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A inconstitucionalidade da exigência de formação superior para o cargo de conselheiro tutelar

04/04/2023 às 14:20
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Analisamos o voto do Ministro Nunes Marques acerca da inconstitucionalidade de lei municipal que exigia diploma de curso superior para elegibilidade de membro do Conselho Tutelar.

Introdução

Ao longo dos últimos trinta anos o ordenamento jurídico pátrio procurou formas de concretizar a doutrina da proteção integral da infância e juventude. A Constituição Federal de 1988 foi o marco regulatório da mudança de paradigma e da superação da fase tutelar, que se consolidou com o Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, quando as crianças e os adolescentes passam então a ser vistos e tratados pela norma jurídica como pessoas, sujeitos de direito, em especial condição de desenvolvimento e, por isso, sendo carecedoras de um tratamento diferenciado em razão dessa condição. Abandona-se a visão de que as crianças e os adolescentes são objetos do direito e, nesta condição, somente mereceriam tutela estatal quando estivessem na chamada "situação irregular", nos moldes dos artigos 1º e 2º da Lei 6.697 de 1979 (Código de Menores).

Como corolários da doutrina da proteção integral, diversos princípios foram introduzidos ou ganharam novo significado e força normativa, como a proteção integral e o superior interesse da criança e do adolescente, que devem ser encarados como mandados de otimização de direitos constituídos, atuando na ampliação da efetivação das normas constitucionais, internacionais e convencionais que outorgam direitos a essas pessoas.

Juntamente com a base legal, desenvolveu-se uma rede de apoio para cumprimento e fiscalização das normas, em especial, criaram-se os Conselhos Tutelares que, além de serem um órgão de efetivação de direitos, buscam integrar as instâncias estatais com a participação da comunidade, a fim de garantir a ampla observância e efetivação da proteção integral.


DISPOSIÇÕES LEGAIS DO ESTATUTO DA CRIANÇA E ADOLESCENTE E REQUISITOS PARA ELEIÇÃO DE MEMBRO DE CONSELHO TUTELAR

O artigo 131 do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) preceitua que o Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente definidos na lei. Para dar concretude à previsão, haverá, em cada Município e em cada Região Administrativa do Distrito Federal, no mínimo, um Conselho Tutelar, integrante da Administração Pública, composto de cinco membros, escolhidos pela população local para mandato de 4 (quatro) anos, permitida a recondução após novos processos de escolha (ECA, art. 132).

Além disso, o artigo 133 dispõe sobre os requisitos exigidos para a candidatura a membro do Conselho Tutelar, nestes termos:

Art. 133. Para a candidatura a membro do Conselho Tutelar, serão exigidos os seguintes requisitos:

I - reconhecida idoneidade moral;

II - idade superior a vinte e um anos;

III - residir no município.

Na visão do legislador, tais requisitos são os suficientes e necessários para se alcançar o objetivo maior, qual seja, a participação da comunidade no âmbito da infância e juventude.

Conforme se observa, o diploma legal não faz referência sobre a exigência de escolaridade mínima do conselheiro tutelar. Tratando-se de competência legislativa concorrente, os Municípios se atêm a dispor sobre assuntos de interesse local e a suplementar as legislações federal e estadual, nos termos do art. 30, I e II, da Carta da República:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I – legislar sobre assuntos de interesse local;

II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

Assim sendo, não dispondo desse modo, o poder público municipal age, não só de forma desproporcional, mas fora da competência legislativa suplementar que lhe compete.


DA REPRESENTATIVIDADE POPULAR NO CONSELHO TUTELAR

A CF/88 fundamentou a atuação das ações e políticas governamentais na área da assistência social. No artigo 204, é apresentada a organização dessa área:

Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes:

I - descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social;

II - participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis.

Como pode ser observado, objetivou-se realizar a descentralização das ações e simultaneamente estimular a participação popular. Com isso, os conselhos populares teriam o potencial de aplicação da doutrina da proteção integral no âmbito dos direitos da infância e juventude.

Sabe-se que os conselhos instituídos, tanto os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, quanto o Conselho Tutelar, vieram para agrupar o conceito de participação da população nas políticas sociais de proteção, unindo os conceitos de participação e proteção integral. São, portanto, instrumentos para o desenvolvimento das políticas sociais e para a proteção integral à criança e ao adolescente em todos os níveis, em especial, no municipal.

Dessa forma, os conselhos criados como resultado da lei que instituiu o ECA configuram as principais ferramentas de participação da população e de mudança de mentalidade, porque reafirmam a máxima constitucional de que é papel de toda sociedade zelar pela proteção de crianças e adolescentes.

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PREVISÃO DA LEI Nº. 3.044/2019

O inciso IV do art. 29 da Lei nº 3.044/2019 do Município de Francisco Morato teve sua constitucionalidade questionada, por assim prever:

Art. 29. São requisitos para candidatar-se e exercer as funções de membro do Conselho Tutelar:

I – reconhecida idoneidade moral;

II – idade superior a vinte e um anos;

III – ser residente há pelo menos três anos e ter domicílio eleitoral em Francisco Morato;

IV – curso superior completo, comprovado por meio de diploma conferido por instituição de ensino cujo curso seja reconhecido pelo Ministério da Educação, ou órgão que venha substituí-lo.

