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Ampliação da delação premiada aos atos de improbidade administrativa

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29/08/2007 às 00:00
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No processo penal, quem colabora com as investigações e confessa o crime poderá ter sua pena reduzida. Na improbidade administrativa, confessar não traz nenhum benefício a quem com ele praticou o ato ilícito.

Síntese Dogmática

O presente trabalho tem por objetivo propor a aplicação da delação premiada no âmbito dos ilícitos de improbidade administrativa.

Isto porque aquele que colabora com as investigações e confessa o crime, no âmbito penal, poderá ter sua pena reduzida. Na improbidade administrativa, confessar não traz nenhum benefício ao agente público ou ao terceiro que com ele praticou o ato ilícito.

Por outro lado, por vezes o rumo da investigação e o seu deslinde só são alcançados, com êxito, pela colaboração de um dos participantes do ato de improbidade, que esclarece sua sistemática.

Assim, a utilização da delação premiada, para fixação de sanção mínima, redução ou até afastamento de algumas das sanções, além de poder contribuir com as investigações e a instrução processual, mostra-se princípio de eqüidade ou de igualdade jurídica, já que, em diversas outras situações legais, a renúncia ao direito constitucional de manter-se em silêncio converte-se em benefícios penais, com redução expressiva da resposta estatal. [01]


Fundamentação

1)Valoração legal da confissão e da colaboração do agente nas infrações econômico-administrativas e nas ações penais.

O Código Penal permite a atenuação da pena ao agente que confessa espontaneamente a autoria do crime. Por confissão, entende-se a declaração ou admissão, pelo acusado, do crime que praticou. [02].

Há divergência quanto à necessidade de espontaneidade ou voluntariedade da confissão na doutrina e na jurisprudência [03].

Cabe ressaltar, com base em Damásio Evangelista de Jesus, que voluntário é o ato produzido por vontade livre e consciente do sujeito, ainda que sugerido por terceiros, mas sem qualquer espécie de coação física ou psicológica. Ato espontâneo, por sua vez, constitui aquele resultante da mesma vontade livre e consciente, cuja iniciativa foi pessoal, isto é, sem qualquer tipo de sugestão por parte de outras pessoas. [04]

Não se exige seja a confissão resultante de "arrependimento" do agente. [05] Destarte, não importa o motivo que levou o agente a admitir a autoria, se arrependimento ou propósito de se beneficiar em caso de futura condenação. [06]

Assim sendo, a confissão simples espontânea ou auto-declaração de culpabilidade conferirá ao réu o direito de redução da pena, em grau estabelecido pelo juiz, em virtude do reconhecimento de circunstância atenuante genérica, prevista no artigo 65, inciso III, alínea ´d´, do Código Penal: "são circunstâncias que sempre atenuam a pena, ter o agente confessado espontaneamente, perante a autoridade, a autoria do crime". [07]

Nota-se que o infrator não é obrigado a confessar. É garantia judicial internacional, no continente americano, por força do artigo 8º, §2º, alínea ´g´, do Pacto de São José da Costa Rica, o direito que toda pessoa tem de "não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada".

Igualmente a Quinta Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América assegura a garantia contra a auto-incriminação ("privilege against self incrimination"), desde o século XVIII, ao gizar que nenhuma pessoa "shall be compelled in any criminal case to be a witness against himself." [08]/ [09]

Destarte, se mesmo a despeito de inexistência de obrigatoriedade o infrator resolver confessar, será beneficiado, no mínimo, com aplicação da atenuante genérica.

Neste sentido, o seguinte julgado:

CONFISSÃO ESPONTÂNEA - Circunstância atenuante - Favor legal que apresenta caráter objetivo, sendo dever do julgador aplicá-lo quando ocorrida aquela - Alegação simultânea de legítima defesa - Fato que não impede o reconhecimento da atenuante, por ser cindível a confissão - Inteligência do art. 65, III, "d", do CP e aplicação do art. 200 do CPP - Declaração de voto (STJ) RT 669/377

Outros diplomas legais igualmente premiam aquele que confessa ou coopera com as investigações. Assim, a Lei dos Crimes Ambientais prevê, em seu artigo 14, a atenuação da pena quando houver arrependimento do infrator, manifestado pela espontânea reparação do dano, ou limitação significativa da degradação ambiental causada (inciso II), a comunicação prévia pelo agente do perigo iminente de degradação ambiental (inciso III) ou colaboração do réu com os servidores encarregados da vigilância e do controle ambientais (inciso IV).

