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Redesignação sexual em crianças no Brasil: um crime ocultado

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07/04/2023 às 15:00
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A realização de procedimentos de transição de gênero em crianças é ilegal sob o ponto de vista criminal e deontológico.

1. Introdução

Foi divulgado na imprensa que o Hospital das Clínicas, administrado pela Universidade de São Paulo (USP), disponibiliza serviços gratuitos para todas as pessoas que pretendam fazer “transição de gênero” com tratamentos hormonais, bloqueios da puberdade e até cirurgias de “redesignação sexual”. Dentre 380 pacientes em atendimento ao menos uma centena é de crianças entre 4 e 12 anos. Outra centena abrange adolescentes entre 13 e 17 anos. 1

O objetivo deste trabalho é expor o óbvio, ou seja, que a realização desses procedimentos em crianças, especialmente de tenra idade (4 anos) é ilegal sob o ponto de vista criminal e deontológico.

Na realidade não seria necessária a escrita do presente texto, mas como disse Nelson Rodrigues, “só os santos, os gênios e os profetas enxergam o óbvio”, 2 afirmação esta que se torna cada dia mais certeira.

Juntamente com o recebimento da notícia e a sugestão de escrever sobre o tema, recebi a informação de que outros juristas, instados a essa empreitada, preferiram não se manifestar, tendo em vista a conhecida “espiral do silêncio” causada pelo medo da exclusão das opiniões hegemônicas impostas por grupos barulhentos, a qual cala muitas vozes pelo temor do desprezo social, acadêmico ou até mesmo pela rejeição, ofensas, rotulagens negativas e reações mais ou menos virulentas de todas as espécies. 3 É o exercício exato do “princípio da intolerância para com os que discordam de suas ideias”, conforme proclamado por Marcuse. 4

Qualquer crítica ou questionamento feito em relação a algum fato, conduta, ideia, procedimento ou seja lá o que for que de alguma forma possa, ainda que remotamente e sem qualquer fundamento, ser relacionado à homotransexualidade é realmente o bastante para que se ponha em marcha um “efeito silenciador do discurso”. Owen Fiss descreve em sua obra que a reação contra pessoas e suas manifestações pode ser tão intensa que chega a destruir a autoestima da vítima de forma a torná-la impotente para o debate ou confronto com o opositor. Suas afirmações e ideias são rotuladas previamente, gerando descrédito por meio de ofensas empregadas como se fossem argumentos indiscutíveis. Meros ataques hostis diminuem e enfraquecem a vítima do “efeito silenciador” ao ponto de transformar, com facilidade, aquilo que seria um diálogo, uma discussão em um monólogo arbitrário. 5 A gritaria abafa a sabedoria e a democracia.

Mas, nada disso é suficiente para impedir minha manifestação técnica a respeito dessa questão. Quanto a eventuais reações hostis, as receberei, como sempre, com o mais profundo desprezo associado a uma ponta de satisfação, porque tudo o que jamais quis foi ser considerado digno de respeito, admiração, afagos ou reconhecimento por parte de pessoas imbecilizadas, canalhas ou ambas as coisas juntas. Ficaria extremamente perplexo e preocupado se fosse elogiado por essa espécie de pessoas que acobertam ou justificam o crime, zombam da ética, ignoram ou fingem ignorar obviedades e desprezam o livre debate racional em busca da verdade. Seu apreço soaria para mim como uma ofensa e a indicação de que estaria no caminho errado.

Não há nada a esperar de uma patuleia desprovida da mais mínima imaginação para distinguir críticas e discordâncias do que se convencionou chamar de “discurso de ódio” ou qualquer forma de preconceito, arbitrariedade e abuso. Trilling já apontava que a “imaginação liberal” (progressista ou esquerdista no sentido norte - americano) é estreita ou até inexistente, incapaz de detectar nuances, distinções ou detalhes, de modo que, por exemplo, ou a pessoa defende toda e qualquer proposição do “movimento negro” ou é “racista”; ou acata bovinamente tudo que seja dito pela doutrina “feminista” ou é “misógino e machista”; ou defende qualquer bandeira do “movimento gay”, mesmo coisas criminosas e lesivas, ou é um “homofóbico”. Isso fora as várias designações terminadas em “ista”, a maioria das quais nem sequer são usadas em um sentido técnico, mas meramente como um apelo emocional extremamente afetado (v.g. nazista, fascista etc.). 6 Como respeitar e pretender algum acolhimento por parte de pessoas e grupos atingidos por tal condição que chega a ser patológica? Hoje, o eventual isolamento (o famoso “cancelamento”) é quase sempre um certificado de sanidade mental e ao menos mínima capacidade intelectual.

