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O martírio da Advocacia-Geral da União

05/09/2007 às 00:00
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No dia 31 de agosto de 2007, foi publicada a Medida Provisória nº 386/2007, alterando a Lei nº 11.358, de 19 de outubro de 2006, por meio da qual se promoveu o merecido reajuste sobre os valores dos subsídios de todas as carreiras da Polícia Federal (Delegado Federal, Perito Criminal, Escrivão e Agente).

Essa decisão política governamental, não obstante absolutamente correlacionada com o reconhecimento da importância institucional da Polícia Federal, deveu-se a um acordo firmado ainda no ano de 2006 entre o então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos e o atual ministro do Planejamento Paulo Bernardo. Naquele mesmo período, costurou-se idêntico compromisso entre o Advogado-Geral da União à época, ministro Álvaro Ribeiro Costa, e o Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, conforme narrativa do próprio ministro em documento oficial parcialmente transcrito mais adiante.

Em decorrência daqueles entendimentos, fora editada a Medida Provisória nº 305, de 29.06.2006, que promoveu a implantação do atual modelo remuneratório (denominado subsídio), tanto para as carreiras da Polícia Federal, quanto para os membros da Advocacia-Geral da União (Procuradores Federais, Advogados da União e Procuradores da Fazenda Nacional). Ocorre que, ao contrário dos pactos acima noticiados, e aproveitando-se das vedações legais impostas pelo período eleitoral, o ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão restou por descumprir ambos os acordos – implantando subsídios em valores aquém daqueles negociados –, o que gerou grave e particular descontentamento entre os membros da Advocacia-Geral da União e das carreiras policiais da Polícia Federal.

Não por outra razão, este ano os policiais federais decidiram iniciar diversos procedimentos tendentes à deflagração de greve, de modo a coagir o Governo Federal a cumprir o acordo firmado em 2006. O desfecho para essa movimentação se deu com a publicação da já mencionada Medida Provisória nº 386/2007, restabelecendo, dessa maneira, a credibilidade das tratativas empreendidas entre as autoridades políticas envolvidas.

Ocorre, porém, que o acordo promovido entre o ex-ministro Álvaro Ribeiro Costa e o Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva permanece não concretizado. O que teria ocorrido, então?

Pois bem. Voltando ao mês de dezembro de 2006, quando já se aproximava o final de sua gestão à frente da AGU, o então ministro Álvaro Ribeiro Costa encaminhou ao Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva o Ofício EM nº 11/2006-AGU, em que relata a intransigente inobservância, pelo ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, quanto à determinação presidencial que estabelecia a paridade, ao longo de três anos, entre os subsídios dos membros da Advocacia-Geral da União e aqueles já existentes para os membros do Ministério Público da União, tendo em vista precipuamente a grave evasão de profissionais jurídicos da AGU, bem como a similar posição orgânica de ambas as instituições (fixadas no Capítulo IV – Funções Essenciais à Justiça) na Constituição Federal. Seguem alguns trechos do mencionado documento oficial (repita-se: encaminhado pelo então ministro Álvaro Ribeiro Costa ao Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva)1:

"Preciso, mais uma vez, destacar para Vossa Excelência, dentro do quadro da supracitada escassez, quatro problemas fundamentais que urge sejam resolvidos para que possa ser atingido o objetivo de plena estruturação desta Casa:

a) reconhecimento do valor do trabalho de nossos profissionais jurídicos - advogados da União e Procuradores Federais -, que implica, no que tange a subsídios, tratamento isonômico dos membros da AGU em relação ao que é dado a integrantes das carreiras jurídicas do Ministério Público e do Poder Judiciário;"

Em seguida, o ministro Álvaro Ribeiro Costa relembra ao Sr. Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva a insubordinação por parte ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, numa demonstração de grave violação à hierarquia governamental2:

"Apesar da expressa determinação de Vossa Excelência, não foi possível, em 2006, que o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão implementasse, tal como previamente acertado comigo, a isonomia entre membros da AGU, do MP e do Poder Judiciário. Isso põe em risco a qualidade da representação judicial e extrajudicial da União, responsabilidade da AGU: em primeiro lugar, pela carga psicológica negativa sentida por Advogados da União e Procuradores Federais, ante o fato evidente de serem os profissionais que tipicamente defendem a União menos valorizados, por esta, do que aqueles que podem propor ações contra ela; em segundo lugar, pela motivação que nossos profissionais jurídicos sentem para ingressar nos quadros do Ministério Público, do Poder Judiciário e até mesmo de ministérios públicos estaduais, o que gera indesejável perda de talentos para a AGU. (grifo nosso)

É válido destacar alguns pontos da exposição de motivos do projeto de lei (encaminhado ao ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão em abril de 2005) ao qual alude implicitamente o então Advogado-Geral da União, oportunidade em que se expuseram as principais razões para a necessidade de sua implementação3:

