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A Emenda Salomon e a retenção de fundos federais como penalidade pela restrição de propaganda e recrutamento militar pelas universidades nos EUA.

Um estudo de caso sobre controle de constitucionalidade no direito norte-americano

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3.A Réplica dos Requeridos

A petição dos requeridos (brief for the respondents) [10] segue modelo convencional norte-americano [11]. Indica-se a questão proposta à Corte, do modo como segue:

A Emenda Salomon (...) exige que as faculdades de Direito distribuam e disponibilizem panfletos e literatura encaminhados pelas forças armadas, com o objetivo de recrutamento militar. Exige que as faculdades de Direito convidem recrutadores das forças armadas para feiras e encontros organizados pelas escolas, que coordenem entrevistas de estudantes com militares, como condição para que as escolas recebam fundos federais. A Emenda Salomon provoca conflito com a política das faculdades de Direito, que se recusam a atender empregadores que promovem discriminação entre os alunos. Assim, pergunta-se, estaria correto o Tribunal Federal do 3º Circuito quando decidiu que a Emenda Salomon impõe condições inconstitucionais às faculdades de direito, ao vincular fundos federais a assistência a recrutadores militares, desrespeitando direitos consagrados na 1ª emenda à constituição norte-americana?

Indicam-se todos os requerentes, nomeadamente, o Secretário de Defesa, Donald H. Rumsfeld, a Secretária de Educação, Margareth Spellings, a Secretária do Trabalho, Elaine Chao, o Secretário da Saúde, Michael O. Leavitt, o Secretário dos Transportes, Norman Y. Mineta, o Secretário de Segurança Interna, Michael Chertoff, todos detentores de cargos de natureza ministerial. Indicam-se também todos os requeridos, a saber, FAIR (Forum for Academic and Institutional Rights), a Sociedade Americana de Professores de Direito (The Society of American Law Teachers), o grupo Coalização pela Igualdade (Coalition for Equality), bem como outros grupos, além de professores de Direito, a exemplo de Erwin Chemerinsky, como já observado.

Os requeridos mencionam que faculdades de Direito vêm a longo tempo insistido que a discriminação é moralmente incorreta e fundamentalmente incompatível com os valores das profissões jurídicas. As faculdades teriam expressado esta posição por palavras e por atos concretos. Substancialmente, as faculdades tinham como política não auxiliar empregadores que focalizem negativamente aspectos de raça e de gênero, e que não levassem em conta apenas os méritos dos candidatos. Nos termos da petição, o comprometimento das faculdades de Direito contra qualquer forma de discriminação sexual é absoluto.

Lembra-se que quando as faculdades de Direito passaram a criar obstáculos para propaganda militar nos campi norte-americanos houve reação do Congresso dos Estados Unidos por meio da aprovação da Emenda Salomon. Esta lei puniria toda uma universidade se apenas uma das faculdades que a compõe obstruísse a entrada de propagandistas da carreira militar. E não se trata de simples acesso aos alunos. As faculdades deveriam também distribuir boletins, brochuras, organizar encontros, entrevistas, fixar cartazes, sob pena de não receberem verbas e financiamentos federais, não podendo também concorrer a ajuda federal para bolsas de estudo e de pesquisa, por exemplo. Inúmeras faculdades estavam em via de perder milhões de dólares de origem governamental, que já estavam comprometidos com miríade de projetos distintos, que variavam de pesquisas sobre o câncer a investigações sobre aceleradores de partículas, entre tantos outras.

Critica-se a intervenção do legislador. Indevida seria a concepção de lei que obrigava adesão a idéias militares, a empregador que potencialmente discriminava, na medida em que homossexualismo configura tema tabu entre os militares norte-americanos, sobremodo por conta da premissa don´t ask and I don´t tell, isto é, não pergunte que não falo. No entender dos advogados dos requeridos estava clara a política discriminatória implementada pelas forças armadas que mediante proibição informal de não se perguntar e não se afirmar, excluiria homossexuais das corporações.

A linha de argumentação dos requeridos insiste na tese de que as faculdades de Direito se recusam a apoiar ativamente discriminação contra seus próprios alunos, o que seriam obrigados a fazer enquanto constrangidas a apoiar militares nos campi. As faculdades de Direito estariam aplicando políticas contrárias à discriminação em face de todos os empregadores interessados em seus alunos. A Emenda Salomon efetivamente estaria compelindo as faculdades a disseminarem mensagens de interesse dos militares.

Toca-se no fato de que as faculdades estariam praticando políticas em face das quais têm historicamente lutado. Forçadas a abandonar métodos de incentivo a políticas contrárias à discriminação, porque obrigadas a tolerar presença de empregadores militares que praticavam discriminação, as faculdades estariam patrocinando fóruns que de outra forma não patrocinariam, estavam promovendo palestras que de outro modo não seriam obrigadas a promover, e estariam afixando cartazes que em outras circunstâncias jamais afixariam.

