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A criminalização do servidor público na Lei 9437/97

01/08/2000 às 00:00
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A Lei 9437/97 foi editada precipuamente para servir de instrumento inibidor da explosão generalizada da criminalidade em todo o país.

As estatísticas vem demonstrando exaustivamente que a esmagadora maioria dos delitos graves (homicídio, latrocínio, extorsão mediante seqüestro, roubo etc.) são cometidos com o emprego de armas de fogo.

A lei em comento, não surgiu apenas como fruto da preocupação nacional, que entendeu que a Lei das Contravenções Penais não poderia mais albergar condutas, que por si só, perfazem uma lesão à segurança de toda a coletividade. Ademais, a Lei das Contravenções Penais, cuja legislação reúne condutas delitivas de menor gravidade, ou com o advento da Lei 9099/95, que podemos chamar de menor potencial ofensivo, não poderia manter mais, os antigos artigos 19 e 21 (porte e disparo de arma de fogo respectivamente), já que tais ilícitos representam inexoravelmente um grau maior de violação aos bens/interesses/valores penalmente protegidos pela direito penal substantivo.

A própria ONU, através de seus órgãos latino-americanos (ILANUD), exerceu sensível pressão para que o Poder Legislativo Federal elaborasse uma resposta penal condizente com a realidade social brasileira, criminalizando-se com maior severidade a aquisição, a posse e o porte ilegais de armas de fogo.

Além do mais, haviam consideráveis lacunas dentro da Lei de Contravenções Penais, que não tratava de inúmeras outras condutas inter-relacionadas ao porte e posse de armas de fogo, abrindo-se verdadeiras valas para a impunidade.

No escopo de suprir a estas e outras necessidades, veio então à lume no ordenamento jurídico pátrio a Lei 9437/97, que em abono as reflexões que ora se fazem foi recebida com satisfação pela comunidade jurídica.

Em que pese, a indiscutível importância de uma lei regulando com maior extensão, e criminalizando as condutas de aquisição, porte e posse além de outras, de forma mais condizente ao perigo (ou lesão para alguns) que representam para a sociedade tais ilícitos, a Lei 9437/97 carrega em seu texto alguns equívocos, contradições, omissões e para a grande parte da doutrina, algumas inconstitucionalidades patentes.

Sem dúvida, a Lei 9437/97, é um primor de falta de técnica legislativa e dá mostras constantes de que o legislador in casu, abandona conceitos básicos que sustentam e fundamentam um Direito Penal moderno.

O artigo 10, parágrafo 4º, é um bom exemplo do qual nos servimos para demonstrar o estrabismo jurídico-penal que norteou o legislador da Lei 9437/97, que demonstra a inconseqüência de uma abordagem tipificadora disforme com a dogmática penal.

O dispositivo em apreço, diz que: " A pena é aumentada da metade se o crime é praticado por servidor público".

Trata-se com evidência não de um delito autônomo, mas de uma causa de aumento de pena, que se aplica a todos os delitos previstos na Lei 9437/97. Já o conceito de servidor público se extrai no artigo 327 do Código Penal, que define para efeitos penais, como sendo todo aquele que exerce cargo, emprego ou função, embora transitoriamente ou sem remuneração, e o seu parágrafo 1º, estende o conceito também para os funcionários das entidades paraestatais. Como se observa, é utilizada uma conceituação mais ampla que o fornecido pelo Direito Administrativo.

O legislador entendeu ser cabível uma maior reprovação penal àquele que cometendo qualquer dos delitos elencados na lei das armas de fogo, possuísse a qualidade de servidor público, e omitindo (como de costume) se em efetivo exercício ou em razão da função pública.

Ora, qualquer das condutas previstas no artigo 10 da lei em estudo podem ser praticadas por qualquer pessoa, pois trata-se de crime comum e não próprio.

A Teoria das Circunstâncias, numa rápida abordagem, situa a circunstância como todo dado, fato determinado ou concreto, que sem modificar ou suprimir um crime, atenua ou aumenta a resposta penal, através de um aumento ou diminuição da sanção penal a ser aplica pelo magistrado no complexo processo de dosimetria da pena.