Feitas essas considerações iniciais, passar-se-á à análise jurídica das intervenções médicas de redesignação sexual, especialmente em crianças e adolescentes, expondo as regras legais (“lato sensu”) 7 aplicáveis à espécie e apresentando, ao final, uma síntese conclusiva.


2. A redesignação ou transição sexual em adultos

Sob o ponto de vista jurídico, não há qualquer empecilho para que pessoas adultas e capazes se submetam a métodos, inclusive invasivos, de redesignação sexual.

A questão nunca foi tratada expressamente na legislação brasileira, sendo comum a afirmação errônea de que a cirurgia de transição de gênero era proibida no Brasil. Nunca houve essa proibição expressa, mas sim uma lacuna sobre o assunto, seja na legislação (civil, penal etc.), seja nos diplomas deontológicos médicos (Código de Ética Médica).

Essa defasagem no tratamento do tema levou alguns profissionais médicos ao banco dos réus quando realizaram cirurgias de transição sexual em adultos. Mas, a conclusão foi a de que não havia, em verdade, crime nestas condutas, já que inexistente o elemento subjetivo necessário à configuração do delito de “Lesões Corporais”, qual seja o “animus laedendi” ou “nocendi”. O profissional médico que realiza essa espécie de intervenção em adultos atua com elemento subjetivo oposto e inerente à arte médica, qual seja, o chamado “animus curandi”, de cuidar, tratar, curar. O intento é satisfazer o desejo de um adulto que pretende adequar sua anatomia física ao seu psiquismo ou subjetivismo, que lhe causa desconforto e sofrimento em razão de um conflito entre a identidade subjetiva e a objetiva ou física. Note-se que a mera anuência do paciente não afastaria o crime, já que a integridade física é bem jurídico indisponível. A questão se resolve no elemento subjetivo do tipo, conforme acima exposto. Não cabe aqui tecer considerações de cunho moralista ou religioso acerca das condutas de médicos e pacientes. A análise é estritamente jurídica e se há algo a dizer sobre convicções filosóficas, morais e/ou religiosas acerca da questão, isso se reduz ao direito do profissional médico de objeção de consciência. 8

A discussão jurídica acerca da remoção ou alteração de órgãos genitais externos de transexuais adultos rumou para o entendimento de que não se trata de mutilação. Não por outra razão houve decisão paradigmática do Tribunal de Justiça de São Paulo afirmando:

“Não age dolosamente o médico que, através de cirurgia, faz a ablação de órgãos genitais externos de transexual, procurando curá-lo ou reduzir seu sofrimento físico ou mental. Semelhante cirurgia não é vedada pela lei, nem mesmo pelo Código de Ética Médica”. 9

Muito embora a conclusão pela inexistência de crime nestes casos se dê pela ausência de dolo necessário à configuração do ilícito, não bastando somente a autorização da suposta vítima, não se pode deixar de frisar que essa autorização é notoriamente imprescindível para a licitude do ato médico. Caso contrário, haverá lesão e mesmo o elemento subjetivo do “animus curandi” tornar-se-á insustentável diante do constrangimento da vítima à intervenção. E nesse caso não importará a orientação sexual ou de gênero da pessoa constrangida. É evidente que o simples fato de que uma pessoa seja homossexual ou transexual não a obriga a ser submetida a qualquer intervenção cirúrgica e nem mesmo a tratamentos hormonais indesejados.


3. A redesignação ou transição sexual em crianças ou adolescentes

O que motiva este texto não é a objeção à redesignação sexual de adultos capazes. Sob o ponto de vista jurídico não existe óbice a tal procedimento, como já demonstrado.

A questão preocupante é que se tem notícia de que hospital de grande prestígio, ligado a Universidade igualmente prestigiosa vem realizando procedimentos de redesignação sexual em crianças e adolescentes, chegando ao cúmulo de manipular crianças de 4 (quatro) anos.