Fixou-se o ponto de embate na medida em que se desenha que a mensagem pregada pelos militares quando recrutam é antagônica da mensagem das faculdades de Direito que se recusam a apoiar empregadores que iriam discriminar os estudantes para os quais se dirigem. A Emenda Salomon não levaria em conta que as faculdades de Direito opunham-se indistintamente a quaisquer empregadores que manifestassem políticas discriminatórias. A oposição para com a propaganda de recrutamento militar, neste sentido, não seria exceção, mas regra, dado que se tinha por notória a política das forças armadas no sentido de restringir ações não discriminatórias para com o homossexualismo.

No entender das faculdades de Direito, a Emenda Salomon obrigava a disseminação de mensagens alusivas ao recrutamento militar. O governo federal enquanto empregador (porque o alistamento militar conduziria a atividade remunerada) estaria gozando de isenção que nenhum outro empregador poderia usufruir, no sentido de ter acesso aos campi, mesmo como portador de mensagem que derivava de grupo que estaria praticando discriminação. As penalidades impostas às escolas que não franqueassem o acesso aos recrutadores militares são muito severas. Há vedação de linhas de apoio financeiro e de financiamento (grants and contracts) do Departamento de Defesa, e de outros departamentos [12], a exemplo de recursos oriundos de setores de Saúde, Educação, Trabalho, Transporte e Segurança Interna (Homeland Security). Por exemplo, as Universidades de Yale e de Harvard deixariam de ter acesso a cerca de 300 milhões de dólares, cada uma delas, bem como à Universidade de Nova Iorque não seriam repassados por volta de 130 milhões de dólares.

Exemplifica-se a situação com circunstâncias aflitivas. Por exemplo, a faculdade de Direito da Universidade do Sul da Califórnia havia concordado com a visita de militares em suas instalações. Entrevistas foram marcadas com alunos. Divulgou-se o evento em boletim semanal que a faculdade mantém, e que se presta para divulgar oportunidades de emprego. Autorizou-se a distribuição de literatura militar, na forma de panfletos e brochuras. No entanto, representantes da força aérea norte americana se queixaram, porque a faculdade não havia provido instalações mais adequadas para reuniões, fora do campus, como teria feita com outros empregadores, violando cláusula de empregador mais favorecido. Milhões de dólares estavam em jogo por conta de discussões que começavam a indicar excessiva minudência.

Resumidamente, o argumento que substancializava a tese das faculdades de Direito consiste nas seguintes premissas: 1) a Emenda Salomon infringiria o livre exercício de liberdade de expressão por parte das faculdades de Direito; 2) a Emenda Salomon não respeitaria o direito das escolas se verem livres de determinações governamentais quanto a políticas a serem desenvolvidas; 3) a Emenda Salomon estaria determinando que as faculdades de Direito disseminassem, facilitassem e albergassem mensagens de recrutadores militares; 4) a Emenda Salomon suprimiria o direito de protesto das escolas, especialmente no que toca à possibilidade de limitar acesso de entidades que propagassem políticas discriminatórias; 5) a Emenda Salomon não respeitaria o direito das faculdades não se associarem a empregadores com os quais não concordavam, e cujas causas consideravam injustas.

A peça do grupo FAIR invocou, especificamente, aspectos de liberdade e expressão, consagrados na primeira emenda da constituição norte-americana.


4. A Tréplica dos Requerentes:

Em resposta à peça dos requeridos seguiu petição dos requerentes, assinada por Paul D. Clement, procurador-geral do governo norte-americano. Há parágrafo que encima o texto, e que explicita que:

Os requeridos argumentam que a Emenda Salomon viola direito que têm no sentido de não se obrigarem a manifestarem idéias com as quais não comungam, de protestarem contra políticas governamentais e de se associarem com propósitos de se expressarem. Tais argumentos são desprovidos de mérito. E mais fundamentalmente, os argumentos dos requeridos não levam em conta o fato de que a Emenda Salomon não é uma exigência relativa a aceitação de uma política, mas sim condição que revela senso comum no sentido de aplicação dos fundos por conta dos doadores, que podem decidir para onde dirigir seus recursos. O governo norte-americano oferece fundos federais de montantes consideráveis para financiar a educação, e em contrapartida deseja a mesma oportunidade que as escolas oferecem para demais empregadores em relação ao recrutamento de estudantes.

O governo norte-americano principia insistindo que a Emenda Salomon não tem como resultado obrigar que as escolas comunguem com idéias que não concordam. Não haveria violação a direitos de liberdade de expressão consagrados na 1ª emenda à constituição norte-americana. Neste sentido, o debate ganha centro constitucional, e o que se tem, concretamente, é discussão em torno de controle de constitucionalidade da Emenda Salomon, pelo método difuso, que é o modelo abraçado pelo sistema norte-americana, em contrapartida ao modelo concentrado da tradição alemã, que remonta a Hans Kelsen [13].

