1. Introdução
No campo internacional, o Brasil é visto amplamente como um lugar de rica cultura. Afinal, durante séculos ocorreu no país uma miscigenação intensa principalmente entre povos indígenas, africanos e portugueses, o que não exclui também a contribuição posterior de imigrantes dos mais diversos países (japoneses, alemães, italianos, sírios) nessa variedade cultural.
Isso teve efeito, sem dúvidas, na existência de uma religiosidade abundante nesse território, tendo em vista a diversidade de cultos aqui praticados desde a Colônia, como o catolicismo e o candomblé. Sendo assim, o Brasil é abrigo ao mesmo tempo de celebrações religiosas que vão desde as romarias de Juazeiro do Norte à Lavagem das Escadarias do Bonfim em Salvador.
Porém, toda essa opulência religiosa não expressa, necessariamente, um clima de tolerância completa ao diferente no território nacional. Apesar da formal garantia à liberdade religiosa dada pela Constituição Federal de 1988, infelizmente, ainda hoje são verificados casos de intolerância religiosa no país, como as cotidianas violações a terreiros de candomblé que ganham destaque nos jornais1.
Nesse sentido, o presente artigo busca dar uma contribuição nessa temática através do estudo da materialidade do estudo do direito ao livre culto no Brasil ainda no início de sua “implementação”, especificamente na República Velha.
Desse modo, a pesquisa em questão assume um caráter qualitativo e exploratório, utilizando-se de bibliografia (livros, leis, artigos e jornais do período) para estudar o objeto em análise.
O estudo se iniciará com uma breve análise da formação religiosa nacional. Considerando toda a influência de séculos de imposição de uma religião oficial (catolicismo) durante a Colônia e o Império, tentará se compreender como foi desenvolvida a mácula da intolerância religiosa no país.
Posteriormente, se falará da implementação do direito ao livre culto na República Velha discutindo a sua real materialidade. Nesse sentido, cabe destacar que muitas das análises feitas no artigo centram-se, principalmente, no ambiente urbano, destacando as perseguições policiais a cultos afro-indígenas realizadas em 3 cidades brasileiras (Fortaleza, Salvador e Maceió).
2. Materialidade do direito ao livre culto no Brasil na Primeira República
2.1. Antecedentes históricos
A ascensão do Regime Republicano no Brasil, trouxe, ao menos no nível formal uma série de mudanças para o país. Uma delas, pode-se dizer, foi a separação entre Igreja e Estado que, desde a Colônia, estavam associados pelo Padroado Régio2. Esse cisma trouxe consigo também a abolição do catolicismo como religião oficial país. Ficava aí trilhado, ao menos formalmente, o caminho para a instituição da liberdade religiosa no Brasil, que foi escrita no § 3º do art. 72. da Constituição de 1891:
“§ 3º Todos os individuos e confissões religiosas podem exercer publica e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito commum.”3
Olhando num primeiro momento a letra fria da lei, pode parecer que seu conteúdo estivesse totalmente harmonizado com o país da época, mas a simples garantia formal do livre culto no regime republicano foi algo demasiado insuficiente para de fato atingir a materialidade desse direito, principalmente no que tange ao culto dos historicamente marginalizados (negros e indígenas).
Para pensar acerca disso, não se pode olvidar, primeiramente, as condicionantes históricas que influíram na formação da religiosidade brasileira. Como já foi dito, durante toda a Colônia e o Império o catolicismo foi a religião oficial do país. A Igreja e o Estado, portanto, estiveram associados pelo Padroado Régio, o que obrigava o governo português e, posteriormente, o governo imperial de funções que num primeiro momento pareciam estar ligadas apenas à Igreja, como o pagamento de parte do clero secular4. Essa estreita ligação entre Igreja e Estado fez com que a primeira estivesse muito mais afeita às influências do governo local do que necessariamente ligada à administração superior católica em Roma5.
Assim, em virtude dessa união, a implementação do catolicismo no Brasil foi instrumentalizada pelo Estado e a Igreja como modo de atender aos seus interesses. Esse processo, por sua vez, causou sérios prejuízos à existência dos cultos não católicos no Brasil, sendo aí o gérmen da intolerância religiosa no Brasil.