A prática de procedimentos de redesignação sexual em crianças, ainda que com o consentimento ou a pedido dos genitores é inviável, configurando em geral crime de Lesão Corporal Gravíssima por perda das funções sexual e reprodutora. Ora, quando são removidos os órgãos sexuais de uma pessoa, esta não poderá mais exercer sua sexualidade biologicamente orientada ou mesmo reproduzir-se, sofrendo o que se chama de “impotência coeundi e generandi” (incapacidade de manter relações sexuais e de se reproduzir, respectivamente). Dir-se-á que poderá ao menos ter relações sexuais de espécie diversa de sua anatomia original, mas fato é que não poderá se reproduzir naturalmente e nem exercer sua sexualidade original a partir da intervenção. Ainda que não se chegue ao extremo de remover os órgãos sexuais cirurgicamente, poderá haver ainda crime de lesões corporais leves, graves ou gravíssimas de acordo com o caso concreto. Tratamentos menos invasivos podem também gerar problemas psíquicos muito graves e outras limitações (v.g. enfermidade incurável, perda de funções, deformidade permanente, incapacitação para ocupações habituais por mais de 30 dias devido a cirurgias de readequação sexual, perigo de vida pelo mesmo motivo (toda cirurgia contém risco concreto de morte), debilidade de função sexual ou reprodutiva). Fato é que haverá na redesignação sexual mais invasiva lesão corporal gravíssima (Artigo 129, § 2º., III, (perda de função),CP) e em outras situações menos drásticas poderá ocorrer, ainda assim, esse mesmo delito ou outros de menor monta, mas sempre configurando lesão corporal (artigo 129, “caput” ou artigo 129, § 1º., I, II ou III, CP).

Foi visto que no caso de adultos o só fato de que haja consentimento do paciente não é suficiente para afastar a configuração do crime, sendo imprescindível, além do consentimento, que o médico tenha atuado com “animus curandi” e não “laedendi” ou “nocendi”. As duas condições são necessárias para o afastamento do crime.

Por obviedade o consentimento de crianças e mesmo adolescentes não tem validade alguma e equivale ao não consentimento. Então, ainda que equivocadamente, pense o médico agir em prol do bem do paciente, isso não será suficiente para afastar a incidência delitiva, tal como ocorreria com um adulto submetido ao ato médico contra a sua expressa vontade.

A autorização dos pais ou responsáveis também é inválida e não supre as exigências que tornariam qualquer intervenção em discussão legal. Isso porque, como será demonstrado, o tratamento normativo do tema é amplo e esparso, mas proibitivo quanto a essa espécie de procedimento em relação a crianças. O consentimento dos pais apenas servirá para fazer deles, junto com o médico e toda a equipe, responsabilizados em concurso de pessoas por lesões corporais em geral gravíssimas. O médico e equipe agem em coautoria delitiva e os pais são partícipes do crime (inteligência do artigo 29, CP).

Não é possível jamais pretender equiparar a cirurgia ou tratamento de redesignação realizada em um adulto com aquela levada a termo em uma criança, especialmente as de mais tenra idade, sabendo-se de notícias de crianças de 4, 8 e menos de 12 anos absurdamente submetidas a esses procedimentos claramente ilícitos. 10

Será que o desastre da medonha fraude científica protagonizada pelo médico, John Money, da John Hopkins University de Baltimore (EUA), que resultou no suicídio do paciente (ou cobaia) submetido a uma transição sexual fracassada quando criança não foi o suficiente para estancar essa espécie de barbaridade? 11

Desde o início do século XX (1905 – 1923), Freud já postulava a existência de uma “sexualidade infantil”. No entanto, o autor citado dividia o “desenvolvimento sexual infantil” em “fases” (oral, anal, fálica, período de latência e genital). Freud ainda apresenta a manifestação do chamado “Complexo de Édipo” (em versão masculina e também feminina, esta última chamada de “Édipo Feminino”). Esse conhecido complexo, segundo o autor, ocorre entre os 3 e os 5 anos. Observando a teoria freudiana do desenvolvimento sexual infantil resta claro que a criança de pouca idade tem por objeto de “erotização” e “desejo” o “próprio corpo”, somente passando a erotizar e desejar “outros” na última fase de desenvolvimento (a genital), atingida na puberdade. 12 Significa dizer que antes disso é absurdo postular alguma identidade de gênero, preferência ou orientação sexual. A criança, antes da puberdade, no máximo, está em um processo exploratório de descoberta da própria sexualidade e do próprio corpo, sem espaço para lucubrações teóricas ou ideológicas que a pretendam dirigir a alguma tendência. Ainda que a criança, agora sim influenciada por um ambiente ou circunstâncias, já tenha condições de verbalizar uma dada orientação, é preciso lembrar que está em “desenvolvimento” de sua sexualidade e não pode jamais ser considerada como alguém que tem condições de se identificar de forma definitiva.

