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Apropriação indevida das joias sauditas por Jair Bolsonaro.

Uma análise jurídica à luz da estória da Cinderela e do patrimonialismo

02/07/2023 às 15:18
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Assim como as irmãs da Cinderela tentaram se apropriar de um sapato que não lhes pertencia e não servia em seus pés, Bolsonaro manteve as joias em seu poder.

A estória da Cinderela é um conto de fadas clássico que tem sido contado e recontado ao longo das gerações. O contexto central gira em torno de um sapato de cristal que a protagonista, Cinderela, perde na pressa de deixar o baile real, o que leva o príncipe a procurar a verdadeira proprietária do sapato.

Tudo começou quando o pai de Cinderela ficou viúvo, e se casou com outra mulher, que, por sua vez, também tinha duas filhas. O pai de Cinderela morre, e ela passa a viver apenas com a madrasta cruel e suas duas filhas invejosas.

Humilhada diariamente por suas algozes, que tentam incessantemente manchar a imagem de Cinderela, ora inventando fake news, ora tentando estragar o trabalho árduo já realizado pela pobre garota, ela acaba sendo aprisionada injustamente dentro de sua própria casa, recebendo o viu apelido de gata borralheira.

A inveja surgira porque as personagens perversas sabiam que se algum holofote brilhasse sobre Cinderela, ela se destacaria e seria aceita e amada por todos, eis que a bondade estava em seu coração. Isso, deveras, incomodava àquelas que nada sabiam fazer. Nada produziam. Viviam apenas para destilar veneno e meter os pés pelas mãos.

Um dia, a oportunidade bateu às portas da moça: haveria uma eleição importantíssima dentro do reino, e Cinderela poderia sagrar-se vencedora. Tratava-se da escolha da futura princesa e rainha. Poderiam disputar essa eleição, as candidatas mais lindas, mais competentes, e que serviriam para governar e fazer o reino prosperar no futuro.

A parentada de Cinderela logo busca uma forma de impedi-la de participar dessa eleição, ao vê-la pronta e deslumbrante. Rasgam a sua roupa, acusam-na de ladra e trancafiancam a pobre gata borralheira em casa.

Mas a esperança não morre, e para corrigir tamanha injustiça uma fada aparece e transforma os farrapos daquela menina em um belo vestido de princesa. Calca-lhe os pés. Cede-lhe uma linda carruagem, e lhe dá a oportunidade de participar da disputada eleição.

Uma condição é posta: que Cinderela saia do baile à meia-noite, e volte para os seus afazeres, afinal, nem tudo é só festa, e ela teria que trabalhar.

Acontece o que já era de se esperar, ao ver Cinderela, o príncipe logo a escolhe para governar com ele o reino. Distraídos e enamorados, ficam juntos e não veem as horas passar. Quando o relógio badala à meia-noite, Cinderela desce correndo as escadas do palácio, e nesse momento, ela perde um dos sapatos de cristal que estava usando. O príncipe o encontra, e fica determinado a colocá-lo novamente nos pés de sua amada. Assim, convoca uma vistoria em todo o reino para descobrir onde a moça morava.

E assim o faz: passa dias, testando os sapatos nos pés de cada moça do reino.

Ao chegar na casa de Cinderela, suas inimigas invejosas já se antecipam e a prendem no porão, pois sabiam que o sapato caberia perfeitamente no pé da garota, e isso elas não queriam permitir.

Após testar o sapato nos pés das duas ambiciosas, e ver que ele não cabia em seus pés, o príncipe fica desanimado, pois já havia tentado de todas as formas fazer aquele sapato caber no pé de uma pessoa qualificada para ocupar o posto que logo estaria vago no reino.

Nesse contexto, as irmãs da Cinderela tentam se apropriar do sapato, mesmo sabendo que não lhes pertence e que não serve em seus pés. Essa narrativa de apropriação indevida encontra paralelos com a recente polêmica envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro e as joias sauditas, que levanta questões legais relevantes, conforme se verá.

Quando estava indo embora, o príncipe ouve um barulho vindo do sótão, e logo exige conferir. Não conseguiram calar a futura princesa. Não conseguiram fazer o seu sonho morrer. Tentaram, mas não tiveram sucesso. O príncipe testa o sapato de cristal, e nota que ele se encaixa perfeitamente no pé de Cinderela, que acaba sendo eleita para o posto de princesa.

Em 2020, durante uma visita oficial à Arábia Saudita, o ex-presidente Jair Bolsonaro, também considerado cruel por parcela significativa da população brasileira recebeu de presente do príncipe herdeiro Mohammed bin Salman um conjunto de joias avaliado em mais de R$ 1,6 milhão.

No entanto, após o retorno ao Brasil, o ex-presidente não declarou as joias à Receita Federal, como exigido pela legislação brasileira para presentes recebidos por autoridades em viagens oficiais. Além disso, foi alegado que o ex-presidente não devolveu as joias ao tesouro nacional, como deveria ter feito, e sim as manteve em seu poder pessoal, querendo, a qualquer custo, que aquelas joias lhe pertencessem, mesmo sem “caber em seus pés”.