Observa-se que a norma municipal, ampliando os requisitos exigidos para candidatura do conselheiro tutelar faz uma maior restrição à participação comunitária, na medida que se restringe significativamente o número de pessoas que se encaixam no perfil, o que acaba por esvaziar as funções e a razão da existência do órgão de representar a sociedade, que pode ter conhecimento valioso da realidade social, justamente das crianças e adolescentes que demandam o atendimento do Conselho Tutelar.


DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOBRE O TEMA

Diante da norma municipal citada, o Supremo Tribunal Federal, por meio de Recurso Extraordinário interposto pelo Procurador de Justiça de São Paulo, teve conhecimento do tema, manifestando-se nas palavras do Ministro Nunes Marques, que entendeu:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONTRA ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO, PROFERIDO EM AÇÃO DIREITA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL. EXIGÊNCIA DE CURSO SUPERIOR COMPLETO PARA A FUNÇÃO DE CONSELHEIRO TUTELAR. EXTRAPOLAÇÃO DA COMPETÊNCIA LEGISLATIVA SUPLEMENTAR DO MUNICÍPIO. AUSÊNCIA DE PECULIARIDADE LOCAL. USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA LEGISLATIVA DA UNIÃO. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. PARECER PELO PROVIMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO.

"Na hipótese dos autos, apresenta-se manifesto o desrespeito ao princípio da razoabilidade, uma vez que a lei municipal criou uma exigência de excessivo rigor e sem fundamento legítimo para restringir o acesso ao posto de Conselheiro Tutelar.

Segundo articula, diante das funções e da razão de existência do órgão, impor a condição de conclusão de curso superior para acesso ao posto de Conselheiro Tutelar não se afigura razoável, ponderado e proporcional, visto que o universo de pessoas que poderão disputar as eleições é substancialmente reduzido e de forma injustificada.

Tem a medida como inadequada na perspectiva do interesse público, visto que afasta da composição de um órgão que deve representar a sociedade e com ela se relacionar uma parcela importante dos integrantes da comunidade que pode ter conhecimento valioso da realidade social, justamente das crianças e adolescentes que demandam o atendimento do Conselho Tutelar. Ressalta que não se identifica, por exemplo, em que termos uma formação superior em engenharia ou biologia poderia melhor habilitar uma pessoa que lida com demandas predominantemente sociais a ser Conselheiro Tutelar.

(…) Os modernos instrumentos de participação popular, a exemplo dos conselhos, das ouvidorias, do orçamento participativo e das comissões de legislação participativa, são apenas alguns dos mecanismos surgidos em função do sistema inaugurado pela Constituição de 1988, baseada em princípios que permitem a criação, a renovação e a reinvenção contínuas das formas de participação da sociedade nos atos do Estado.

Nesse contexto, a composição do Conselho Tutelar deve ser afinada com o escopo de franquear a maior participação popular possível – dentro dos limites constitucionais –, contribuindo, em última análise, com o aperfeiçoamento democrático.

Importante destacar, como o fez a Procuradoria-Geral da República no parecer juntado ao processo, que 'o conselheiro tutelar é eleito pela população do município, e a Constituição Federal não estabeleceu requisito de escolaridade mínima sequer para a eleição dos chefes do Poder Executivo e dos integrantes do Poder Legislativo nos diversos entes da Federação, limitando-se a exigir que o candidato seja alfabetizado. Portanto, se sequer o ensino fundamental é exigido para aqueles que se candidatam para ocupar cargos de maior envergadura, dotados de amplas prerrogativas, não é razoável a exigência de curso superior para aqueles que pretendem ocupar a função de conselheiro tutelar’.

Do exposto, dou provimento ao recurso extraordinário para, reformando o acórdão recorrido, declarar a inconstitucionalidade do art. 29, IV, da Lei municipal n. 3.044/2019, de Francisco Morato/SP.”1

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No brilhante voto, o Ministro consolida a posição da Suprema Corte sobre a relevância do Conselho Tutelar, atuando de maneira independente, aproxima do poder público a voz da sociedade, fortalecendo práticas democráticas de participação, na medida em que funciona como instrumento de fiscalização e prevenção de situações de risco para crianças e adolescentes.


Conclusão

Diante de todo o exposto, resta demonstrada a desproporcionalidade e dasarrazoablidade da previsão legal que tenta, de qualquer forma, restringir a proximidade da sociedade no cumprimento das normas e princípios constitucionais e legais na proteção da infância e juventude, e na fiscalização do cumprimentos dos direitos inerentes a essa parcela vulnerável da população, afinal, o não efetivo funcionamento da rede de atendimento e apoio a crianças e adolescentes obsta, muitas vezes, a proteção dos direitos e garantias fundamentais, visto que muitos serviços não são disponibilizados pelo poder público ou o são de maneira inadequada ou insuficiente.


Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: 1988.

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. 1990. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069Compilado.htm >. Acesso em: 25 mar. 2023.

Portal STF. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia/pesquisarInteiroTeor.asp>. Acesso em: 25 mar. 2023.


Nota

  1. Recurso Extraordinário 1.278.198/SP - Relator Min. Nunes Marques. Dje 20/03/23. https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/despacho1387868/false

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LUZ, Aline Dayane Ribeiro. A inconstitucionalidade da exigência de formação superior para o cargo de conselheiro tutelar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7216, 4 abr. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/103197. Acesso em: 21 nov. 2024.

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