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Mais modernamente são abundantes as teorias que demonstram um gradual processo de desenvolvimento cognitivo – comportamental nas crianças. Recém–nascidos e bebês ainda estão apurando seus sentidos como visão, audição, tato, paladar e olfato. 13 As interações com outras crianças vão ocorrer a partir dos 2 anos e se intensificar na idade escolar. 14 Erik Erikson apresenta sua teoria do “desenvolvimento psicossocial”, constatando que pelo menos até os 6 anos de idade as crianças têm “profundas dificuldades” para a compreensão “a respeito do mundo”. 15 Jean Piaget se dedica à “Teoria do Desenvolvimento Cognitivo”. Para o autor até os 2 anos a criança está em um estágio meramente “sensório – motor”. Depois disso, até os 7 anos se encontrará no estágio “pré – operatório”, desenvolvendo linguagem e pensamento simbólico, mas ainda reduzida ao egocentrismo. A seguir passa para o estágio “operatório concreto” superando aos poucos o egocentrismo e passando a pensar com mais lógica (isso ocorre entre os 7 e 12 anos). No entanto, a capacidade de um pensamento lógico efetivo e de abstrações só é possível, em regra, a partir dos 12 anos. 16 Também são relevantes as “abordagens de processamento de informações mentais das crianças”. Os estudiosos desse ramo de pensamento apontam que ocorrem “mudanças significativas” “nas capacidades de processamento de informações das crianças”. E a velocidade de suas apreensões e reações “aumenta” gradativamente “com a idade”. A capacidade de processamento das informações somente se completa com o avanço da chamada “metacognição”, ou seja, a capacidade desenvolvida de compreender os “próprios processos cognitivos”. Crianças pequenas não têm essa capacidade de compreensão e geralmente sequer compreendem que não entenderam algo ou que desconhecem alguma coisa. 17 Vale ainda mencionar a “visão sociocultural” de Lev Vygotsky, o qual indica para a confluência entre nosso desenvolvimento cognitivo e a cultura em que somos criados. Para que o desenvolvimento cognitivo ocorra é necessário haver interações sociais envolvendo as crianças, de modo que vão ganhando habilidades e funcionamento intelectual gradativamente. 18 É notável que seja qual for a teoria adotada, a capacidade cognitiva de crianças é extremamente limitada e não se desenvolve em saltos ou de uma vez por todas, mas sempre por meio de um processo que requer tempo e maturação. Não é possível, portanto, sequer cogitar que uma criança de 4 ou 5 anos tenha maturidade e sequer conhecimento do que seja orientação sexual, papéis de gênero etc. e possa se posicionar conscientemente sobre isso. 19 Destaque-se que até mesmo no caso de intersexuais (hermafroditismo), quando há uma duplicidade física dos órgãos sexuais e não somente uma impressão subjetiva, “a maioria dos médicos concorda que, quando um bebê intersexual nasce, qualquer cirurgia genital deve ser adiada até que a criança tenha idade suficiente para expressar sua verdadeira identidade de gênero”. 20

Neste quadro e procedendo a uma relação interdisciplinar entre a Psicologia e o Direito é possível afirmar com certeza que a nossa legislação não concede a menor abertura para o reconhecimento de capacidades cognitivas aptas à tomada de decisões existenciais por parte de crianças e mesmo por adolescentes.

Alguns marcos etários são importantes para uma ampla visão sistemática:

  • A maioridade penal é estabelecida somente aos 18 anos (artigo 228, CF c/c artigo 27, CP).

  • A capacidade civil plena se dá aos 18 anos (artigo 5º., CC) e a capacidade civil relativa aos 16 anos (artigo 4º., I c/c artigo 3º., CC). Assim sendo a incapacidade civil absoluta abrange todos os menores de 16 anos (artigo 3º., CC).

