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Prisão de Putin

Uma análise da decisão do Tribunal Penal Internacional que emitiu mandado de prisão em desfavor Chefe de Estado russo.

26/03/2023 às 16:00

Analisamos a decisão do Tribunal Penal Internacional que emitiu mandado de prisão em desfavor Chefe de Estado russo.

O presente artigo visa à análise da decisão proferida pela Tribunal Penal Internacional (TPI), por meio da qual sobreveio mandado de prisão em desfavor do Chefe de Estado Vladimir Vladimirovich Putin (a decisão também foi emitida em desfavor da Comissária Presidencial Maria Alekseyevna Lvova-Belova, que não será objeto de análise deste artigo)[1].

 Em virtude da decisão acima mencionada, o artigo abordará a seguinte questão: é possível a emissão de mandado de prisão para Chefe de Estado de país o qual não é signatário do Estatuto de Roma?

 Primeiramente, é imperioso esclarecer que o Tribunal Penal Internacional (International Criminal Court, em inglês, ou Cour Pénale Internationale, em francês), no ordenamento jurídico brasileiro, foi inserido por meio do decreto nº 4.388/2002, o qual promulgou o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional.

 Em seu preâmbulo, o Estatuto de Roma afirma que os crimes de maior gravidade, os quais afetam a comunidade internacional no seu conjunto, não devem ficar impunes e que a sua repressão deve ser efetivamente assegurada através da adoção de medidas em nível nacional e do reforço da cooperação internacional. Ainda, é expressamente delineado o objetivo de por fim à impunidade dos autores desses crimes, contribuindo para a sua prevenção. Por outro lado, há disposição expressa no sentido de que nada no referido Estatuto deverá ser entendido como autorizativo para que qualquer Estado Parte intervenha em um conflito armado ou nos assuntos internos de qualquer Estado.

 O seu artigo 1º define que a jurisdição do TPI abrangeria “as pessoas responsáveis pelos crimes de maior gravidade com alcance internacional”, sendo “complementar às jurisdições penais nacionais”. Já o artigo 4º, “2”, informa que o Tribunal poderá exercer os seus poderes e funções, no território de qualquer Estado Parte e, por acordo especial, no território de qualquer outro Estado. Diante da conjunção desses dois dispositivos, é importante salientar que o Tribunal somente poderá exercer os seus poderes em território de Estado Parte do Estatuto de Roma, ou mediante a celebração de um “acordo especial”.

 No que respeita ao início do exercício da jurisdição, o artigo 13 do Estatuto de Roma informa: 

Artigo 13 - Exercício da Jurisdição

O Tribunal poderá exercer a sua jurisdição em relação a qualquer um dos crimes a que se refere o artigo 5o, de acordo com o disposto no presente Estatuto, se:

a) Um Estado Parte denunciar ao Procurador, nos termos do artigo 14, qualquer situação em que haja indícios de ter ocorrido a prática de um ou vários desses crimes;

b) O Conselho de Segurança, agindo nos termos do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, denunciar ao Procurador qualquer situação em que haja indícios de ter ocorrido a prática de um ou vários desses crimes; ou

c) O Procurador tiver dado início a um inquérito sobre tal crime, nos termos do disposto no artigo 15.

 Da leitura do dispositivo acima, extrai-se a ilação de que o TPI poderá iniciar sua jurisdição, iniciando o devido processo legal, sempre que um Estado Parte denunciar ao Procurador qualquer situação em que haja indício de ter ocorrido a prático de crimes de genocídio, contra a humanidade, de guerra ou de agressão.