Da mesma forma, o legislador introduziu, no Código Penal, o crime de sonegação de contribuição previdenciária, formando o tipo do artigo 337-A. Beneficiou com extinção de punibilidade obrigatória aquele que confessa as contribuições, importâncias ou valores e presta as informações devidas à Previdência Social, na forma definida em lei ou regulamento, antes do início da ação fiscal. [10]

Prosseguindo, cabe comentar sobre a delação premiada.

Para Damásio Evangelista de Jesus, enquanto delação é a incriminação de terceiro, realizada por um suspeito, investigado, indiciado ou réu, no bojo de seu interrogatório ou em outro ato, "delação premiada" configura aquela incentivada pelo legislador, que premia o delator, concedendo-lhe benefícios (redução de pena, perdão judicial, aplicação de regime penitenciário brando etc.). [11]

A inspiração para tal benefício no Brasil credita-se oriunda dos Estados Unidos (plea bargain), que sempre se utilizou dessa prática durante o período que marcou o acirramento do combate ao crime organizado, e da Itália (pattegiamento), na famosa Operação Mãos Limpas, que resultou em um processo de investigação que permitiu ao país identificar e punir pessoas ligadas a todo tipo de escândalos envolvendo a máfia italiana e importantes políticos. [12]

Foi previsto na Lei de Crimes Hediondos (Lei nº. 8.072/90, art. 8.º, parágrafo único [13]) e alcançou colocação também em outros diplomas legais, a saber: na Lei de Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional (Lei nº 7.492/86, art. 25,§2º, em redação dada pela Lei nº 9.080/95), na Lei de Crimes Contra a Ordem Tributária, Econômica e Contra as Relações de Consumo (Lei nº 8.137/90, art.16, parágrafo único), na Lei do Crime Organizado (Lei nº. 9.034/95, art. 6.º); no Código Penal (art. 159, 4.º – extorsão mediante seqüestro), na Lei de Lavagem de Capitais (Lei nº. 9.613/98, art. 1.º,§5º); na Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas (Lei nº. 9.807/99, arts. 13 e 14) e na Lei Antitóxicos (Lei nº. 10.409/2002, art. 32, § 2.º).

Há divergência de tratamento à delação premiada na legislação brasileira. A Lei do Crime Organizado, a Lei de Lavagem de Capitais e a Lei Antitóxicos expressamente exigem a espontaneidade da colaboração. A seu canto, a Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas contenta-se com a voluntariedade do ato.

Tanto a Lei de Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional como a de Crimes Contra a Ordem Tributária, Econômica e contra as Relações de Consumo exigem confissão espontânea que revele à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa.

Por fim, o Código Penal, no crime de extorsão mediante seqüestro, exige a eficácia da delação, sendo indiferente, pela omissão da lei, seja o ato espontâneo ou voluntário. [14]

Damásio Evangelista de Jesus entende que é possível, dado seu caráter geral, a aplicação subsidiária da Lei nº 9.807/99 (Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas) aos crimes praticados por organização criminosa ou lavagem de capitais. Destarte, se houver colaboração voluntária, embora não espontânea, tornar-se-á possível o perdão judicial ou a redução da pena mesmo para delitos tratados pelas Leis nº. 9.034/95 e 9.613/98, com base na Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas, desde que preenchidos os requisitos de seus artigos 13 e 14. [15]

A delação premiada oferece benefícios ao infrator que confessa ou colabora com as investigações, predominando o entendimento de que a lei exige a espontaneidade, sem exigir a voluntariedade. [16]

É o que se extrai do seguinte julgado:

PENA - Delação premiada - Perdão judicial e causa de diminuição da reprimenda - Denúncia contra os demais partícipes ou co-autores do crime que deve ser feita de maneira voluntária pelo co-réu, de modo a dispensar a espontaneidade - Aplicação dos benefícios, no entanto, somente quando o delito for praticado por três ou mais agentes Interpretação dos arts. 13 e 14 da Lei 9.807/99 (TJMG) - RT 786/699.

