. 10, é um crime subsidiário explícito (disparo de arma de fogo), classificamos o nosso delito como subsidiário implícito, ou seja, no último exemplo ocorreria a absorção do constrangimento ilegal pelo crime de utilizar arma de brinquedo para cometer crimes. A pena do primeiro é menor que do segundo.

O último exemplo é o mais interessante. O agente, "dono da favela", faz uso, utiliza uma arma de brinquedo para cometer crimes indeterminados. Demonstra-se essa conduta quando ele acaba por praticar vários crimes de ameaça contra quatro vítimas diferentes em dias diferentes. Preso pela polícia, as quatro vítimas o reconhecem como autor das ameaças e está mais do que demonstrado que o agente utilizava a referida arma de brinquedo apreendida para o cometimento de crimes. Há ainda uma testemunha que explica o modus operandi do autor. Conta que o agente, nos dias que desconfiava estar prestes a sofrer ação da polícia, trocava sua arma verdadeira pela imitação, sabendo das conseqüências atuais para quem faz uso de arma de fogo. No entanto, nenhuma das quatro vítimas quer representar, ou seja, impedem que o Ministério Público intente ação penal, dependente de representação por ser de ação penal pública condicionada. Pela doutrina atual, equivocada, restaria mandar esse criminoso embora sem qualquer resposta estatal, por acreditar que é inaplicável o crime em estudo, apesar de mais do que comprovada a conduta de utilizar arma de brinquedo com a finalidade criminosa.

Mais do que clara está a dificuldade de aplicar o crime independente de outros delitos por causa do meio de prova. Problema idêntico ao crime de formação de quadrilha. Em regra, esses delitos virão acompanhados de outros crimes e circunstâncias que demonstrarão a finalidade criminosa, separando essas condutas da simples, e atípica, associação e utilização de arma de brinquedo. Bom que seja assim; trata-se nos dois crimes de atos preparatórios com finalidade criminosa.


CONCLUSÃO

Não há como sustentar a inaplicabilidade do crime que estudamos, muito menos sua inconstitucionalidade. Estaríamos desprezando sessenta anos de vigência do crime de formação de quadrilha ou bando, tipo da mesma espécie. Apesar de firme opinião em contrário, poderemos e deveremos respeitar a posição de que não há necessidade de tipificar atos preparatórios como esses. Crimes de perigo abstrato do qual é vítima a coletividade como a associação criminosa do art. 288 do Código Penal e a utilização de arma de brinquedo com finalidade criminosa. Entretanto, serão sempre inaceitáveis as argumentações que tentarem retirar o crime do ordenamento jurídico, seja formal ou materialmente.


PROBLEMAS APONTADOS PELA DOUTRINA

Passemos à análise de alguns supostos problemas que a doutrina aponta, como fundamento da inaplicação, incompreensão do crime em estudo.

Se a arma de brinquedo nunca foi admitida para caracterizar a contravenção do art. 19, como pode servir de crime autônomo?

A contravenção presumia perigo resultante da simples situação objetiva de posse, do porte de uma arma de fogo. É o que acontece hoje com o art. 10, caput, da Lei 9.437/97. A incriminalização decorre do objeto em si e não das atitudes do agente, do seu meio de vida. A Lei nunca presumiu, e nem poderia ter feito, o perigo resultante da posse de um brinquedo, pois realmente seria um absurdo. O crime em estudo pune a escalada do agente que se coloca em uma situação diferenciada, efetiva e presumivelmente perigosa à sociedade por querer adotar um estilo de vida, cometimento de crimes. Servindo-se para isso de uma peça idêntica a uma arma de fogo. O enfoque não o objeto em si, mas as atitudes do agente com o referido objeto.

O núcleo do tipo, situação presente, é incompatível com a expressão "para o fim de cometer crimes", situação futura?

A conduta de associarem-se prevista para o crime do art. 288 do Código Penal é presente, apesar de a finalidade ser de cometer crimes futuros. Aliás, é essa construção que dá autonomia ao tipo, pois, se ligasse a conduta ao cometimento concomitante de um crime, teríamos os problemas já apontados; haveria inevitável absorção do crime, tornando-o ineficaz. Quando o tipo trouxe a finalidade futura, separou o delito em estudo do emprego efetivo de uma arma de brinquedo em um crime determinado.

Assim como a expressão associar carrega mais de uma situação objetiva, ou seja, exige um estado de ânimo, uma vontade indissociável dos atos materiais que os agentes pratiquem, o verbo utilizar também exige a mesma ligação da situação de fato com a intenção de tornar útil, dar uma utilidade, uma finalidade ao objeto. Inteligência do tipo que impede a punição da simples posse de um objeto, muitas vezes de plástico.