  • O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90 – ECA) determina que as “crianças” são os menores de 12 anos e os “adolescentes” são aqueles com 12 anos completos até 18 anos incompletos (artigo 2º., ECA).

  • O Código Eleitoral prevê o voto obrigatório somente para os maiores de 18 anos (artigo 4º., Lei 4.737/65 c/c artigo 14, § 1º., I, CF) e facultativo para os maiores de 16 anos e menores de 18 anos (artigo 14, § 1º., II, “c”, CF).

  • O Código de Trânsito Brasileiro somente permite a habilitação para direção de veículos automotores para os maiores de 18 anos, já que exige que a pessoa seja “penalmente imputável” (artigo 140, I, Lei 9.503/97). E em alguns casos exige a idade mínima de 21 anos como, por exemplo, para condução de veículos escolares (artigo 138, I, da Lei 9.503/97) ou para condução de veículos cuja categoria da habilitação seja D ou E, para condução de coletivos, transporte de produtos perigosos e veículos de emergência (artigo 145, I, da Lei 9.503/97).

  • Finalmente é importante lembrar que o critério adotado pela Lei Penal (Código Penal Brasileiro) para aferir a capacidade de discernimento para atos de natureza sexual no que tange à idade, é o marco dos 14 anos. Antes dos 14 anos considera-se que a pessoa não tem capacidade para decidir sobre um relacionamento sexual, por exemplo, de modo que sua vontade é juridicamente irrelevante (vide artigo 217 – A, CP).

Resta evidente que nossa legislação sistematicamente analisada não permite concluir que um menor de 18 anos e muito menos qualquer criança, ainda mais com 4 anos apenas, tenha qualquer capacidade cognitivo – decisória ou de discernimento que permita levar em conta seus desejos a respeito de eventual mudança de gênero. Nem mesmo a representação ou assistência dos pais, tutores ou responsáveis em geral pode suprir essa deficiência de modo a justificar uma intervenção terapêutica mais ou menos invasiva sobre a criança. Nenhuma vontade desordenada da criança ou adolescente ou mesmo de seus pais ou responsáveis pode mudar a natureza da estrutura da realidade. Desconsiderar isso e realizar procedimentos de redesignação sexual em menores, especialmente crianças de 4 anos é um crime escandaloso, conforme já acima apontado, crime este cometido por médicos, equipe médica, administradores hospitalares e pelos próprios genitores, tutores ou responsáveis. No campo cível é possível até mesmo falar em perda do poder familiar por parte dos pais, pois sua atuação equivale, no mínimo, ao “abandono” ou “omissão” quanto aos seus deveres parentais (inteligência do artigo 1635, V c/c artigo 1638, II, do Código Civil).

Não enxergar isso é admitir que então se uma criança de 4 ou 5 anos pedir aos pais para ter uma relação sexual consentida com o vizinho de 22 anos, desde que tomando cuidados para não lesionar a criança e havendo anuência dos responsáveis, não haveria estupro de vulnerável no ato. Isso é rematado absurdo! Na verdade os “responsáveis” seriam “irresponsáveis” numa situação como essa e responderiam juntamente com o vizinho por estupro de vulnerável na condição de partícipes. E não se diga que isso é uma extrapolação. É tão somente um “exemplum ad absurdum” para retoricamente chamar a atenção das pessoas para a gravidade real do caso que está acontecendo às escâncaras em nosso país em um Hospital conceituado ligado a importante Universidade, enquanto as Autoridades constituídas permanecem omissas, talvez com receio de ferir algum sentimento “politicamente correto”. E nessa omissão covarde, sacrificam no altar da comodidade a saúde física e mental e talvez a vida de nossas crianças.

Ademais, essas intervenções em crianças e mesmo em adolescentes não encontram guarida na legislação brasileira em sentido amplo. Ao reverso, encontram expressa proibição normativa.

A Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) n. 2.265/19, em seu anexo IV, veda expressamente a realização de cirurgias de afirmação de gênero em menores de 18 anos. E mesmo os tratamentos hormonais são proibidos para crianças e adolescentes em estágio pré – púbere, conforme o artigo 9º. do diploma em exposição, sendo a idade mínima apontada a de 16 anos. Excepciona-se o tratamento hormonal em casos de “puberdade precoce” em havendo necessidade de hormonioterapia para tratar de “doenças”, o que certamente foge do escopo da Resolução em estudo, que se refere não a “doenças”, mas à questão de gênero (vide artigo 9º., § 3º., da Resolução CFM 2.265/19).