O acordo de leniência, a seu turno, apontado como uma forma de delação premiada [17], foi previsto na Lei nº 10.149/2000, a qual alterou e acrescentou dispositivos à Lei nº. 8.884/94. Permite a extinção da ação punitiva da administração pública ou a redução de um a dois terços da penalidade aplicável às pessoas físicas e jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica, desde que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo e que dessa colaboração resulte a identificação dos demais co-autores da infração e a obtenção de informações e documentos que comprovem a infração noticiada ou sob investigação. Já na área penal, permite a suspensão do curso do prazo prescricional e impede o oferecimento da denúncia nos crimes contra a ordem econômica, tipificados nos artigos 4º, 5º e 6º da Lei n.º 8.137/90. [18]

Contudo, a delação premiada da área penal e sua variável da área econômico-administrativa, o acordo de leniência, têm despertado críticas, a começar pelo aspecto ético. Isto porque, em parte, traduzem-se em incentivos legais à traição. [19]

O criminalista Roberto Podval entende que, pela delação premiada, acaba-se valorizando o vício de caráter de ser delator, enquanto para o criminalista Laertes de Macedo Torrens a idéia foi copiada do Direito Italiano sem uma análise mais profunda. "Temos de ter limites para o uso de uma lei como esta, criada na Itália em um momento excepcional, da Operação Mãos Limpas, de inspiração autoritária e fascista". [20]

De outro canto, comenta-se que a adoção da delação premiada exponha o reconhecimento da incapacidade do Estado frente às mais variadas formas de ações criminosas e demonstre a aceitação de sua ineficiência ao apurar ilícitos penais, notadamente os perpetrados por associações criminosas. [21]

No entanto, nem sempre a colaboração premial demonstra a incapacidade do Estado no combate ao crime. Tanto que Juliana Conter Pereira Kobren recorda que, "nos Estados Unidos, que possui um Poder Judiciário extremamente ágil, apoiado por uma Polícia moderna, eficiente e cumpridora de leis enérgicas e duras, faz, constantemente, uso do instituto da delação premiada, inclusive transaciona com os acusados". [22]

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No que se refere aos acordos cíveis e administrativos, também denominados settlement agreements, igualmente têm sido adotados por um número cada vez maior de países, sejam eles de tradição jurídica anglo-saxônica ou continental, a exemplo de Nova Zelândia, África do Sul e França, sem que isso indique, necessariamente, desaparelhamento do Estado para as investigações. A adoção do acordo de leniência ocorre por contribuir para a identificação de um número crescente de cartéis, em menor tempo e com menor dispêndio de recursos humanos e financeiros das autoridades antitruste. Pelo acordo o Estado "ganha eficiência sem perder eficácia no sentido de dissuadir práticas prejudiciais à concorrência". [23]

Outras razões são apresentadas para a aceitação da delação premiada pelos operadores do direito, as quais também podem ser aproveitadas, sob adaptações, para justificar o acordo de leniência.

Uma delas é que a pena, se entendida meramente como castigo pelo delito, não admitiria a delação premiada, já que se estaria concedendo um prêmio àquele que delinqüiu. Em contrapartida, se entendida como forma de repreensão estatal para que não se voltasse a delinqüir, inibindo a prática futura de crimes, alcançaria o seu fim, mesmo com a abdicação do Estado de aplicá-la em relação a um dos agentes, em virtude de sua contribuição com as investigações [24] ou pelo fato da confissão.

Outro argumento favorável à delação premiada é a constatação da profissionalização da atividade criminosa, com sua atuação hierárquica, sigilosa e a participação de vários membros. Nesta, necessariamente poucos conhecem o funcionamento, enquanto que os integrantes da cúpula da organização criminal, pessoas quase sempre bem sucedidas e com grande poder em suas mãos, raramente são descobertas pelos métodos ordinários de investigação. [25] A mesma dificuldade de obtenção de provas da existência do ilícito é percebida pelas autoridades antitrustes. Assim, pela colaboração do criminoso e/ou infrator, o Estado poderia romper a estrutura de maneira gradativa, conduta que somente com mais dificuldade conseguiria, sem o auxílio, face à estrutura de teia apresentada pelas organizações criminosas. [26]

