Segundo o Dicionário Aurélio, o termo
hediondo pode constituir um ou mais dos seguintes adjetivos:
Depravado, vicioso, sórdido, imundo, repelente,
repulsivo, horrendo, sinistro, pavoroso, medonho.
No que se refere ao crime hediondo, com certeza
tal termo abrange todas essas definições.
E o legislador brasileiro, atento à etimologia
da palavra, se não foi feliz ao editar a muito criticada
Lei n° 8.072/90, o foi ao estabelecer a caracterização
da hediondez na ocorrência dos crimes de estupro e atentado
violento ao pudor.
Dispõe o Art. 1°, IV e V, da Lei n°
8.072/90, já com a modificação trazida pela
Lei n° 8.930, de 6 de setembro de 1994:
Art. 1°. São considerados hediondos
os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei n°
2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados
ou tentados:
(...)
IV - estupro (art. 213 e sua combinação
com o art. 223, caput e parágrafo único);
V - atentado violento ao pudor (art. 214 e sua
combinação com o art. 223, caput
e parágrafo único);
(...)
Vê-se, portanto, que o legislador limitou
a caracterização de crimes hediondos, nos casos
dessas duas espécies de crimes contra os costumes, em suas
respectivas tipificações básicas e também
quando combinadas estas com o art. 223, caput e parágrafo
único, do Código Penal.
Por seu turno, prescreve tal dispositivo:
Art. 223. Se da violência resulta lesão
corporal de natureza grave:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.
Parágrafo único. Se do fato resulta
morte:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 25 (vinte
e cinco) anos.
O que vale dizer que somente caracterizam-se como
hediondos o estupro e o atentado violento ao pudor quando cometidos
mediante violência real, afastados, assim, da definição
legal de hediondos, quando praticados com presunção
de violência (Art. 224 do Código Penal).
E, realmente, razão não haveria para
definir como hediondo, por exemplo, pela simples idade da vítima,
a prática de relações sexuais com menor de
14 anos, o que caracteriza mera violência indutiva. É
certo, porém, que não deixa de existir o crime de
estupro. Mas daí a admití-lo como hediondo é
um exagero. Seria ignorar a própria definição
do adjetivo hediondo, expressada linhas volvidas.
Mas, o que preocupa, é que a Jurisprudência,
especialmente a do Egrégio Tribunal de Justiça goiano,
vem estendendo indevida e ilegalmente, data maxima venia,
à condição de crime hediondo o estupro cometido
mediante violência presumida. A propósito, o Acórdão
proferido pela Colenda Primeira Câmara Criminal do Tribunal
de Justiça do Estado de Goiás, no julgamento da
apelação n° 15.346, a 31 de agosto/95 (que
deixa evidente a generalização do caráter
hediondo a todo crime de estupro), cuja ementa teve o seguinte
teor:
Estupro. Vítima menor de 14 anos. Continuidade
delitiva. Padrasto da vítima. Crime hediondo. A violência
é presumida quando a vítima conta menos de 14 anos
(art. 224, "a", do CP). A continuidade delitiva
acarreta o aumento da pena (art. 71, CP), bem como a circunstância
de o acusado ser padrasto da vítima (art. 226, II, CP).
O estupro é crime hediondo e sujeita o seu autor ao
regime integralmente fechado. Recurso conhecido e improvido.
(Grifo nosso).
Entendo, permissa venia, que a prevalecer
tal entendimento, flagrantemente desprezado estará o princípio
da reserva legal, previsto no Art. 5°, XXXIX, da Constituição
Federal, que disciplina que não há crime sem
lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação
legal. Estender à categoria de crime hediondo fato
que a lei não define como tal, determinando sérias
agravantes ao condenado (impossibilidade de anistia, graça
e indulto; fiança e liberdade provisória; recolhimento
obrigatório à prisão para fins de apelação;
regime prisional integralmente fechado etc.), ofende, e muito,
ao básico princípio legal referido.
Todavia, se no caso concreto a vítima estiver
numa das hipóteses do referido Art. 224, e ainda assim
vier a ser constrangida, mediante violência real, à
prática do ato sexual, aí sim responderá
o agente por crime de natureza hedionda, não pela violência
ficta, mas pela violência real empreendida. Responderá
o agente, pois, pelo fato previsto no Art. 213, caput,
do CP e, dada a ocorrência também de uma das hipóteses
do Art. 224, terá ele a pena majorada, como determina o
Art. 9º da Lei nº 8.072:
Art. 9º. As penas fixadas no art. 6º para
os crimes capitulados nos arts. 157, § 3º, 158, §
2º, 159, caput e seus §§ 1º, 2º
e 3º, 213, caput, e sua combinação com
o art. 223, caput e parágrafo único, 214
e sua combinação com o art. 223, caput e
parágrafo único, todos do Código Penal, são
acrescidas de metade, respeitado o limite superior de 30 (trinta)
anos de reclusão, estando a vítima em qualquer das
hipóteses referidas no art. 224 também do Código
Penal.
FRISA-SE: O crime não é hediondo
por presunção de violência. Empreendida violência
real na prática do estupro ou atentado violento ao pudor
contra vítima que se encontre em qualquer das hipóteses
do Art. 224, caracterizado estará o crime hediondo não
em decorrência da violência ficta, mas da violência
real. A circunstância de a vítima encontrar-se em
alguma das hipóteses do Art. 224 servirá, nesse
caso, não para a classificação legal do crime,
mas unicamente como causa especial de aumento de pena.
A configuração do delito de estupro
ou atentado violento ao pudor, cometido contra vítima que
se encontre em alguma das circunstâncias do Art. 224, imprescinde
dos elementos referidos nesse dispositivo exclusivamente quando
não for empregada violência real, respondendo o agente
pelo crime em decorrência da presunção de
violência. E, nessa hipótese, não caracterizado
crime hediondo, afastada estará a aplicação
das disposições da Lei nº 8.072/90.
Outra razão não haveria, inclusive,
para que o legislador expressasse a caracterização
do estupro e do atentado violento ao pudor, como crimes hediondos,
usando a partícula "e" nos incisos V e
VI do Art. 1º da Lei nº 8.072. A intenção,
de fato, era a limitação da ocorrência de
crimes hediondos a apenas algumas modalidades de estupro e atentado
violento ao pudor, modalidades essas que realmente estejam revestidas
da hediondez, atributo que somente estará presente no crime
exercido mediante violência real.
Vale ressaltar, também, que em outros dois
incisos do Art. 1° da Lei 8.072, o legislador limitou a abrangência
da lei a apenas algumas modalidades de cada espécie de
crime que declarou como hediondo:
a) No caso do homicídio, apenas é
hediondo quando praticado em atividade típica de grupo
de extermínio, ou qualificado (inciso I). Não é
hediondo, assim, o homicídio simples nem o privilegiado,
muito embora em todos os casos o resultado seja o mesmo: a morte
da vítima; e,
b) No caso do inciso II, considera-se hediondo o
latrocínio, que é somente uma das várias
formas de roubo, ficando afastados da definição
de crime hediondo essas demais modalidades.
E com o mesmo critério, portanto, o legislador
caracterizou como crimes hediondos apenas algumas formas de estupro
e atentado violento ao pudor: aqueles cometidos mediante violência
Estupro e atentado violento ao pudor cometidos mediante violência presumida: inocorrência de crime hediondo
promotor de Justiça em Goiânia (GO)
SILVA, Haroldo Caetano. Estupro e atentado violento ao pudor cometidos mediante violência presumida: inocorrência de crime hediondo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 2, n. 21, 19 nov. 1997. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1039. Acesso em: 16 nov. 2024.
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