Noticiando a habilitação de novos serviços ambulatoriais para processo transexualizador, o Ministério da Saúde apresenta a seguinte orientação que não deixa dúvidas sobre a inviabilidade de manipulação indevida de crianças e adolescentes, segundo as regras impostas:

A transexualização é um processo complexo de saúde, por isso, antes das cirurgias, há uma avaliação e acompanhamento ambulatorial com equipe multiprofissional, com assistência integral no processo transexualizador. Como o processo é irreversível, é necessário acompanhamento psicológico por, pelo menos, dois anos, para que o paciente tenha segurança e certeza de suas vontades. Para ambos os gêneros, a idade mínima para procedimentos ambulatoriais é de 18 anos. Esses procedimentos incluem acompanhamento multiprofissional e hormonioterapia. Para procedimentos cirúrgicos, a idade mínima é de 21 anos. 21

Em se tratando de alterações físicas, é preciso dizer que o mero procedimento de tatuagem corporal, tratado em leis esparsas pelo país é em geral proibido para menores de 18 anos, como, por exemplo, pela Lei Estadual 9.828/97, artigo 1º., no Estado de São Paulo. A proibição é absoluta, não sendo contornável nem mesmo com a autorização dos pais ou responsáveis.

De forma semelhante também proíbe a tatuagem em menores a Lei Municipal 8.564/03 de Belo Horizonte – MG (artigo 1º.). Entretanto, tal lei é regulamentada pelo Decreto Municipal n. 11.337/03, o qual, em seu artigo 2º., relativiza a vedação, autorizando a tatuagem com a anuência de pais ou responsáveis. Há que considerar que certamente o decreto extrapolou suas funções na medida em que acaba alterando a norma imperativa da lei e não somente a regulamentando. Se a exceção não está na lei, não pode ser prevista pelo Decreto. Não obstante, ainda que se considere válida a autorização regulamentar é mais que óbvio que não se aplicaria a crianças de 4 anos ou menos, pois além de ser algo irrazoável a redação dá a entender que os pais autorizariam filhos que tivessem condições mínimas de manifestar sua pretensão de fazer a tatuagem, o que não se aplica a crianças de tenra idade. Por seu turno, a Lei Estadual 8.417/03 do Estado do Rio Grande do Norte proíbe tatuagens em menores de 18 anos, salvo com a autorização dos pais (artigo 1º.). Já a Lei Estadual 15.122/10 de Santa Catarina, proíbe absolutamente a tatuagem de menores de 16 anos e somente permite a dos menores entre 16 e 18 anos com a autorização dos pais ou responsável legal (artigo 13).

Independentemente do aspecto legal, em geral, tatuagens em crianças são altamente desencorajadas pelos profissionais médicos e de saúde, pois a pele das crianças é mais fina e sensível do que a dos adultos, e seus sistemas imunológicos ainda estão em desenvolvimento. Além disso, as crianças podem não ter a capacidade cognitiva para compreender as implicações a longo prazo de ter uma tatuagem, o que pode levar a arrependimentos futuros.

Nos Estados Unidos, a maioria dos estados não permite que menores de 18 anos façam tatuagens sem a permissão por escrito dos pais ou responsáveis legais. Mesmo com essa permissão, muitos estúdios de tatuagem têm políticas próprias que proíbem tatuagens em menores de idade.

É altamente recomendável que as crianças esperem até que tenham idade suficiente para tomar uma decisão informada sobre tatuagens e para cuidar adequadamente de sua pele tatuada.

Pode parecer que a abordagem da questão das tatuagens em menores consiste em uma mudança brusca de assunto, desviando-se do tema em estudo que é a redesignação sexual. Na realidade não se trata de mudar de assunto, mas de demonstrar que mesmo uma intervenção de alteração física meramente estética é regulada com rigor pela legislação brasileira em sentido lato. O que dizer então, levando em conta uma interpretação sistemática e, especialmente, um critério de proporcionalidade, sobre a redesignação sexual. Se uma criança ou mesmo adolescente é considerado imaturo para decidir sobre uma tatuagem em seu corpo, será que está em condições, ainda que assistido pelos pais ou responsáveis, para deliberar sobre uma alteração de seu sexo ou gênero (como se prefira) de forma definitiva? A resposta evidente é que não.