Celso Moreira Ferro Júnior, delegado de Polícia Civil do Distrito Federal, e George Felipe de Lima Dantas, tenente-coronel reformado da Polícia Militar do Distrito Federal, comentam com muita propriedade o disparate entre a estrutura, a forma de atuação e os instrumentos tecnológicos e, até mesmo, os legais colocados à disposição dos aparelhos repressivos do Estado, em comparação com os utilizados pelas organizações criminosas, mormente por não disponibilizar a legislação tradicional instrumentos ágeis e velozes de acesso à informação pelas organizações policiais, ainda que se atravesse ou vivencie a "Era da Informação". Tal desequilíbrio levaria "a uma baixa efetividade dos órgãos policiais, em sua capacidade de controle e supressão do crime organizado".

Para eles, "se o crime não tem, objetivamente, a legislação como uma barreira para sua consecução perniciosa, já não se pode imaginar o mesmo em relação à investigação criminal. Na maior parte das vezes, o investigador policial deve pautar sua atividade coerentemente com uma série de obstáculos de ordem legal. Atualmente, os criminosos têm acesso à informação, tecnologias, comunicações, agem de forma diversificada, abrem empresas com facilidade e ocultam dinheiro. No Brasil, como em vários outros países, a globalização do crime se expressa hoje também em seu caráter trans-estadual, nacional, regional, internacional e finalmente transnacional, considerando o mundo como um todo. Grupos organizados agem, portanto, articuladamente, em diferentes unidades federativas, em países próximos ou globalmente, com conexões de múltiplas possibilidades (vínculos). Enquanto isso ocorre, a Justiça exige tramitação burocrática para concessão de mandados judiciais, necessidade de cartas precatórias, dificuldades para determinação judicial de prisões temporárias, demora na autorização de interceptações, além de uma cultura jurídica engessada em que, para todo acesso a dados, é necessário um mandado judicial específico". [27]

Assim sendo, como forma de fazer frente ao crime organizado [28], de combater a criminalidade [29] e amparado em um Direito Penal funcionalista, utilitário, pragmático [30] e menos idealista, a delação premiada vem ganhando a simpatia do legislador pátrio, inspirado, como dito, na ordem jurídica de outros países. Nessa situação, o benefício seria utilizado como forma de estímulo à elucidação e punição de crimes praticados em concurso de agentes (plurissubjetivos). [31]

Enfim, seja pela delação premiada e/ou acordo de leniência, seja pela confissão espontânea, aquele que facilita o trabalho da investigação é tratado de forma diferente do que nega os fatos. Percebe-se que, em qualquer das situações acima analisadas, o réu preserva o seu direito ao silêncio e continua desobrigado de colaborar com as autoridades. Mas se resolver falar, cooperando será, no mínimo, premiado com a redução da pena. [32]

2)Da fixação da sanção nos casos de procedência da ação de improbidade administrativa.

Ao lado dos instrumentos punitivos do direito penal, especialmente dos crimes contra a Administração Pública, o Estado tem ao seu dispor a Lei nº 8.429/92, que pune atos de improbidade administrativa que implicam enriquecimento ilícito de agentes públicos, causam prejuízo ao erário, ou atentam contra os princípios da administração pública.

Possibilita solicitar o seqüestro e a indisponibilidade de bens cautelarmente e prevê a aplicação das sanções de perda da função pública, suspensão dos direitos políticos, perda dos bens adquiridos ilicitamente, pagamento de multa, ressarcimento do dano e proibição de contratar com o poder público ou receber incentivos ou benefícios fiscais e creditícios. Os sujeitos ativos da improbidade seriam os agentes públicos responsáveis, partícipes e particulares beneficiários. [33]

Além da similitude do ilícito penal e do ilícito de improbidade administrativa em termos de conduta e suas conseqüências, de seus sujeitos ativos e passivos e até de tipologia, não sendo incomum a tutela de idênticos bens jurídicos, é de se ressaltar que a sanção em um e em outro tem a mesma finalidade, divergindo quanto ao foco de incidência.

No ilícito penal, a sanção geralmente incide sobre a liberdade pessoal, enquanto que, nas condenações por improbidade, sobre bens (indisponibilidade e seqüestro), comportamentos negociais (contratar com o poder público ou receber incentivos ou benefícios fiscais e creditícios) e direitos políticos (candidatar-se a cargos públicos, ou a cargos eletivos, ou de usufruir do direito-dever de voto [34]).Contudo, continua sendo sanção, com finalidade repressiva e preventiva.