"Verifica-se que os profissionais da área jurídica do Poder Executivo Federal estão a receber valores cada vez mais inferiores aos das demais carreiras jurídicas federais, especialmente do Poder Judiciário da União e do Ministério Público da União, fato que tem ocasionado a migração constante de profissionais de excelente qualidade para estas carreiras, que no momento apresentam-se mais atrativas financeiramente, em flagrante prejuízo para o desenvolvimento das atividades da Advocacia-Geral da União e de seus órgãos vinculados, bem como da Defensoria Pública da União, órgãos essenciais para a

consecução e manutenção das políticas públicas do Estado brasileiro." (grifo nosso)

Logo em seguida, o ex-ministro relata a preocupação do Tribunal de Contas da União – TCU com o alto índice de evasão nas carreiras jurídicas da AGU4:

"Esse fato foi apontado inclusive pelo Ministro Presidente do Tribunal de Contas da União em entrevista concedida ao jornal Correio Braziliense de 06.02.2005, preocupado com os danos que essa migração de servidores das carreiras jurídicas do Poder Executivo tem causado à União: "Os advogados da União ganham a metade do que recebe um advogado em outra carreira. Então, todo advogado da AGU sai de lá para fazer concurso para procurador da República, para a magistratura, porque vai ganhar mais". (grifo nosso)

Passados alguns meses, e já com a posse do atual Advogado-Geral da União, ministro José Antônio Dias Toffoli, decidiu-se buscar alternativas ao dramático problema remuneratório enfrentado pela AGU. Chegou-se, então, a ser anunciada providencial decisão do Governo Federal – mais uma vez sob a ordem do Sr. Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva –, no sentido de assegurar o repasse dos honorários advocatícios (na forma combinada dos arts. 3º, § 1º e 23, ambos da Lei nº 8.906, de 04 de julho de 1994 – Estatuto da Advocacia e da OAB), por meio da mesma medida provisória que alteraria o subsídio das carreiras policiais, aos seus titulares de direito: os membros da Advocacia-Geral da União.

Toda a problemática institucional parecia solucionada, quando, menos de um ano (termo inicial cuja contagem se inicia com a publicação da MP nº 305/2006) após agir com absoluto desprezo e desrespeito à Advocacia-Geral da União, o ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão novamente afronta aquela Instituição de Estado, decidindo comunicá-la acerca da impossibilidade, por razões politicamente arranjadas, de destinar-lhe os honorários advocatícios, bem como noticiando-lhe a permanência dos atuais subsídios dos seus membros, numa inequívoca compactuação com interesses pouco republicanos tendentes ao desmonte da AGU.

É preciso, portanto, denunciar-se à sociedade o processo de sangria diária por que passa a Advocacia-Geral da União (intensificado desde a implantação dos subsídios dos ministros do Supremo Tribunal Federal – através da Lei nº 11.143, de 26 de julho de 2005 –, cujos efeitos remuneratórios se espraiam até os magistrados federais de 1ª instância), Órgão jurídico esse constitucionalmente designado como essencial à realização da Justiça, a quem compete realizar todo o controle interno de legalidade dos atos do seu Poder Executivo (inclusive suas Autarquias e Fundações Federais), bem como representá-la judicial e extrajudicialmente, em nome de quaisquer dos seus três Poderes (Executivo, Judiciário e Legislativo).

É evidente que o debate em torno da atual política remuneratória na Advocacia-Geral da União – criada sob forte expectativa institucional – envolve muito maior responsabilidade por parte dos tecnocratas do ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, tendo-se por inteiramente inadequado o exclusivo apego a questiúnculas orçamentárias para definir-se os parâmetros salariais de seus membros. Impõe-se observar o contexto que envolve a posição orgânica que ocupa a AGU na Carta Política do país, bem como as nocivas consequências decorrentes da absurda disparidade remuneratória entre as carreiras jurídicas da União. Não se está aqui, contudo, a defender a simplória extensão de privilégios impertinentes do Poder Judiciário e do Ministério Público àquela Advocacia de Estado, mas sim a demonstrar a inolvidável necessidade de preservação da Advocacia-Geral da União enquanto órgão detentor da função primordial de defesa dos interesses do Estado brasileiro (inclusive perante tribunais internacionais), cuja existência – sob o ponto de vista sociológico – apenas de justifica na medida em que se impõe a realização do bem-comum da sociedade.

Para que o leitor tenha a exata noção do que se está a falar, passemos aos números. Antes, porém, esclareça-se que, desde a implantação do subsídio, não há possibilidade legal de sobrepor-se a ele quaisquer vantagens remuneratórias outrora existentes (quinquênios, anuênios, adicionais ou gratificações de qualquer espécie etc.).

