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Do momento de configuração do cartel

18/08/2007 às 00:00
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O cartel é crime contra a ordem econômica previsto no art. 4º da Lei n.º 8.137, de 27 de dezembro de 1990. Trata-se da formação de acordo, convênio, ajuste ou aliança entre ofertantes, visando à fixação de preços ou quantidades vendidas ou produzidas, prevista no inciso II, "a" do dispositivo em questão. Falamos de crime pessoal, cuja sanção consiste em pena de reclusão ou multa.

O cartel é, também, crime concorrencial e, portanto, infração econômico-penal. Nos termos do art. 21 da Lei n.º 8.884, de 11 de junho de 1.994, trata-se de fixação de preço e condições de venda de bens e prestação de serviços em acordo com concorrente; obtenção de conduta comercial uniforme ou concertada entre concorrentes; divisão de mercados de serviços ou produtos; combinar previamente preços ou vantagens em concorrência pública. Os crimes concorrenciais, equiparados ao tort anglo-saxão, ao serem enquadrados como infrações de cunho econômico-penal, ensejam penalização essencialmente econômica.

A distinção entre os crimes pessoais e as infrações econômico-penais tem por ponto de partida a separação entre a personalidade física e a personalidade jurídica. Crimes contra a ordem econômica, ao serem perpetrados pela pessoa jurídica (responsabilidade empresarial) ou por pessoas físicas no exercício da função de preposto (responsabilidade funcional), ensejam punição econômica. A transcendência do ilícito para a responsabilidade pessoal decorre do fato de o ilícito ser de tal modo nocivo à ordem social que a limitação da responsabilidade penal consistiria em verdadeira injustiça. O cartel, ao gerar a generalizada perda de bem-estar econômico da sociedade e de competitividade do próprio cartel [01] – que assegura, ardilosamente, seu poder de mercado -, enseja a desconsideração da personalidade jurídica [02] e a tipificação da conduta sob o viés da responsabilidade pessoal:

"Piero Verrucoli, a seu turno, ao citar Hornstein, lembra que, no início do século XIX, um número surpreendentemente grande de decisões jurisprudenciais já desconhecia certos atributos da personalidade jurídica, em especial ligados à limitação de responsabilidade, em razão de um amplo pensamento social (‘by a broad social philosophy’). As circunstâncias sociais assim denominadas agruparam-se do seguinte modo: (a) exigências de superior interesse nacional ou público; (b) objeto social ou uso da sociedade em contraste com uma expressa diretiva ou política governista; (c) objeto social fraudulento ou uso da sociedade a fim de perpetrar fraude; (d) casos em que a limitação da responsabilidade pudesse evitar a equidade ou resultar injusta; (e) casos em que a desconsideração da personalidade jurídica seja necessária para impedir uma injustiça, ainda inexistindo culpa; (f) casos em que a desconsideração da personalidade jurídica seja necessária para impedir o abuso da posição majoritária; (g) casos em que a desconsideração da personalidade jurídica seja necessária para sustentar ou negar a competência em uma controvérsia, ou para aplicar a doutrina da coisa julgada."

O cartel tipificado na Lei n.º 8.137/90 é crime de mera conduta, sendo suficiente para sua caracterização a conjugação da intenção do agente (dolo) com a formação do acordo – independentemente do resultado ou, antes, independentemente da possibilidade de que se alcance o resultado (factibilidade).

No caso do ilícito previsto na Lei n.º 8.884/94, conforme já tivemos a oportunidade de manifestar [03], trata-se de crime formal, exigindo-se, para sua consumação, poder de mercado e o nexo de causalidade entre o acordo e a potencial conseqüência. Em outras palavras, se em função de carecer de poder de mercado o objeto for completamente impróprio e o meio, absolutamente ineficaz, falaremos em crime concorrencial impossível:

"Diferentemente da concorrência desleal, portanto, o cartel é crime formal e não de mera conduta, exigindo-se, para sua consumação, que os resultados sejam factíveis, ou seja, que haja a potencialidade do dano. A não ser que se faça uma confusão entre os institutos, a reprovação de trustes e cartéis é pautada pelo potencial ofensivo à concorrência, e não pelo desrespeito ao comportamento ético entre concorrentes, matéria para o crime de mera conduta. Em suma, entre os atosde concentração – entre os quais se inserem os cartéis –, o bem maior é a concorrência e, mediatamente, o bem-estar do consumidor. Na concorrência desleal, o bem a ser resguardado é a ética entre concorrentes e, mediatamente, o próprio empresário. Daí o cartel delituoso demandar poder de mercado, sendo esse prescindível em matéria de concorrência desleal."

Embora a leitura isolada dos incisos do artigo 21 da lei concorrencial enseje a interpretação de que se trata de crime material, não restam dúvidas de que a remissão ao artigo 20 faça dissipar qualquer receio em caracterizar o cartel como crime formal na lei antitruste. A leitura conjunta do caput dos artigos 20 e 21 faz expressa referência à dispensa do animus nocendi e do êxito do empreendimento, de tal sorte a bastar o nexo causal e a potencialidade do dano.