Como sustenta Fábio Medina Osório, o limite dogmático entre o Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador é o de que não este não pode tipificar e punir condutas com penas privativas de liberdade [35], pois, quanto ao conteúdo ou qualidade das demais penas ou aos elementos morais e éticos, não haveria absoluta diferenciação, tanto que o legislador teria poderes discricionários na "administrativização de ilícitos penais ou na penalização de ilícitos administrativos". [36]

Dentro desta visão, conceitua o autor que "a sanção administrativa consiste em um mal ou castigo, com alcance geral e potencialmente pro futuro, imposto pela Administração Pública, considerada materialmente, pelo Poder Judiciário ou por corporações de direito público, a um administrado(r), agente público, indivíduo ou pessoa jurídica, expostos ou não a relações especiais de sujeição com o Estado, como conseqüência de uma conduta ilegal, tipificada em norma proibitiva, com uma finalidade repressora, ou disciplinar, no âmbito formal ou material do direito administrativo". [37]

Em outras palavras, a sanção administrativa, tal qual a penal, tem caráter aflitivo, pela imposição de deveres e privação de direitos preexistentes, aliado a uma finalidade repressora da conduta e de restabelecimento da ordem jurídica. [38]

A ação de improbidade administrativa é regida pelo processo civil. Segue o rito ordinário, após a fase diferencial própria, de notificação do demandado para apresentar defesa prévia. Sua tramitação mais se aproxima da processualística penal do que da civil, guardando muitos pontos em comum com o rito de instrução dos processos por crime de responsabilidade cometido por funcionário público.

Quanto à aplicação de sua sanção, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça inclina-se no sentido de sua fixação e dosagem segundo a natureza, a gravidade e as conseqüências da infração [39], com observância da lesividade e reprovabilidade da conduta do agente, do elemento volitivo e da consecução do interesse público. Posiciona-se, ainda, no sentido de individualização da sanção [40] em relação a cada réu, inclusive sob os princípios do direito penal. [41] Como conseqüência, as sanções não têm de ser aplicadas, obrigatoriamente, de forma cumulativa, cabendo ao magistrado a sua dosimetria, aliás, como deixa entrever o parágrafo único do artigo 12 da Lei nº 8.429/92.

No entender reiterado do Superior Tribunal de Justiça [42], o espectro sancionatório da Lei de Improbidade Administrativa induz interpretação que deve conduzir à dosimetria relacionada à exemplariedade e à correlação da sanção, critérios que compõem a razoabilidade da punição.

Levando esses aspectos em consideração, menciona-se que Lei de Improbidade Administrativa, mesmo considerada como um dos melhores instrumentos para punir a corrupção [43], apresenta dificuldades no seu trilhar investigatório, tal qual ocorre com processos criminais que envolvam organizações criminosas e lavagem de capitais, ou, ainda, nas investigações administrativas empreendidas pelos órgãos de defesa da concorrência, relacionadas a cartéis.

Roberto Livianu, Promotor de Justiça do Estado de São Paulo, cita o exemplo "onde o Ministério Público está investigando um mega-esquema de crime organizado e não consegue chegar ao topo da pirâmide. Fez uma investigação das pessoas que formam a base do esquema e percebe que elas podem contribuir para chegar ao topo. Mas não pode abdicar da acusação de quem está na base, em troca de informação, para chegar aos mentores. Essa barganha processual é proibida pela legislação brasileira" [45], em face dos princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade.