 A fim de evitar eventual alegação de incompetência do TPI, o artigo 17 menciona os casos em que o Tribunal proferirá um juízo de não admissibilidade dos casos a ele submetidos. Nesse viés, o artigo 25, “1”, informa que o TPI será competente para julgar as pessoas físicas e o seu item “2” dispõe que quem cometer um crime da competência do Tribunal será considerado individualmente responsável e poderá ser punido de acordo o aludido Estatuto. Aliado a isso, o artigo 27 é cristalino ao expor que a qualidade oficial de Chefe de Estado ou de Governo, de membro de Governo ou do Parlamento, de representante eleito ou de funcionário público, em caso algum eximirá a pessoa de responsabilidade criminal nos termos do presente Estatuto, nem constituirá de per se motivo de redução da pena. Trata-se de cláusula a qual exclui a possibilidade de alegação de um foro por prerrogativa de função de determinada autoridade.

 O artigo 58 permite que o juízo da instrução, a todo momento, após a abertura do inquérito, emita um mandado de detenção contra uma pessoa se, após examinar o pedido e as provas ou outras informações submetidas pelo Procurador, considerar que: 

a) Existem motivos suficientes para crer que essa pessoa cometeu um crime da competência do Tribunal; e

b) A detenção dessa pessoa se mostra necessária para:

i) Garantir o seu comparecimento em tribunal;

ii) Garantir que não obstruirá, nem porá em perigo, o inquérito ou a ação do Tribunal; ou

iii) Se for o caso, impedir que a pessoa continue a cometer esse crime ou um crime conexo que seja da competência do Tribunal e tenha a sua origem nas mesmas circunstâncias.

 Salienta-se que a possibilidade da emissão do mandado de detenção exige a presença de motivos suficientes para crer que essa pessoa cometeu um crime da competência do Tribunal e que a detenção da pessoa seja necessária para um dos objetivos referidos nos itens i, ii e iii acima referidos. As alíneas “a” e “b” são, pois, requisitos cumulativos para a emissão do mandato de detenção.

 O artigo 59, “1”, é taxativo ao dispor que o Estado Parte que receber um pedido de prisão preventiva ou de detenção e entrega adotará, imediatamente, as medidas necessárias para proceder à detenção, em conformidade com o respectivo direito interno. Com esse dispositivo, um dos primeiros pontos para responder a questão inicialmente formulada nesse artigo começa a se formar: após a emissão do mandato de prisão, o Estado Parte, signatário do Estatuto de Roma, deverá, obrigatoriamente, adotar medidas necessárias para proceder a detenção da pessoa, avaliando se  verificam circunstâncias urgentes e excepcionais que justifiquem a liberdade provisória e se existem as garantias necessárias para que o Estado de detenção possa cumprir a sua obrigação de entregar a pessoa ao Tribunal (art. 59, “4”).

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 Complementando a disposição acima, o artigo 89 refere que o TPI poderá dirigir um pedido de detenção e entrega de uma pessoa a qualquer Estado em cujo território essa pessoa se possa encontrar, e solicitar a cooperação desse Estado na detenção e entrega da pessoa em causa. Contudo, é importante observar que somente os Estados Partes terão a obrigatoriedade de satisfação aos pedidos de detenção e de entrega, não recaindo tal obrigação a um Estado que não seja signatário do Estatuto de Roma. Nesse caso, o Estado que não é signatário do Estatuto de Roma não teria a obrigação em efetivar as medidas para efetuar a prisão da pessoa. Ainda, havendo urgência, o artigo 92 dispõe que o TPI poderá solicitar a prisão preventiva da pessoa procurada até a apresentação do pedido de entrega. Percebe-se que o Estatuto se preocupou em efetivar a detenção de pessoas acusadas de crimes sujeitos à jurisdição do TPI justamente em razão do seu artigo 63, “1”, o qual dispõe que o acusado estará presente durante o julgamento.

 Diante dos dispositivos acima transcritos, resta clara a ilação de que o TPI poderá julgar qualquer pessoa física, ainda que Chefe de Estado. Uma disposição que merece ser destacada é que que as medidas necessárias para efetivar o mandado de detenção somente serrão compulsoriamente exigidas por um Estado Parte. Nessa senda, não se vislumbra alguma norma imperativa no Estatuto de Roma que imponha a Estado não signatário a execução das decisões proferidas no âmbito do TPI.