Outrossim, toda a estrutura do injusto penal deitas as suas raízes na concepção de bem jurídico, entendendo-se este como todos os bens/interesses/valores penalmente protegidos pela norma penal, e que se violados sujeitarão o seu infrator as conseqüências jurídicas previstas por esta mesma norma penal (PENA).

O professor David Teixeira de Azevedo, em excelente obra (1) ensina-nos: "As causas do aumento e de diminuição constituem circunstâncias do crime, dotados de estrutura típica, relacionadas com a quantidade e com a qualidade do injusto. Estão intimamente relacionadas com o bem jurídico, grau, modo e intensidade de ataque, as modalidades e formas de execução do fato típico, o local, o tempo, os instrumentos, a qualidade da vítima e a natureza do objeto material sobre que recai a ação humana".

A simples qualidade de servidor público do agente em nada altera, seja atenuando ou agravando qualquer das condutas tipificadas no preceito penal do artigo 10 e seguintes da Lei 9437/97. Mesmo porque o conceito de servidor público, para efeitos penais, segundo a conceituação do artigo 327 do CP, é conhecidamente amplo.

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O Direito Penal moderno, tem como um dos seus pilares, o princípio da culpabilidade do ato, pelo fato concreto individualizado, isto é, um Direito Penal do ato e não do autor.

O autor do injusto penal sofrerá a reprimenda pelo que fez, pelo que praticou, sob o crivo de uma avaliação ético-axiológico do seu conhecimento e autodeterminação ao realizar a conduta típica e antijurídica, e não pelo que é, pela sua qualificação pessoal ou profissional.

O que poderia e até deveria o legislador era determinar uma majoração da pena aos servidores públicos que praticassem qualquer das ações incriminadas no artigo 10 em razão da sua função pública ou prevalecendo-se dela, tais como os policiais civis, militares e federais, estes sim, em razão da função pública que desempenham, e da confiança que lhe empresta o Estado, poderiam ofender com maior amplitude o bem jurídico protegido pela norma em apreço, violando as regras de proteção a segurança coletiva.

Ou como leciona Luiz Flávio Gomes (2): "Em geral, a qualidade de servidor público em nada altera o conteúdo do injusto nos crimes previstos na Lei 9437/97. A posse clandestina de uma arma de fogo, por um particular ou por um funcionário, configura o mesmo injusto penal: rebaixa com a mesma intensidade o nível de segurança coletiva. O dever geral de fidelidade para com o Estado, que é inerente ao servidor público, não justifica, por si só, a majoração da pena. Mesmo porque, acrescente-se, o bem jurídico tutelado não pertence somente ao Estado, senão à coletividade inteira".

Estabeleceu-se assim, uma causa de aumento de pena (metade) pura e simplesmente pela condição de servidor público, de forma injusta e despropositada, e não atende ao princípio da razoabilidade, que deve nortear toda a criação da norma incriminadora, inclusive em seus tipos derivados, e que o mestre Damásio E. Jesus, chamou de "Tipo criticável" (3), advertindo apropriadamente que:"Deve haver nexo causal entre a conduta "funcional" do servidor público e a realização do crime definido na Lei n. 9.437/97. Caso contrário, não se aplica a circunstância agravadora da pena".

Desta forma, o magistrado deve adotar no momento da fixação da pena uma interpretação restritiva quanto à este dispositivo, ante a amplitude do termo e da dissonância existente entre a condição profissional do autor do ilícito penal e da intensidade da agressão por ele praticada contra o bem jurídico tutelado pela norma penal.


BIBLIOGRAFIA

(1) AZEVEDO, David Teixeira de. Dosimetria da Pena- causas de aumento e diminuição, São Paulo, Malheiros Editores, 1998.

(2) GOMES, Luiz Flávio; OLIVEIRA, William Terra de. Lei das Armas de Fogo, São Paulo, Ed.RT, 1998.

(3) JESUS, Damásio Evangelista de. Crimes de Porte de Arma de Fogo e Assemelhados, São Paulo, Ed. Saraiva, 1999.

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Sobre o autor
Marcos Alexandre Cattani

delegado de Polícia em Santo André (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CATTANI, Marcos Alexandre. A criminalização do servidor público na Lei 9437/97. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 44, 1 ago. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1029. Acesso em: 19 abr. 2024.

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