A apropriação indevida de bens, mesmo que recebidos como presente, é uma conduta passível de responsabilização jurídica. No caso em questão, as joias sauditas foram presenteadas ao ex-presidente Bolsonaro em sua qualidade de chefe de Estado brasileiro, em uma visita oficial à Arábia Saudita, não eram deles, não lhe cabiam.

Portanto, as joias são consideradas bens públicos, pertencentes ao patrimônio do Estado brasileiro, e o ex-presidente tinha o dever legal de declará-las à Receita Federal e devolvê-las ao tesouro nacional, em conformidade com a legislação vigente.

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A não declaração das joias à Receita Federal configura omissão de informações obrigatórias, o que pode caracterizar crime de sonegação fiscal, previsto no Código Tributário Nacional. Além disso, a retenção das joias em poder pessoal pelo ex-presidente Bolsonaro é considerada apropriação indébita, prevista no Código Penal Brasileiro, uma vez que ele tinha a obrigação legal de devolvê-las ao tesouro nacional.

A história da Cinderela pode ser usada como uma analogia para ilustrar a conduta de Bolsonaro em relação às joias sauditas. Assim como as irmãs da Cinderela que tentaram se apropriar de um sapato que não lhes pertencia e não servia em seus pés, Bolsonaro manteve as joias em seu poder, mesmo sabendo que não tinha o direito legal de fazê-lo, e não as declarou à Receita Federal nem as devolveu ao tesouro nacional, violando suas obrigações legais como autoridade pública e detentor de bens públicos.

A analogia com a história da Cinderela destaca a conduta inadequada de se apropriar de bens que não pertencem legalmente a uma pessoa, o que pode ter consequências legais graves.

É importante respeitar as obrigações legais e éticas que acompanham a ocupação de cargos públicos e a manipulação de bens públicos, independentemente do valor ou da origem desses bens. A falta de cumprimento dessas obrigações pode resultar em responsabilização jurídica e prejuízos à imagem e à reputação das autoridades envolvidas.

A apropriação indevida das joias pelo ex-presidente pode ser vista como um sintoma do patrimonialismo que permeia o seu ideal de governo, e que contamina a administração pública brasileira.

O patrimonialismo é um modelo de administração pública que se caracteriza pelo controle e uso privado dos recursos públicos por parte daqueles que ocupam cargos públicos.

Esse modelo é marcado pelo nepotismo, a corrupção velada, a falta de transparência e a desigualdade social. No Brasil, o patrimonialismo tem sido uma realidade histórica e antiga, que, infelizmente, ainda hoje se faz presente em muitos aspectos da vida política e administrativa do país, a exemplo de condutas como apropriação de joias como se fossem suas, mas que na verdade, foram doadas ao Estado brasileiro (ou pelo menos deveria ter sido).

A conduta de Jair Bolsonaro de se apropriar das joias sauditas presenteadas ao governo brasileiro é um exemplo emblemático dessa mentalidade patrimonialista.

Esse modelo se caracteriza pela confusão entre o patrimônio público e o patrimônio privado, o que leva os agentes públicos a tratar os recursos públicos como se fossem seus, sem qualquer preocupação com a legalidade e a ética.

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A conduta de Bolsonaro se enquadra nesse padrão de comportamento, uma vez que ele se utilizou de um bem público para fins privados, sem respeitar as obrigações legais e éticas que lhe eram impostas como agente público, representante máximo do Brasil.

Tal conduta, é uma afronta aos princípios da legalidade e da impessoalidade, que regem a administração pública brasileira, pois viola o princípio da legalidade, uma vez que o ex-presidente não tinha o direito legal de se apoderar desses bens, e também não cumpriu com a obrigação de declará-los aos órgãos competentes.

Além disso, a conduta de Bolsonaro viola o princípio da impessoalidade, que determina que a administração pública deve atuar de forma neutra e imparcial, sem favorecer interesses particulares em detrimento do interesse público.

Assim, é fundamental que as autoridades brasileiras atuem de forma transparente, responsável e ética na administração dos bens públicos, para evitar práticas patrimonialistas que minam a confiança da população na gestão pública e prejudicam o desenvolvimento do país. Não se pode admitir que uma pessoa que ocupe um cargo tão relevante como o de Presidente da República se apequene de uma forma tão sórdida e mesquinha, tentando, de todas as formas, colocar um sapato que não cabe em seus pés.

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Sobre o autor
Leonis de Oliveira Queiroz

Mestre em Regulação e Políticas Públicas (Universidade de Brasília - UNB). Pós-graduado em Direito Público. Graduado em Direito e em Segurança da Informação. Ex- Conselheiro do Conselho Penitenciário do Distrito Federal COPEN/DF. Servidor do Superior Tribunal de Justiça (ex-assessor da Presidência). Advogado licenciado. Autor de livro e diversos artigos publicados em diferentes periódicos e revistas eletrônicas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUEIROZ, Leonis Oliveira. Apropriação indevida das joias sauditas por Jair Bolsonaro.: Uma análise jurídica à luz da estória da Cinderela e do patrimonialismo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7305, 2 jul. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/103834. Acesso em: 22 dez. 2024.

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