Há de se ponderar que, apesar da vontade institucional vinculada ao cumprimento das leis ou de estar imbuído de seu dever institucional de atender a sociedade quanto a seus anseios de ordem, moralidade e justiça social [46], o Ministério Público nem sempre é dotado de infra-estrutura adequada para exercer o combate da improbidade administrativa, valendo-se, muitas vezes, da colaboração de outros órgãos institucionais. [47] Com isto, mostra-se eficaz até certo ponto em sua atuação, considerando que a tarefa de se perscrutar todos os meios legais possíveis para que a Lei da Improbidade Administrativa se cumpra é das mais árduas. [48]

Os óbices encontrados limitam a atuação dos membros do Ministério Público e os resultados estão aquém da expectativa dos cidadãos brasileiros. É fato que a sociedade anseia por leis que se objetivem em resultados facilmente perceptíveis, pois o livre acesso à informação isenta e ao conhecimento dos negócios públicos identifica uma ordem social autenticamente democrática. [49]

Há similitude entre o ilícito penal e o de improbidade administrativa em todos os fatores já comentados. Fábio Medina Osório amplia o leque das semelhanças, ao apontar que se admite dolo ou culpa como pressupostos da responsabilidade por improbidade administrativa. Tal responsabilidade subjetiva acarreta a possibilidade de serem admitidas causas que excluam a culpabilidade administrativa ou a própria exclusão de tipicidade. Em face disto, vislumbra a argüição de teses como erro de tipo e de proibição no âmbito do direito administrativo sancionador, sem que se cometa uma `heresia´. [50]

Se para o ilícito penal a confissão gera a atenuação da pena, não há razoabilidade em aplicar uma penalidade para o mesmo fato, agora visto sob seu prisma administrativo, com o único enfoque de gerar uma decisão de mérito, diminuindo a matéria probatória a ser examinada (CPC, art. 334, inc. II), sem qualquer repercussão na dosimetria sancionatória.

A jurisprudência criminal reconhece a confissão espontânea e a valora, já que sua realização beneficia a todos, serve de base para a fundamentação da condenação, facilita o trabalho do Estado na demonstração da culpa e, ao mesmo tempo, dá a certeza que não haverá uma injustiça. [51]´

Se a confissão nos processos cíveis, especificamente nos feitos de improbidade administrativa, fosse reconhecida como atenuante da sanção e mais, se fosse estendido a esse tipo de feito os demais benefícios da delação premiada, haveria um avanço na instrução do inquérito civil e na própria instrução processual, obtendo-se peças de um quebra-cabeça que, de outra forma, pode seguir incompleto, mesmo que se obtenha um deslinde condenatório.

Não se vislumbra empecilho legal, já que o artigo 126 do Código de Processo Civil autoriza expressamente o uso da analogia no julgamento da lide, ao gizar que "o juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito". Igualmente, a Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro (Decreto-lei n.º 4.657/42) estabelece, no seu artigo 4.º, que "quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito".

A aplicação da analogia com fundamento no princípio da igualdade jurídica é, de forma geral, consenso entre os doutrinadores [52]. Por outro lado, segundo MAXIMILIANO e CASTÁN TOBENAS, haveria duas situações em que não seria possível a aplicação da lei através da analogia: 1º ) no caso das leis de caráter criminal; 2º ) nas de iure singulare. [53] Ora, nenhuma dessas limitações se aplica à extensão da delação premiada às ações de responsabilização por improbidade administrativa. Como visto, não têm caráter penal. Tampouco a Lei nº 8.429/92 trata-se de norma de direito singular ou excepcional, de modo a não poder comportar a decisão de semelhante para semelhante.

Veja-se que nas infrações econômico-administrativas regidas pela Lei nº 8.884/94, que constituem, a um só tempo, ilícito administrativo, punível por esse diploma, e crime contra a ordem econômica, cujos tipos são previstos pela Lei nº 8.037/90 [54], à colaboração do autor, seja na esfera administrativa, seja na penal, tão similar, portanto, ao que ocorre com a Lei de Improbidade Administrativa, corresponde um tratamento suave, brando, da autoridade administrativa ou judicial. [55]

Como a Lei nº 8.429/92 não fixa critério a ser obedecido na inflição da sanção [56], este seguirá a discricionariedade judicial e as fontes integradoras do Direito [57], que incluem, com visto, a analogia. Deve ter-se em mente que o Judiciário não deve ser um mero repetidor de fórmulas dadas pela legislação. Deve atuar na função de garantidor de direitos reconhecidos pela legislação, mas tem importante papel a desempenhar no desenvolvimento da luta pelo pleno resgate da cidadania, utilizando-se, quando necessário, da força criadora do direito, como, por exemplo, a utilização de experiências inovadoras para a solução de conflitos. [58]

Se aceita a extensão da delação premiada aos atos de improbidade administrativa, a doutrina e a jurisprudência tratariam de elaborar suas regras ou requisitos, como têm feito nas situações criminais em que é aplicada.