Mesmo nas legislações comparadas mais liberais com relação a mudança de sexo, não se permite alterações em crianças pequenas. A Espanha aprovou lei que permite a redesignação de gênero mesmo sem parecer médico. No entanto, há necessidade de autorização judicial para pessoas entre 12 e 14 anos e autorização dos pais ou responsáveis para pessoas entre 14 e 16 anos. Apenas os maiores de 16 anos podem decidir pela redesignação autonomamente. É visível que para menores de 12 anos (crianças de acordo com a nossa legislação – ECA), é vedada a redesignação sexual precoce. Anote-se ainda que a lei espanhola trata da alteração do Registro Civil e não especificamente de intervenções invasivas (cirurgias) e/ou tratamentos hormonais. 22 Observe-se ainda que numa interpretação sistemática a Espanha difere do Brasil quanto à capacidade e imputabilidade penal. A imputabilidade penal plena se dá somente aos 18 anos como no Brasil, mas há casos em que menores com entre 16 anos completos e menos de 18 anos podem responder criminalmente, embora na legislação juvenil, mas com penalidades graves, tais como internação em regime fechado prolongada (v.g. Terrorismo, Tráfico de Drogas, Crimes Sexuais). São conjugados “princípios em parte penais, com natureza sancionatória, e em parte educativos, voltados ao melhor interesse do jovem”. 23

Como visto, a legislação brasileira sobre a questão de mudança de sexo é bastante esparsa e confusa. Há efetiva falta de lei ordinária federal que trate do tema com maior segurança, embora seja claro e evidente que não é possível se pensar em procedimentos de redesignação sexual em menores, especialmente crianças, mesmo diante do arcabouço normativo já vigente. Atualmente existe, por exemplo, um Projeto de Lei n. 204/23, de autoria do Deputado Federal Julio Cesar Ribeiro (Republicanos – DF), que “veda cirurgias de mudança de sexo para menores de 21 anos e terapias hormonais para menores de 18 anos”. 24

As normas vigentes, embora esparsas e confusas não deixam dúvida quanto ao fato de que menores de 18 anos não podem ser submetidos a cirurgia de redesignação sexual e muito menos crianças, estas últimas nem mesmo a tratamentos hormonais ou similares. A notícia de que crianças não somente menores de 12 anos, mas com 4 anos de idade estão sendo submetidas a tratamentos de redesignação de sexo é algo absurdamente ilegal e criminoso que se dá à luz do dia, mas é ocultado por vieses ideológicos.

A ideologia não se pode sobrepor à lei e aos regulamentos e muito menos à natureza, sob pena de ocasionar danos gravíssimos à saúde e até à vida das pessoas, tal como historicamente se constata no caso da experiência macabra de John Money, já acima mencionada.

Seria possível alegar um médico ou um corpo médico objeção de consciência quanto a essas normas proibitivas e, mesmo diante delas, praticar redesignações de gênero em crianças e adolescentes?

A resposta é obviamente negativa, pois a objeção de consciência é um direito à negativa diante de permissivos e não um direito a uma atuação positiva, especialmente “contra legem” e até mesmo criminosamente perante normas proibitivas.

Sobre o tema já me manifestei em outra obra:

(...), é de se destacar que a objeção de consciência pode dar-se em relação tão somente às normas meramente permissivas e não com referência às normas de caráter proibitivo ou impositivo (imperativo). Exemplificando: um médico pode se recusar à prática do aborto sentimental 25 por questão de consciência, pois que se refere a norma meramente permissiva. No entanto, não pode simplesmente praticar um aborto não permitido legalmente porque alegue sua concordância político – filosófica com o direito das mulheres à disposição do próprio corpo. Isso porque os abortos criminosos constituem normas proibitivas, as quais são imunes à chamada objeção de consciência. Também não poderá o médico deixar de prestar socorro a quem dele necessite desde que não haja outra pessoa habilitada, pois que o crime de omissão de socorro (artigo 135, CP) impõe um dever de agir que não pode ser excetuado pela chamada objeção de consciência. 26