 Analisando o caso da emissão de prisão do Presidente russo Vladimir Vladimirovich Putin, a alegação do juízo da instrução é no sentido de que haveria indícios de que o Chefe de Estado russo seria responsável por deportação ilegal de população (crianças) e transferência ilegal de população (crianças) de áreas ocupadas da Ucrânia para a Federação Russa. Nesse sentido, o Estatuto de Roma expressamente prevê como crimes de guerra, em seu artigo 8º, “2”, “a”, “vii” e “b”, “viii”, a deportação ou transferência ilegais, ou a privação ilegal de liberdade, bem como a transferência, direta ou indireta, por uma potência ocupante de parte da sua população civil para o território que ocupa ou a deportação ou transferência da totalidade ou de parte da população do território ocupado, dentro ou para fora desse território.

 Sendo assim, havendo indícios no cometimento de crimes de guerra, reformula-se o questionamento inicial: como poderá ser cumprida a ordem de prisão do Chefe de Estado russo, para que seja possível prosseguir com o seu julgamento?

 Vale se atentar para quais Estados são signatários do Estatuto de Roma. Podemos exemplificar que a Ucrânia é signatária, ao passo que a Federação Russa e os Estados Unidos não[2]. Nesses termos, com base na redação dos já citados artigos 13, 25, 27, 59 e 89, temos que o TPI possui jurisdição para julgar Chefe de Estado em situações com indícios da prática de crimes de genocídio, contra a humidade, de guerra ou de agressão, ainda que o Estado dessa autoridade não seja signatário do Estatuto de Roma. Contudo, a obrigatoriedade na execução de medidas de urgência e de eventual execução da pena, somente ocorrerá se a pessoa estiver em um Estado signatário do Estatuto de Roma (e este não apresente razões fundamentadas para não cumprir o mandado de prisão), ou o Estado não signatário considere cooperar no sentido de executar as decisões emitidas por este organismo julgador internacional.

 Vale reforçar que é dever do TPI a persecução dos crimes de maior gravidade, como os crimes de guerra, pondo fim à impunidade dos autores desses crimes e a contribuir assim para a prevenção de tais crimes. É com base nesse vetor principiológico que se faz necessária a adoção de medidas como a ora analisada, ainda que não haja sua aplicação imediata, em razão da autoridade não se encontrar em território de Estado signatário do Estatuto, já que se busca assegurar, também, a soberania dos países, a qual é reforçada pela própria Carta da ONU de 1945, em seu artigo 2, “7”, arguindo que nenhum dispositivo autoriza as Nações Unidas a intervirem em assuntos que dependam da jurisdição de qualquer Estado, ou obrigará os membros a submeteres tais assuntos a uma solução, não prejudicando, contudo, a aplicação de (eventuais) medidas coercitivas.


[1] Disponível em: https://www.icc-cpi.int/news/situation-ukraine-icc-judges-issue-arrest-warrants-against-vladimir-vladimirovich-putin-and. Acesso em 21/03/2023.

[2] Disponível em: https://asp.icc-cpi.int/states-parties/eastern-european-states e https://asp.icc-cpi.int/states-parties/western-european-and-other-states. Acesso em 22/03/2023.

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Sobre o autor
Régis Schneider da Silva

Atualmente, Assessor Jurídico - Especialista em Saúde - da Secretaria Estadual de Saúde do RS. Antigo analista processual da DPE/RS e analista de previdência e saúde do Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul - IPERGS. Especialista em Direito Penal e Processo Penal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Régis Schneider. Prisão de Putin: Uma análise da decisão do Tribunal Penal Internacional que emitiu mandado de prisão em desfavor Chefe de Estado russo.. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7207, 26 mar. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/103138. Acesso em: 5 dez. 2024.

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