No dia 8 de maio próximo passado, o Presidente da República, para regulamentar a Lei nº 9.437 de 20/02/97 que institui o Sistema Nacional de Armas - SINARM, assinou o Decreto 2.222 que assim determina:
"Art. 19 - A fim de garantir a segurança de vôo e a integridade física dos usuários, é terminantemente proibido o porte de arma de fogo a bordo de aeronaves que efetuem transporte público.
Parágrafo Único - As situações excepcionais do interesse da ordem pública, que exijam a presença de policiais federais, civis, militares e oficiais das Forças Armadas portando arma de fogo a bordo, serão objeto de regulamentação específica, a cargo do Ministério da Aeronáutica, em coordenação com os Ministérios Militares e o Ministério da Justiça."
Quando o Decreto 2.222 entrou em vigor, encontrava-se em plena vigência a NOSER (Norma de Serviço do DAC - Departamento de Aviação Civil) 2501 de outubro de 1987, que estabelecia em, seu Capítulo VIII, item 3, letra "c", que "Oficiais das Forças Armadas, Forças Auxiliares e os Agentes Policiais poderão embarcar com destino a aeroportos nacionais portando suas armas". Por isso e, também, pela aparente contraditoriedade entre o Parágrafo Único do Art.19 e o seu caput, criou-se a idéia de que as referidas autoridades poderiam continuar embarcando de posse de suas armas em virtude de uma lacuna na legislação. Esse artigo procura mostrar justamente o contrário.
No entanto, primeiramente, faz-se necessário mencionar alguns conceitos elementares do Direito para que se possa melhor compreender essa questão e, assim, se possa resolver de forma satisfatória o número crescente de conflitos a ela relacionados. Vejamos:
1) Lacunas da Lei - O eminente Professor Paulo Nader, em sua Introdução ao Estudo do Direito, 13ª ed., Editora Forense, Rio de Janeiro, 1996, p.224, nos ensina que: "A lacuna se caracteriza não só quando a lei é completamente omissa em relação ao caso, mas igualmente quando o legislador deixa o assunto a critério do julgador. É possível de se manifestar ainda quando a lei, anomalamente, apresente duas disposições contraditórias, uma anulando a outra."
2) Antinomia - Norberto Bobbio, ilustre jurisconsulto italiano, em sua obra entitulada Teoria do Ordenamento Jurídico, 9ª ed., Editora UnB, Brasília, 1997, p.81, mostra que: "A situação de normas incompatíveis entre si é uma dificuldade tradicional frente à qual se encontraram os juristas de todos os tempos, e teve uma denominação própria característica: antinomia."
3) Critérios para a solução das antinomias - Ainda na obra supracitada, p.92 a 96, Bobbio nos mostra que: "As regras fundamentais para a solução das antinomias são três:
a) o critério cronológico;
b) o critério hierárquico;
c) o critério da especialidade.
O critério cronológico, chamado também de lex posterior, é aquele com base no qual, entre duas normas incompatíveis, prevalece a norma posterior: lex posterior derrogat priori.
O critério hierárquico, chamado também de lex superior, é aquele pelo qual, entre duas normas incompatíveis, prevalece a hierarquicamente superior: lex superior derrogat inferiori.
O terceiro critério, dito justamente da lex specialis, é aquele pelo qual, de duas normas incompatíveis, uma geral e uma especial (ou excepcional), prevalece a segunda: lex speciali derrogat generali. Lei especial é aquela que anula uma lei mais geral, ou que subtrai de uma norma uma parte da sua matéria para submetê-la a uma regulamentação diferente (contrária ou contraditória)."
Portanto, neste caso específico do Decreto 2.222 de 08/05/97 versus a NOSER 2501 de 06/10/87, à luz da doutrina, considerados os critérios cronológico e hierárquico, não me parece de boa juridicidade que uma simples Norma de Serviço, assinada há quase dez anos pelo Diretor Geral do DAC, possa vir a anular os propósitos de um Decreto do Presidente da República assinado recentemente. Considerando ainda que as situações excepcionais, previstas no Parágrafo Único do Art.19 do Decreto em questão, ainda não foram objeto de regulamentação específica, não se pode alegar o critério da especialidade para se criar desde já as exceções ao estabelecido no caput desse mesmo artigo. Assim, até que haja um diploma que determine além de quem, em quais situações se poderá portar arma a bordo de aeronaves que efetuem o transporte público, permanece tal prática terminantemente proibida.
Podemos ainda analisar a questão sob o ponto de vista do direito positivo. Para tal, faz-se necessário citar o Decreto-Lei 4.657, de 4 de setembro de 1942, a Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, que estabelece no Parágrafo Primeiro do Art.2º que: "A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior." Podemos ver consubstanciado aqui o critério cronológico citado anteriormente.