Basta ver, primeiramente, o papel que a Igreja teve, por meio dos seus clérigos, na defesa do escravismo, modo de produção em que se baseou a economia brasileira até fins do Império. No século XVII, em seu sermão da Vigésima Sétima do Rosário, o famoso jesuíta, Padre Antônio Vieira, dizia a um grupo de escravizados que os mesmos deveriam servir aos seus senhores como quem serve a Deus, e que Deus futuramente haveria de recompensar os seus trabalhos.6
Assim, por meio do discurso religioso, Vieira ao mesmo tempo doutrinava os escravizados ao catolicismo, afastando-os dos seus cultos originais, como também atendia aos interesses do Estado, através de uma “justificativa” para o modo cruel de produção escravista.
Outro exemplo de uso dessa religião como veículo para a consecução do projeto colonial e dominação religiosa foram os muitos aldeamentos indígenas operados aqui por diversas ordens religiosas. Como aponta o historiador Airton de Farias, ao explicar os aldeamentos na capitania do Ceará, uma vez os indígenas reduzidos em espaços mais limitados, mais terras fora desses lugares ficavam disponíveis para a exploração econômica dos colonos7. Ao mesmo tempo que se pregava essa religião oficial e se tolhiam os cultos dos ameríndios, também se enclausuravam os povos originários para permitir o avanço da colonização.
Destarte, compreende-se que converter indígenas e escravizados africanos ao catolicismo fazia parte de um interesse comum entre o Estado e a Igreja para manter a sociedade coesa e obediente à religião oficial. Essa instrumentalização do catolicismo para a consecução desse projeto impôs, por sua vez, sérios limites aos cultos não católicos. As religiões indígenas, por exemplo, foram amplamente combatidas através da doutrinação católica praticada nos aldeamentos aqui já mencionados. Nessa toada, o historiador Eduardo Hoornaert explica que essa doutrinação praticada nos aldeamentos acabou por descaracterizar os indígenas, produzindo o "índio genérico, pretérito, massificado, descaracterizado".8 A imposição do catolicismo pelos clérigos implicou em perdas culturais imensas para os mesmos, das quais os seus cultos não se viram imunes.
Ademais, não só os indígenas mas também os negros escravizados tiveram suas crenças tolhidas. Vem daí a origem, por exemplo, da associação existente nas religiões de matrizes africanas entre orixás e santos católicos como uma forma de perpetuar seus cultos num ambiente em que apenas o catolicismo era aceito. 9
Até mesmo religiões abraâmicas, como o judaísmo, foram também no Brasil amplamente combatidas. A Inquisição, por exemplo, não poupou os chamados cristãos-novos, que muitas vezes fugiam para locais mais isolados, como o Ceará, para fugir das perseguições.10
A chegada do Império, mesmo após o fim da Inquisição, não trouxe mudanças significativas nessa situação. O Código Criminal desse regime criminalizava, inclusive, a prática de culto de religiões acatólicas em espaços exteriores ou públicos:
“Art. 276. Celebrar em casa, ou edificio, que tenha alguma fórma exterior de Templo, ou publicamente em qualquer lugar, o culto de outra Religião, que não seja a do Estado.
Penas - de serem dispersos pelo Juiz de Paz os que estiverem reunidos para o culto; da demolição da fórma exterior; e de multa de dous a doze mil réis, que pagará cada um”11.
Assim, compreende-se que por séculos o Brasil viveu num clima de intolerância religiosa oficializada. As religiões não católicas tiveram, como foi visto, que recorrer muitas vezes ao sincretismo como forma de sobrevivência. A religiosidade do país, reconhecida como muito diversa, desenvolveu-se, portanto, sob o julgo da dominação.
2.2. O livre culto na Primeira República
Considerando todos esses antecedentes históricos, é possível dizer, portanto, que a simples criação normativa do direito ao livre culto não seria suficiente por si só para garantir a sua materialidade. Isso porque a sociedade brasileira não tinha se libertado totalmente de suas amarras autoritárias. Como mostra Wolkmer, a Constituição Republicana de 1891 estava, assim como a constituição anterior, imbuída de um individualismo liberal-conservador, que desconsiderava os anseios das classes populares rurais e urbanas12.
No que tange ao livre culto, a aparente garantia irrestrita da liberdade religiosa no § 3º do art. 72. dessa Carta Magna não se sustentava por completo. Basta ver o que dizia o § 5 º do mesmo artigo ao se referir a administração dos cemitérios no país e a celebração de ritos religiosos nesses locais:
“§ 5º Os cemiterios terão caracter secular e serão administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a pratica dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não offendam a moral publica e as leis”.13
A limitação do exercício de culto nesses locais ao atendimento da “moral pública” expressa de modo incontroverso algo extremamente subjetivo. Num ambiente em que a intelectualidade brasileira importava teorias racistas da Europa que depreciavam da realidade nacional miscigenada, as religiões e os costumes daqueles considerados “inferiores” (como os negros e os indígenas) poderiam muito bem entrar em tais critérios de ofensa à moral pública.