Não se tem dúvida quanto ao grave equívoco político do ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, em autorizar que um juiz federal ou um juiz do trabalho substituto, ou ainda, um membro iniciante no Ministério Público da União (procurador da República ou procurador do trabalho) perceba o subsídio líquido aproximado de R$ 14.000,00 (quatorze mil reais), enquanto o subsídio líquido de um membro recém-ingresso na Advocacia-Geral da União constitui-se em aproximados R$ 7.000,00 (sete mil reais). A surrealidade do atual momento pode ser verificada quando se sabe que, até 1998, todos percebiam idêntica remuneração. Bem por isso, a permanecer o estado atual das coisas, com o permanente estímulo à migração maciça e ininterrupta dos profissionais da AGU para aquelas outras instituições jurídicas, muito em breve as suas atividades estarão inviabilizadas (situação doravante agravada pela edição da MP nº 386/2007, que aumentou os subsídios da carreira de Delegado Federal, passando decerto a constituir-se em mais uma alternativa potencialmente apta a cooptar financeiramente os Advogados da União, Procuradores Federais e Procuradores da Fazenda Nacional).

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Vê-se que não é necessário fazer grande esforço para se perceber a causa para a crise institucional por que hoje passa a Advocacia-Geral da União. Basta, para tanto, ter em mãos os números relativos à vultosa evasão (nem de perto alcançável por qualquer outra carreira de Estado da União) de seus quadros nos últimos dois anos (exatamente desde a implantação dos subsídios dos magistrados federais e dos membros do Ministério Público da União). Em média, a cada concurso público para ingresso na Advocacia-Geral da União, aproximadamente 40% dos aprovados sequer são investidos nos cargos que a integram (desistem de tomar posse para permanecerem estudando para outros concursos públicos de carreiras jurídicas mais atrativas financeiramente). Outros tantos, desmotivados pela ausência de reconhecimento remuneratório do Estado ao seu trabalho, acabam por serem posteriormente aprovados em concursos públicos para a magistratura federal e para o Ministério Público da União (não é difícil abrir-se qualquer edição do D.O.U. e verificarem-se diários atos de exoneração de membros da AGU, em virtude da aprovação em outro concurso público).

Nesse cenário, cabe uma constatação: embora se esteja tratando de serviço público, é injustificável a perniciosa existência de uma "competição de mercado" hoje verificada entre as carreiras jurídicas da União, que acaba por prejudicar sobretudo aquelas "Funções Essenciais à Justiça" ainda não dotadas de autonomias orçamentária e financeira (Advocacia-Geral da União e Defensoria Pública da União), verdadeiras reféns das políticas governamentais de remuneração dos servidores públicos do Poder Executivo Federal, gerando distorções institucionais nunca antes vistas na história republicana do país. Inclusive, a situação da Advocacia-Geral da União gerou espanto no Chefe da Advocacia-Geral da Itália (modelo institucional no qual se inspiraram diversos países, como, p. ex., Espanha, Áustria e Brasil), Advogado-Geral Oscar Fiumara, quando, em recente visita ao Brasil, relatou que em seu país, ao contrário do que ocorre por aqui, os Advogados do Estado italiano possuem a mesma remuneração dos magistrados e dos membros do Ministério Público, tendo ainda um estímulo financeiro extra, decorrente dos êxitos em juízo: os honorários advocatícios.

À sociedade brasileira urge conhecer a importância da Advocacia-Geral da União à preservação do Estado Democrático de Direito. Àquela Instituição de Estado cabe zelar pela submissão do Estado às liberdades públicas, tratando sempre de submeter as políticas governamentais aos princípios e normas inscritas na Constituição Federal. Não por outra razão, com o fortalecimento da Advocacia de Estado, preservar-se-á o livre exercício dos direitos fundamentais pelos cidadãos, a par da confiabilidade do êxito das políticas públicas democraticamente escolhidas pelo voto popular, quando questionadas perante o Poder Judiciário.


REFERÊNCIAS

Texto obtido no site http://www.advocaciapublica.com.br (Link "Compromisso")

Texto obtido no site http://www.advocaciapublica.com.br (Link "Compromisso")

Texto obtido no site http://www.advocaciapublica.com.br (Link "Exposição de Motivos do AGU 2005")

Texto obtido no site http://www.advocaciapublica.com.br (Link "Exposição de Motivos do AGU 2005")

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Sobre o autor
Julio César Melo Borges

procurador federal da Advocacia-Geral da União, especializando em Direito Público pela Universidade de Brasília (UnB)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES, Julio César Melo. O martírio da Advocacia-Geral da União. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1526, 5 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10368. Acesso em: 24 nov. 2024.

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