À guisa de ilustração, serviria de orientação o entendimento de que a delação premiada nos atos de improbidade administrativa só poderia ser aplicada quando o delito fosse praticado por três ou mais agentes, por interpretação analógica dos artigos 13 e 14 da Lei nº 9.807/99. [59] Da mesma forma, que a confissão seria incomunicável e incabível a sua aplicação automática, por extensão, no caso de concurso de pessoas [60]l. Se houvesse retratação, não poderia servir como atenuante. Ainda, que o ilícito administrativo encontrasse correspondência naqueles em que o Direito Penal prevê a delação premiada.

Da mesma forma, por analogia aos ditames da Lei nº 8.884/94, com as alterações dadas pela Lei nº 10.149, de 21.12.2000, a delação premiada não seria aplicada aos agentes públicos ou terceiros que tenham estado à frente do ato de improbidade administrativa, na qualidade de líder, promovendo ou organizando a cooperação ao ilícito, ou dirigindo a atividade dos comparsas. Seria aplicada somente a um dos envolvidos no ilícito administrativo, não sendo admissível a habilitação de todos ao benefício ou sua extensão aos demais.

O acordo de colaboração para fins de delação premiada deveria ser realizado na fase extrajudicial, perante o Ministério Público, com posterior homologação judicial, em caráter sigiloso. Não haveria prevenção para a ação principal, até para manter a imparcialidade da autoridade judicial competente para o julgamento da ação de responsabilidade por ato de improbidade administrativa. O agente público, a pessoa jurídica ou pessoa física envolvida deveria, ainda, cessar completamente seu envolvimento na infração noticiada ou sob investigação a partir da data de propositura do acordo ao Parquet.

Se as informações fossem passadas somente em juízo, ainda assim serviriam como a atenuante da confissão, refletindo no apenamento mais brando. Quando o beneficiado fosse pessoa jurídica, os efeitos da delação estender-se-ia aos respectivos dirigentes ou administradores que, em conjunto com aquela, assinassem o instrumento na fase extrajudicial ou confessassem.

A confissão e colaboração prestada seriam consideradas na gradação da sanção administrativa pela conduta que gerou enriquecimento ilícito e/ou foi lesiva ao erário e/ou aos princípios da Administração Pública. A confissão implicaria em redução do apenamento, sendo que o quantum da redução seria avaliado levando em consideração as variáveis da fase em que foi realizada, se desde a fase extrajudicial, durante o inquérito civil, ou somente em juízo. Quanto mais precedente a confissão, maior sua valoração como atenuante da sanção. Em relação à colaboração, seria avaliado o seu grau de efetividade, sendo que quanto mais eficaz para a descoberta de provas e identificação da autoria, mais repercutiria no abrandamento e até eventual afastamento das sanções, inclusive das mais gravosas. Havendo tanto confissão como colaboração para a elucidação do ato de improbidade, ambas teriam seu reconhecimento na dosimetria sancionatória administrativa.

Por fim, utilizando as possibilidades trazidas pela Lei nº 9.099/95, em seus artigos 76, §2º, inciso II, e 89, caput, que o réu não estivesse sendo processado ou não tivesse sendo condenado em outra ação de improbidade administrativa, bem como que não tivesse sido beneficiado anteriormente, no prazo de cinco anos, com redução ou exclusão de algumas das sanções de improbidade administrativa, por força do reconhecimento de sua confissão espontânea e colaborativa com a investigação.

Para aqueles que focarem somente o aspecto ético da "traição", cabe salientar que "não há ciência ou tecnologias puras, limpas ou boas (por mais que o seu processamento tenha sido ´muito razoavelmente ético´), pois as imponderáveis alteram demais a subjetividade decorrente do uso político. [61]

Por outro lado, recorda-se que mesmo a Ética desdobra-se em correntes, sendo que a ética utilitarista, também denominada consenqüencialista, por levar em consideração os efeitos reais produzidos, qualificando-os com base na utilidade [62], representa uma das mais influentes teorias no campo da Filosofia Moral Contemporânea. [63]

Por esta corrente [64], o maior valor ético deve consistir em procurar o maior bem possível para o maior número possível de pessoas [65], ou, em outros termos, já que não se pode beneficiar a todos, que se beneficie o maior número possível. Devido às vantagens gerais como teoria teleológica, com abordagem que substitui o idealismo pelo pragmatismo, a teoria utilitarista vem sendo aceita na discussão bioética brasileira. [66].

