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Estupro e atentado violento ao pudor cometidos mediante violência presumida: inocorrência de crime hediondo

19/11/1997 às 00:00
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Segundo o Dicionário Aurélio, o termo hediondo pode constituir um ou mais dos seguintes adjetivos:

Depravado, vicioso, sórdido, imundo, repelente, repulsivo, horrendo, sinistro, pavoroso, medonho.

No que se refere ao crime hediondo, com certeza tal termo abrange todas essas definições.

E o legislador brasileiro, atento à etimologia da palavra, se não foi feliz ao editar a muito criticada Lei n° 8.072/90, o foi ao estabelecer a caracterização da hediondez na ocorrência dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor.

Dispõe o Art. 1°, IV e V, da Lei n° 8.072/90, já com a modificação trazida pela Lei n° 8.930, de 6 de setembro de 1994:

Art. 1°. São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou tentados:
(...)
IV - estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único);
V - atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único);
(...)

Vê-se, portanto, que o legislador limitou a caracterização de crimes hediondos, nos casos dessas duas espécies de crimes contra os costumes, em suas respectivas tipificações básicas e também quando combinadas estas com o art. 223, caput e parágrafo único, do Código Penal.

Por seu turno, prescreve tal dispositivo:

Art. 223. Se da violência resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.

Parágrafo único. Se do fato resulta morte:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 25 (vinte e cinco) anos.


O que vale dizer que somente caracterizam-se como hediondos o estupro e o atentado violento ao pudor quando cometidos mediante violência real, afastados, assim, da definição legal de hediondos, quando praticados com presunção de violência (Art. 224 do Código Penal).

E, realmente, razão não haveria para definir como hediondo, por exemplo, pela simples idade da vítima, a prática de relações sexuais com menor de 14 anos, o que caracteriza mera violência indutiva. É certo, porém, que não deixa de existir o crime de estupro. Mas daí a admití-lo como hediondo é um exagero. Seria ignorar a própria definição do adjetivo hediondo, expressada linhas volvidas.

Mas, o que preocupa, é que a Jurisprudência, especialmente a do Egrégio Tribunal de Justiça goiano, vem estendendo indevida e ilegalmente, data maxima venia, à condição de crime hediondo o estupro cometido mediante violência presumida. A propósito, o Acórdão proferido pela Colenda Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, no julgamento da apelação n° 15.346, a 31 de agosto/95 (que deixa evidente a generalização do caráter hediondo a todo crime de estupro), cuja ementa teve o seguinte teor:

Estupro. Vítima menor de 14 anos. Continuidade delitiva. Padrasto da vítima. Crime hediondo. A violência é presumida quando a vítima conta menos de 14 anos (art. 224, "a", do CP). A continuidade delitiva acarreta o aumento da pena (art. 71, CP), bem como a circunstância de o acusado ser padrasto da vítima (art. 226, II, CP). O estupro é crime hediondo e sujeita o seu autor ao regime integralmente fechado. Recurso conhecido e improvido.
(Grifo nosso).

Entendo, permissa venia, que a prevalecer tal entendimento, flagrantemente desprezado estará o princípio da reserva legal, previsto no Art. 5°, XXXIX, da Constituição Federal, que disciplina que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Estender à categoria de crime hediondo fato que a lei não define como tal, determinando sérias agravantes ao condenado (impossibilidade de anistia, graça e indulto; fiança e liberdade provisória; recolhimento obrigatório à prisão para fins de apelação; regime prisional integralmente fechado etc.), ofende, e muito, ao básico princípio legal referido.

Todavia, se no caso concreto a vítima estiver numa das hipóteses do referido Art. 224, e ainda assim vier a ser constrangida, mediante violência real, à prática do ato sexual, aí sim responderá o agente por crime de natureza hedionda, não pela violência ficta, mas pela violência real empreendida. Responderá o agente, pois, pelo fato previsto no Art. 213, caput, do CP e, dada a ocorrência também de uma das hipóteses do Art. 224, terá ele a pena majorada, como determina o Art. 9º da Lei nº 8.072:

Art. 9º. As penas fixadas no art. 6º para os crimes capitulados nos arts. 157, § 3º, 158, § 2º, 159, caput e seus §§ 1º, 2º e 3º, 213, caput, e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único, 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único, todos do Código Penal, são acrescidas de metade, respeitado o limite superior de 30 (trinta) anos de reclusão, estando a vítima em qualquer das hipóteses referidas no art. 224 também do Código Penal.

FRISA-SE: O crime não é hediondo por presunção de violência. Empreendida violência real na prática do estupro ou atentado violento ao pudor contra vítima que se encontre em qualquer das hipóteses do Art. 224, caracterizado estará o crime hediondo não em decorrência da violência ficta, mas da violência real. A circunstância de a vítima encontrar-se em alguma das hipóteses do Art. 224 servirá, nesse caso, não para a classificação legal do crime, mas unicamente como causa especial de aumento de pena.

A configuração do delito de estupro ou atentado violento ao pudor, cometido contra vítima que se encontre em alguma das circunstâncias do Art. 224, imprescinde dos elementos referidos nesse dispositivo exclusivamente quando não for empregada violência real, respondendo o agente pelo crime em decorrência da presunção de violência. E, nessa hipótese, não caracterizado crime hediondo, afastada estará a aplicação das disposições da Lei nº 8.072/90.

Outra razão não haveria, inclusive, para que o legislador expressasse a caracterização do estupro e do atentado violento ao pudor, como crimes hediondos, usando a partícula "e" nos incisos V e VI do Art. 1º da Lei nº 8.072. A intenção, de fato, era a limitação da ocorrência de crimes hediondos a apenas algumas modalidades de estupro e atentado violento ao pudor, modalidades essas que realmente estejam revestidas da hediondez, atributo que somente estará presente no crime exercido mediante violência real.

Vale ressaltar, também, que em outros dois incisos do Art. 1° da Lei 8.072, o legislador limitou a abrangência da lei a apenas algumas modalidades de cada espécie de crime que declarou como hediondo:

a) No caso do homicídio, apenas é hediondo quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ou qualificado (inciso I). Não é hediondo, assim, o homicídio simples nem o privilegiado, muito embora em todos os casos o resultado seja o mesmo: a morte da vítima; e,

b) No caso do inciso II, considera-se hediondo o latrocínio, que é somente uma das várias formas de roubo, ficando afastados da definição de crime hediondo essas demais modalidades.

E com o mesmo critério, portanto, o legislador caracterizou como crimes hediondos apenas algumas formas de estupro e atentado violento ao pudor: aqueles cometidos mediante violência

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Sobre o autor
Haroldo Caetano da Silva

promotor de Justiça em Goiânia (GO)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Haroldo Caetano. Estupro e atentado violento ao pudor cometidos mediante violência presumida: inocorrência de crime hediondo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 2, n. 21, 19 nov. 1997. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1039. Acesso em: 18 abr. 2024.

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