Ainda com referência à LICC, encontramos em seu corpo uma justificativa maior para que prevaleça a restrição ao porte de armas a bordo, até mesmo de forma mais ampla e definitiva: as exigências do bem comum. Ao determinar em seu Art.5º que "na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum" a LICC está em perfeita harmonia com o caput do Art.19 do Decreto 2.222 que justifica a proibição do porte de armas "a fim de garantir a segurança do vôo e a integridade física dos usuários". Ou seja, esses são exemplos de que, em nosso ordenamento jurídico, o interesse coletivo prevalece sobre o interesse individual. Face aos inúmeros casos de disparo acidental, até mesmo com pessoas experientes e habilitadas e, diante do grave risco de despressurização explosiva da aeronave na eventualidade de uma janela - ou mesmo a fuselagem - ser atingida por um disparo de arma de fogo, torna-se evidente que a mens legis do Decreto em questão tem o caráter da proteção coletiva.
Face ao exposto, me parece pouco provável que o simples deslocamento de um ponto a outro do país de policiais e oficiais se enquadre dentre "as situações excepcionais do interesse da ordem pública que exijam a presença de policiais federais, civis, militares e oficiais das forças armadas portando arma de fogo a bordo", a serem objeto de regulamentação futura. A única situação que se pode configurar um interesse da ordem pública seria o deslocamento de tropas ou de elementos cuja ação, a bem da ordem ou da segurança, se faça necessária imediatamente antes do embarque ou após o desembarque dos mesmos. Assim, o interesse de uns poucos usuários e do pessoal envolvido com a operação da aeronave teria que se sujeitar ao interesse da ordem pública. De outra forma, o direito individual do policial ou oficial portar a sua arma é que deve se sujeitar ao direito coletivo de segurança dos usuários desse serviço público concedido.
Quanto ao posicionamento de validar desde já o porte de arma a bordo aludido ao DAC, uma vez que o mesmo se encontra frontalmente em desacordo com a legislação em vigor, podemos depreender que o referido órgão normativo, por estar lidando diretamente com o caso e saber o que está tramitando no momento, esteja apenas querendo se adiantar no tempo expressando, deste modo, tão somente uma expectativa do que pode vir a ocorrer com a regulamentação do porte de armas de fogo a bordo. No entanto, devo alertar reiteradamente que, até que seja regulamentado o previsto em seu Parágrafo Único, o que está efetivamente em vigor é o disposto no caput do Art.19 do Decreto 2.222, ou seja, "é terminantemente proibido o porte de arma de fogo a bordo de aeronaves que efetuem transporte público".
No entanto, conceitos teórico-doutrinários e, até mesmo, a própria lei não tem sido suficientes para dirimir os conflitos que vem surgindo no dia-a-dia dos aeroportos do país. Em virtude de uma interpretação muito particular do Decreto 2.222 e da falta de um posicionamento firmemente contrário ao porte de armas a bordo por parte do DAC, agentes da Polícia Federal vem se utilizando da autoridade a qual representam para coagir tripulantes e demais funcionários das companhias aéreas a aceitá-los portando suas armas a bordo de aeronaves civis de transporte público. Chegamos ao absurdo de assistir a Comandantes e Supervisores de Aeroporto recebendo voz de prisão, por parte de policiais federais, pelo simples fato de exigirem o cumprimento da legislação em vigor. Então, como poderemos resolver esses conflitos?
Pode-se simplesmente querer evitar o conflito e aceitar o embarque do elemento armado ou, para preservar a segurança do vôo, fazer cumprir a legislação em vigor, procurando impedir esse embarque. Neste ponto, nos deparamos com o dilema descrito pelo brilhante jurista alemão Rudolf von Ihering em A luta pelo Direito, 16ª ed., Editora Forense, 1996, p.13: "Qualquer que seja, afinal, a decisão, implica ela sempre um sacrifício. Num caso, o direito é sacrificado à paz; no outro, a paz é sacrificada ao direito". No primeiro caso, existe o risco de alguém perceber um elemento armado a bordo - tomara que não seja em conseqüência de um disparo acidental - e termos a empresa e o seu preposto, o Comandante, acionados judicialmente por estarem descumprindo a legislação e, assim, expondo à risco a vida dos seus passageiros. Esta, portando, não me parece ser uma boa medida. No segundo caso, infelizmente, já tivemos alguns exemplos desagradáveis do quão difícil é fazer uma lei "pegar" nesse país. Essa, pelo visto, vai ter que "pegar" no tranco!
E o empurrão para que isso ocorra, amparado pela Constituição Federal em seu Art.5º, inciso LXIX, é o mandado de segurança: instituto criado para "proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do poder público". Portanto, impetrado contra a Polícia Federal - que determina expressamente aos seu agentes que portem suas armas a qualquer hora e em qualquer lugar - o mandado de segurança, salvo melhor juízo, é o caminho que se deve adotar para que se possa definitivamente resolver a questão.