Não há que se falar em incompatibilidade do núcleo com a finalidade. O crime é utilizar, dar uma utilidade à arma de brinquedo (ou simulacro) e não empregar em um crime determinado. O utilizar não está ligado a um crime determinado que se pretenda praticar. A conduta é presente, independente de qualquer crime, assim como no crime de formação de quadrilha ou bando.

Na verdade a expressão final não "matou" o começo da oração, argumento equivocado da doutrina, mas salvou, dando autonomia como um crime autônomo, independente como deve ser.

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Podemos concluir que a fórmula de construção de tipos dessa espécie (atos preparatórios + finalidade criminosa) sempre trará os mesmos problemas de interpretação que devem ser ultrapassados. São, porém, crimes aplicáveis apesar da dificuldade do meio de prova.

É verdade que a lei estaria incentivando o cometimento de crimes com arma de fogo, pois seria um crime único em vez de dois crimes em concurso se cometido com arma de brinquedo?

Qualquer manual de direito penal ensina-nos a resposta a essa pergunta. Se mais de três pessoas efetivamente se associarem para cometer um crime determinado, o fato é atípico. Ensinam mais: se foram vários crimes, porém determinados, o fato é totalmente atípico. O art. 288 do Código Penal não pune a associação para determinado crime e sim a construção de um estilo de vida, de uma "empresa criminosa". É essa a diferença entre o concurso eventual e a formação de quadrilha.

Da mesma maneira, se o agente utilizar uma arma de brinquedo no cometimento de um crime de ameaça, p.ex., não estaremos diante de um problema, pois o fato é totalmente atípico com relação ao instrumento usado para ameaçar. Não se encaixa no tipo do inc. II, § 1º, do art. 10, da Lei 9.437/97. Não cuida o referido crime da utilização do objeto em um crime determinado. A punição vem quando o agente, querendo tornar-se um delinqüente mais eficaz, mais poderoso para consumação de delitos indeterminados, dá utilidade a um objeto que imita uma arma de fogo.

Por outro lado, se em um processo de ameaça se comprova que o agente já fazia uso da arma de fogo que empregou no crime de ameaça, deverá responder em concurso com o caput do art. 10 da Lei. O mesmo se diz para arma de brinquedo, pois são objetos jurídicos diversos.

Não incentiva a Lei, portanto, o uso de armas de fogo sob pretexto de ser menos severa a conjugação dos crimes em concurso. Mais uma vez percebe-se a precisão da redação do tipo em estudo, dando-lhe aplicabilidade, autonomia e coerência com o sistema.

Há problema no caso de roubo cometido com arma de brinquedo (Súmula 174, STJ)?

É importante salientar que a divergência doutrinária e jurisprudencial não afetará a compreensão, vigência e aplicabilidade do crime em estudo.

Se a arma de brinquedo foi apenas instrumento no cometimento do crime de roubo, ou seja, o agente não deu utilidade ao objeto para fins criminosos, apenas empregou efetivamente em um crime de roubo, o fato é atípico, não se encaixa no art. 10, § 1º, inc. II, da Lei de Armas. Assim, o agente responderá pelo roubo, com aumento de pena para aqueles que admitem a Súmula do Superior Tribunal de Justiça.

Por outro lado, se demonstrado pelas provas do processo que o agente utilizava, havia dado anterior utilidade em sua empreitada criminosa com o objeto parecido com a arma de fogo, não para o crime de roubo, mas para esse e qualquer outro que viesse a cometer, estamos diante do crime de utilizar arma de fogo com finalidade criminosa. Nesse caso há concurso deste com o crime de roubo.

A única discussão é se nesse último caso o concurso é com o roubo simples ou com pena aumentada pelo emprego de arma. Alguns podem dizer que será bis in idem se houver concurso do crime em estudo com o art. 157, § 2º, inc I, do Código Penal.

Já foi dito que tal discussão não tem relevância para nosso estudo, pois de uma maneira ou de outra o crime previsto para quem utiliza arma de brinquedo (ou simulacro) com finalidade criminosa é autônomo e continua intocável, independente da corrente adotada para o caso de concurso com o crime de roubo.

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Sobre o autor
André Luiz Rodrigo do Prado Norcia

advogado em São Paulo (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NORCIA, André Luiz Rodrigo Prado. Arma de brinquedo (art. 10, § 1º, inc. II, da Lei 9437/97). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 47, 1 nov. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1028. Acesso em: 23 abr. 2024.

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