Portanto, o utilitarismo seria a ética mínima, dentro da pretensão da universalidade inerente ao raciocínio ético. Seu ponto de partida pode ser indicado por aquilo que se denomina principio da utilidade, a ser formulado da seguinte maneira: uma ação é útil e, portanto justa, ética e correta, quando traz mais felicidade do que sofrimento aos atingidos. Deste modo o prejuízo de alguns poderia ser justificado pelo benefício de outros, desde que estes estivessem em maior número (cálculo de maximização do bem). [67]

Ainda que sob esse enfoque utilitarista, onde "uma ação é tanto melhor quanto mais positivas forem as conseqüências para o agente moral e para o maior número de pessoas" [68], onde se busca a maximização dos benefícios e minimização dos prejuízos [69], importa questionar se, para a sociedade, não é mais vantajoso premiar um colaborador ou fazer o uso negociado da confissão do que deixar de punir, por falta de provas, os demais infratores. Ao não se admitir a delação premiada na seara de improbidade administrativa, retrai-se a intenção de colaboração do agente público ou do terceiro e não se obtêm dados que somente seriam conhecidos com o completo esclarecimento do esquema da organização. Deixa-se, por vezes, de tutelar bem jurídico importante, como a moralidade administrativa, para garantir a impunidade de outros participantes. [70] E impunidade para quem desvia dinheiro público significa menos escolas, menos saúde, menos infra-estrutura viária, menos infra-estrutura elétrica, menos cultura, menos saneamento básico, impedindo, em última análise, o desenvolvimento do país. [71]

Para Fábio Medina Osório, na "Era da Complexidade, ou na sociedade pós-capitalista da informação, os ilícitos assumem proporções tão agressivas que passam a exigir um Estado igualmente mais `agressivo´,(...) a demandar posturas funcionalistas e estratégias de aproximação das ferramentas inerentes ao Direito Punitivo". [72]

Por esta razão, a extensão da delação premiada aos atos de improbidade administrativa não é de todo rechaçada por Wallace Paiva Martins Junior. [73] Ao contrário, sustenta que "a adequada penalização dos atos de improbidade administrativa, que têm o caráter de organização criminosa, está a merecer especial atenção do legislador pátrio no direito penal e processual penal e reclama inserção de instrumentos eficazes e proporcionais no combate a essa modalidade de crime organizado, exigindo um preparo mais efetivo, e igualmente organizado, do Ministério Público e do Poder Judiciário no exercício de suas funções constitucionais". [74]

Igualmente a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) defende a delação premiada, sugerindo que se promova a especialização técnica da Polícia e dos Poderes Legislativo e Judiciário no setor. Isso porque, para a entidade, não é "possível julgar com eficácia os agentes da criminalidade organizada sem conhecimento da dinâmica dessa modalidade delituosa, nem dos recursos tecnológicos de que dispõem".

Afinal, deve-se de ter em conta a medida da sanção e sua finalidade de proteção do bem jurídico. O Estado abdicará de punir integralmente um dos infratores, aceitando premiá-lo, em troca de informações que auxiliarão na elucidação do fato. E a finalidade de qualquer processo é descobrir a verdade dos fatos para que o juiz possa aplicar a decisão mais justa no caso concreto. [75]

Por fim, a doutrina já começa a sustentar que "a superioridade teórica da dogmática penal pode e deve servir de inspiração garantista na seara do direito administrativo punitivo, eis que ambas constituem projeções do direito punitivo público". [76]

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Sobre a autora
Karina Gomes Cherubini

Promotora de Justiça do Estado da Bahia. Especialista em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Especialista em Gestão Pública pela Faculdade de Ilhéus. Especialista em Direito Educacional pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHERUBINI, Karina Gomes. Ampliação da delação premiada aos atos de improbidade administrativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1519, 29 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10340. Acesso em: 24 abr. 2024.

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