Aliás, sob o ponto de vista deontológico é preciso não olvidar que o Código de Ética Médica (Resolução CFM 1931/09), em seu Capítulo I, incisos II e VI, adota os Princípios Fundamentais da Beneficência e da não – maleficência, o que certamente não se coaduna com a intervenção em crianças e mesmo adolescentes mutilando-os de forma precoce em situações em que é inviável falar em discernimento pleno ou consentimento livre e esclarecido. 27

Sob o ângulo dos Direitos Humanos Internacionais não se pode afirmar que essas intervenções espúrias e criminosas possam satisfazer o “melhor interesse da criança”, orientação primordial da Convenção Sobre os Direitos da Criança, da ONU (artigo 3, I), ratificada pelo Brasil pelo Decreto 99.710/90. Também não se pode entender como essa espécie de mutilação precoce pode satisfazer o direito à saúde estabelecido pelo mesmo diploma internacional em seu artigo 24.

Está explícito no artigo 12, I da Convenção em comento que à criança ou adolescente 28 deve ser assegurado o direito de expressar seus “pontos de vista” de acordo com sua maturidade, o que é, na verdade, o mínimo de razoabilidade exigível. Vale transcrever o dispositivo:

Os Estados Partes devem assegurar à criança que é capaz de formular seus próprios pontos de vista o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados a ela, e tais opiniões devem ser consideradas, em função da idade e da maturidade da criança (grifo nosso).

Não resta a menor dúvida de que a adoção de procedimentos de redesignação sexual em adolescentes e crianças de tenra idade (até de 4 anos), ainda que com a autorização (conivência) dos pais ou responsáveis, infringe gritantemente a normativa internacional de garantia de direito fundamental em estudo. Uma opção dessa natureza requer maturidade que adolescentes não possuem, muito menos crianças. O suporte dos pais ou responsáveis se constitui numa verdadeira omissão do cumprimento do dever de cuidado, numa verdadeira irresponsabilidade com a adoção do caminho mais fácil de satisfazer caprichos e vontades de alguém que requer tutela e jamais satisfação ilimitada de seus impulsos que podem ser autolesivos ou até autodestrutivos.

Retomando a primordialidade do “melhor interesse da criança” insculpida no diploma internacional, é de se lembrar que não pode e não deve ele ser acenado somente com relação aos médicos, mas também aos pais ou responsáveis, nos estritos termos do artigo 18, 1 da legislação em comento. “In verbis”:

Os Estados Partes devem envidar seus melhores esforços para assegurar o reconhecimento do princípio de que ambos os pais têm obrigações comuns com relação à educação e ao desenvolvimento da criança. Os pais ou, quando for o caso, os tutores legais serão os responsáveis primordiais pela educação e pelo desenvolvimento da criança. Sua preocupação básica será a garantia do melhor interesse da criança (grifo nosso).

No âmbito interno importa lembrar que o ECA (Lei 8.069/90) também garante o direito à preservação da saúde das crianças e adolescentes pela família, pela comunidade e pela sociedade em geral (artigo 4º.). Dispõe ainda o artigo 7º. que “a criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”. Essas obrigações da família e da sociedade não se adequam à submissão precipitada de uma criança ou adolescente a procedimentos capazes de causar-lhe lesões ou mutilações de suma gravidade sem que sua manifestação de vontade tenha legitimidade, maturidade e segurança imprescindíveis. Em especial tendo em vista que o ECA considera as crianças e adolescentes como “pessoas humanas em processo de desenvolvimento” (artigo 15), de modo a incompatibilizar qualquer intervenção física de caráter permanente ou de difícil reversão.

Analisando a legislação juvenil pátria (ECA) percebe-se que este texto, longe de poder ser (como certamente o será e pouco importa) de preconceituoso ou até homotransfóbico, se erige como um manifesto em prol do cumprimento do artigo 70 do ECA que estabelece como “dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente” (isso sem falar do disposto no artigo 227, CF). Nesse aspecto, escrever este trabalho é apenas e tão somente o cumprimento de um dever cívico – legal. Um dever de não silenciar diante das violações perpetradas contra crianças e adolescentes em nome de ideologias ou por mero conformismo ou constrangimento diante dessas ideologias abrigadas no bojo do “politicamente correto” e seus mecanismos de imposição arbitrária de “vontades de poder”.

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Redesignação sexual em crianças no Brasil: um crime ocultado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7219, 7 abr. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/103359. Acesso em: 21 dez. 2024.

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