É o que mostra a súplica publicada em 1928 no jornal O Ceará feita às autoridades policiais para o combate de sessões de Catimbó (manifestação religiosa sincrética que mistura influências negras, indígenas e cristãs14) que vinham ocorrendo numa famosa rua de Fortaleza:
"Sr. redactor.
O fim desta pequena queixa é chamar a attenção das dignas autoridades policiaes para um caso que muito depõe contra a sisudez de costumes de nossa capital.
Trata-se, sr. redactor, de um tal de "catimbó" que vem desmarcadamente funcionando numa das ruas mais centraes de nossa cidade, no boulevard Duque de Caxias, em casa da conhecida decahida de nome Canstancía de tal.
Na alludida casa juntam-se varias marafonas e tocam a fazer toda sorte de bandalhices, canalhices e outras cachorrices acompanhadas de gritos, cantorias, rezas, pancadas e lamentações numa turumbamba de todos os diabos.
[...]
Agora, confiado em a nova direcção da Policia desta capital, é que peço, sr. redactor, para dar publicidade a estas linhas, a fim de que as nossas autoridades policiaes dêem providencias a respeito, em bem da moral publica e do socego das familias que residem nas immediações".15
O uso desse conceito de “moral pública”, portanto, tornou-se utilizado para obstar os cultos daqueles que eram desconsiderados pela sociedade (como os negros).
Ademais, voltando acerca das teorias raciais aqui já mencionadas, a historiadora Lilia Schwarcz aponta que a chegada dessas teses ao Brasil abortou, por exemplo, a discussão de como garantir a cidadania aos mais excluídos no país16. Isso serviu de mote para impor um critério de civilidade que excluía os mais humildes. No campo religioso esse processo ficou claro com a Guerra de Canudos (1896-1897), que marcou o início da República. Com o intuito de supostamente “civilizar” os “fanáticos religiosos” de Conselheiro, a República interviu sanguinariamente no Arraial de Belo Monte, ceifando a vida de milhares de camponeses. Como afirma Euclides da Cunha em “Os Sertões”, os agentes do Estado, depois de esquecerem os sertanejos por três séculos, procuravam agora levá-los para os deslumbramentos de sua época “dentro de um quadrado de baionetas, mostrando-lhe o brilho da civilização através do clarão de descargas”17.
Não bastasse tudo isso, foi também nesse período de suposta garantia à liberdade religiosa que se acentuaram as perseguições policiais e civis às religiões de matrizes afro-indígenas nos ambientes urbanos de vários municípios brasileiros.
Em 2 de fevereiro de 1912, a cidade de Maceió ficara marcada com o triste episódio da “Quebra de Xangô”, uma ação paramilitar liderada pelo político alagoano Fernandes Lima que destruiu 150 casas de cultos africanos, espancou membros dessas religiões e resultou na morte da Yalorixá Tia Marcelina meses depois.18
Já em Salvador, o jornal “A Manhã” noticiava, em 20 de maio de 1920, uma diligência policial feita na noite anterior que destruiu uma casa de Candomblé em Matatú Grande, sob as ordens do 1º delegado da capital dr. Pedro Gordilho. Os participantes da religião foram presos e tiveram seus instrumentos de culto apreendidos. Para a polícia, os mesmos não deveriam tornar a praticar esses cultos pois tratavam-se de algo “intolerável”19.
Essas ações repressivas por parte do delegado dr. Pedro Gordilho fixaram-se tanto na memória dos moradores da cidade, que o escritor Jorge Amado se inspirou nesse delegado para criar o personagem Pedrito Gordo, delegado que também perseguia os praticantes do Candomblé no romance “Tenda dos Milagres”20.
Já em Fortaleza, a perseguição aos cultos afro-indígenas também ocorria fortemente. No ano de 1928, o jornal já mencionado “O Ceará” noticiava perseguições aos Catimbós realizadas pela polícia:
“Desde ante-hontem que está nas malhas da policia, o individuo de nome Luiz Marques de Sousa, natural do Pianhy, de côr preta, apparentando 26 annos de idade, mais ou menos.