A dispensa do animus nocendi é de particular interesse porque consiste em um dos dois elementos que diferenciam o tratamento dispensado ao cartel pela lei da concorrência daquele da lei penal especial. Ou seja, se a responsabilidade antitruste é objetiva, a responsabilidade penal especial, por outro lado, ao tratar de penas restritivas de liberdade, não pode abrir mão da comprovação do dolo. O segundo elemento que diferencia o tratamento dado ao cartel pelas duas leis – e que foi explicado alhures – decorre da necessidade de provar, em sede concorrencial, que o crime é possível, ou seja, que os agentes detêm poder de mercado.

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Podemos, desse modo, diferenciar o crime de cartel em função de sua natureza. Se econômico-penal, trata-se de crime formal. Se penal-criminal, falamos em crime de mera conduta. Portanto, como crime de mera conduta, não interessa ao Direito da Concorrência, mas ao Direito Comum.

Em ambos os casos, porém, a detecção do momento em que se dá o acordo, convênio, ajuste ou aliança entre concorrentes é essencial para a caracterização do crime de cartel, qualquer que seja a sua natureza. Isso porque, em não se tratando de crime material, a definição do acordo de vontades representa a definição do momento no qual o crime se consuma.

Falamos de manifestações de vontade receptícias, dado que sua eficácia depende do acolhimento da proposta pelo concorrente. Ignorar esse dado implicaria conceber que o cartel pudesse ser efetivado por um único agente. Entretanto, a manifestação de vontade há de ser considerada séria, completa, precisa e inequívoca e deverá ser feita a agente determinável. Ou seja, aplicam-se ao cartel as disposições do Código Civil para a formação dos contratos – seção II do título V. [04]


Notas

01 "No antitrust violation is more abominated than the agreement to fix prices. With few exceptions, price-fixing agreements are unlawful per se under the Sherman Act and no showing of so-called competitive abuses or evils which those agreements were designed to eliminate or alleviate may be interposed as a defense. The dispositive question generally is not whether any price fixing was justified, but simply whether it occurred."

"The Sherman Act, 15 U.S.C.S. § 1 et seq., presumes that competition, not cartel pricing, best ensures quality products for consumers, regardless of any empirical evidence to the contrary."

(United States Court of Appeals for the Ninth Circuit. 322 F.3d 1133; 2003 U.S. App. LEXIS 4091; 2003-1 Trade Cas. (CCH) P73,973; 2003 Cal. Daily Op. Service 2148)

02 TAUFICK, Roberto Domingos. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica e o controle das condutas e estruturas no direito regulatório. Revista Jurídica, vol. 09, n.º 85. Brasília: Presidência da República, 2007. Pg. 01/19.

03 TAUFICK, Roberto Domingos. Cartel, ilegalidade per se e ônus da prova: breves considerações. Revista de Economia, vol. 33, n.º 1. Curitiba: Ed. UFPR, 2007. Pg. 151/155.

04 "Art. 427cc. A proposta de contrato obriga o proponente, se o contrário não resultar dos termos dela, da natureza do negócio, ou das circunstâncias do caso.

Art. 428cc. Deixa de ser obrigatória a proposta:

I - se, feita sem prazo a pessoa presente, não foi imediatamente aceita. Considera-se também presente a pessoa que contrata por telefone ou por meio de comunicação semelhante;

II - se, feita sem prazo a pessoa ausente, tiver decorrido tempo suficiente para chegar a resposta ao conhecimento do proponente;

III - se, feita a pessoa ausente, não tiver sido expedida a resposta dentro do prazo dado;

IV - se, antes dela, ou simultaneamente, chegar ao conhecimento da outra parte a retratação do proponente.

Art. 429cc. A oferta ao público equivale a proposta quando encerra os requisitos essenciais ao contrato, salvo se o contrário resultar das circunstâncias ou dos usos.

Parágrafo único. Pode revogar-se a oferta pela mesma via de sua divulgação, desde que ressalvada esta faculdade na oferta realizada.

Art. 430cc. Se a aceitação, por circunstância imprevista, chegar tarde ao conhecimento do proponente, este comunicá-lo-á imediatamente ao aceitante, sob pena de responder por perdas e danos.

Art. 431cc. A aceitação fora do prazo, com adições, restrições, ou modificações, importará nova proposta.

Art. 432cc. Se o negócio for daqueles em que não seja costume a aceitação expressa, ou o proponente a tiver dispensado, reputar-se-á concluído o contrato, não chegando a tempo a recusa.

Art. 433cc. Considera-se inexistente a aceitação, se antes dela ou com ela chegar ao proponente a retratação do aceitante.

Art. 434cc. Os contratos entre ausentes tornam-se perfeitos desde que a aceitação é expedida, exceto:

I - no caso do artigo antecedente;

II - se o proponente se houver comprometido a esperar resposta;

III - se ela não chegar no prazo convencionado.

Art. 435cc. Reputar-se-á celebrado o contrato no lugar em que foi proposto."

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Sobre o autor
Roberto Domingos Taufick

bacharel em Direito pela USP, pós-graduando em Direito pela Fundação Getúlio Vargas - GvLaw/SP, especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, assessor do CADE (conselheiro Luiz Carlos T. Delorme Prado)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TAUFICK, Roberto Domingos. Do momento de configuração do cartel. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1508, 18 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10300. Acesso em: 22 nov. 2024.

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