Ha dois ou tres mezes, o preto Luiz Marques vem se dedicando ao "catimbó", exquisita bruxaria usada pelos seus antepassados da costa d'Africa”.21
De modo geral, pode-se perceber que os cultos afro-indígenas não eram reconhecidos como religião pelas autoridades do país, sendo muitas vezes desconsiderados enquanto suas individualidades, recebendo nomes como “bruxaria”, “feitiçaria” etc.
Através dessa classificação preconceituosa, as ações policiais utilizavam da legislação criminal para perseguir os praticantes desse culto. Isso porque o Código Penal de 1890 previa, no seu art. 157, a criminalização do espiritismo e práticas de magia:
“Art. 157. Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilegios, usar de talismans e cartomancias para despertar sentimentos de odio ou amor, inculcar cura de molestias curaveis ou incuraveis, emfim, para fascinar e subjugar a credulidade publica:
Penas - de prisão cellular por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000.”22
Assim, tendo em vista que os cultos afro-indígenas não eram reconhecidos como religiões, mas como “bruxarias”, as perseguições a elas estavam “respaldadas” pela lei de acordo com as autoridades públicas da época. É o que o aconteceu, já no período da Segunda República, com o praticante de Catimbó “Zé 18”, que em dezembro de 1936 foi preso sob justificativa de praticar o crime do artigo acima mencionado:
“A Delegacia Auxiliar iniciou energica ofensiva saneadora contra o baixo espiritismo, a magia e seus sortilegios, nos termos do artigo 157 do Codigo Penal e, faz poucos dias, surpreendeu nesta capital, na Praia do Pirambú, um avançado centro de «macumba» e «catimbó», conseguindo prender o oficiante dos estranhos ritos, apreendendo também os instrumentos que o mesmo usava.
O catimboseiro, que está sendo devidamente processado naquele departamento policial, chama-se José Antonio da Silva, vulgo "Zé 18", e ha cerca de dez anos vem ele iludindo a boa fé dos incautos em um casebre isolado naquela praia”.23
Posteriormente, as Constituições brasileiras seguintes à de 1891 iriam expressar, de modo menos hipócrita, a realidade da intolerância religiosa nacional.
Na Constituição de 1934, diferentemente da anterior, ficou explícita a submissão da liberdade religiosa ao atendimento da ordem pública:
“É inviolável a liberdade de consciência e de crença e garantido o livre exercício dos cultos religiosos, desde que não contravenham à ordem pública e aos bons costume. As associações religiosas adquirem personalidade jurídica nos termos da lei civil”24.
Essa fórmula, infelizmente, continuou sendo repetida nas três Constituições posteriores (1937,1946 e 1967), só sendo rompida apenas com a Constituição Cidadã de 1988.
De todo modo, fica claro que a garantia plena ao livre culto no Brasil não veio, portanto, com a Constituição de 1891, muito menos com as posteriores. Os cultos afro-indígenas que eram perseguidos desde a Colônia, continuaram sendo combatidos na República, seja através das leis ou fora delas.
3. Considerações Finais
Após toda a análise aqui empreendida, é possível concluir que pensar acerca da liberdade religiosa no Brasil, não abrange apenas o simples exame das normas. Se assim fosse, a simples garantia formal do livre culto pela Constituição Republicana de 1891 teria interrompido definitivamente com os séculos de perseguições aos cultos afro-indígenas no país.
O estudo da materialidade desse direito requer, portanto, uma análise histórica e sociológica. Isso ajuda a desmistificar a ideia de que a pluralidade cultural nacional foi construída de modo harmônico e pacífico.
Desse modo, pode-se dizer que a intolerância religiosa no Brasil se iniciou já nos tempos de Colônia, com a imposição de uma religião oficial aos indígenas e aos negros escravizados. A Igreja e o Estado, unidos pelo Padroado, instrumentalizaram o catolicismo como meio de estabilização social e de dominação.
Posteriormente, com o fim do Império e início da República, o direito ao livre culto não se materializou mesmo com a Constituição de 1891. Com uma elite autoritária e que se entusiasmava com as teorias raciais vindas da Europa, ficava aí criado o caminho para uma repressão aos cultos dos historicamente mais excluídos pela “justificativa” de que esses ofendiam a moral ou a ordem públicas.
Ademais, as leis não ficaram imunes a essa tendência. Como foi visto, parte da legalidade brasileira também incorporou esse discurso de intolerância.
Portanto, o artigo em questão buscou deixar claro que a materialização do direito ao livre culto não veio, infelizmente, com a Constituição de 1891. Até os dias de hoje, perdura-se a intolerância religiosa, o que, por sua, vez exige um esforço comum entre o Estado e o povo para garantia desse direito.