A peça dos requerentes aponta para o fato de que a Emenda Salomon não limitaria o direito das instituições de ensino protestarem contra as ações governamentais, a exemplo de políticas conduzidas pelas forças armadas, contra as quais as faculdades se insurgiam. Na compreensão do governo norte-americano não se violavam direitos de associação, isto é, não se compelia a instituição de ensino de aderir ao conteúdo das propagandas dos recrutadores militares. O grupo FAIR insistia que havia precedente na Suprema Corte a seu favor, a exemplo da decisão proferida no caso Dale, quando se decretou a inconstitucionalidade de uma lei de Nova Jersey que obrigava que escoteiros aceitassem líderes que fossem abertamente homossexuais.

O caso Boy Scouts of América v. Dale, de 2000, é paradigma de tema recente, referente ao controle de constitucionalidade de políticas de organizações privadas, e que também indubitavelmente toca em preconceito e em liberdade de opção sexual. James Dale entrou para o grupo de escoteiros em 1978, com a idade de oito anos. Primeiramente como lobinho, tornou-se escoteiro em 1981, permanecendo no grupo até os 18 anos. Dale era escoteiro exemplar. Em 1988 Dale fez jus à honraria tornando-se Eagle Scout, título distintivo. Em 1989 requereu sua permanência no grupo, como escoteiro adulto. Foi aprovado e tornou-se assistente de líder na Tropa 73. Nesse mesmo ano Dale começou a freqüentar a faculdade. Em seguida tornou-se co-presidente da aliança de gays e lésbicas, da faculdade na qual estudava. Em 1990 Dale participou de um seminário, no qual palestrou sobre necessidades psicológicas e físicas de adolescentes homossexuais.

Dale também deu longa entrevista para jornal que cobria o seminário. Advogou que adolescentes gays e lésbicas precisavam de modelos homossexuais. A foto de Dale foi publicada junto com a entrevista. No fim daquele mês ele recebeu uma carta do grupo de escoteiros dando notícia de que sua participação no grupo estava encerrada e que sua inscrição fora cancelada. Dale escreveu para o líder do grupo pedindo explicações para o desligamento. O chefe respondeu dizendo que o regulamento dos escoteiros especificamente proibia a participação de homossexuais. Dale imediatamente ajuizou ação, alegando que o grupo de escoteiros violava a lei relativa ao uso de instalações públicas do estado de Nova Jersey, bem como teria desrespeitado os princípios do common law.

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A lei de uso de instalações públicas de Nova Jersey proíbe qualquer forma de discriminação em ambientes de uso público, como os locais nos quais os escoteiros se reúnem. O common law também veda qualquer modalidade de discriminação. A questão colocada em juízo consistia em se indagar se um determinado grupo pode excluir pessoa não desejada no caso de que adesão forçada afetaria a liberdade do grupo no que toca a posições tomadas, em questões públicas e privadas. A questão chegou à Suprema Corte, que decidiu que um grupo tem direito constitucional de excluir pessoa indesejada se a presença dessa pessoa ameaça a liberdade do grupo na expressão de idéias públicas e privadas. Dale colocava questão de territorialidade, o grupo de escoteiros ponderava a partir de questão ideológica. Não se tratava de discriminar a homossexualidade de Dale, tratava-se de se defender princípios do grupo de escoteiros.

Contrariou-se decisão anterior da Suprema Corte de Nova Jersey. A decisão da Suprema Corte em Washington teve William Rehnquist como relator. Os juízes Stevens e Souter foram votos vencidos. Para Stevens a lei não impõe ao grupo de escoteiros a obrigação de divulgar mensagem, portanto não havia desconsideração para com direitos constitucionais. Para Souter nenhum grupo pode reivindicar direitos de escolhas de associados sem identificar especialmente quais mensagens não pretende pregar.

A decisão do caso Dale, no entender dos advogados do governo norte-americano, não suscitava nenhum paralelo com a questão de vincularem fundos federais à possibilidade de recrutamento por parte do exército nas instalações das faculdades de Direito nos Estados Unidos. É que a Emenda Salomon não dizia respeito a estruturas organizacionais internas, que foram protegidas no caso Dale, a exemplo do grupo de escoteiros. Os efeitos da Emenda Salomon seriam estruturalmente externos, especialmente porque os empregos oferecidos (no exército) eram trabalhos externos.

Ainda para os advogados do governo norte-americano a Emenda Salomon não exigia que as escolas compartilhassem de práticas discriminatórias. Os critérios de distribuição de recursos que a Emenda Salomon especifica, informa o governo norte-americano, seguiam modelo federal, chamado de Spending Clause, centrados em requisitos razoáveis e desprovidos de qualquer ambigüidade. Por fim, não haveria nenhum prejuízo a terceiros, no entendimento do governo norte-americano, porque eventuais vedações de repasses de verbas federais envolveriam apenas o governo e as faculdades.

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Sobre o autor
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Professor universitário em Brasília (DF). Pós-doutor pela Universidade de Boston. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Procurador da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GODOY, Arnaldo Sampaio Moraes. A Emenda Salomon e a retenção de fundos federais como penalidade pela restrição de propaganda e recrutamento militar pelas universidades nos EUA.: Um estudo de caso sobre controle de constitucionalidade no direito norte-americano. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1532, 11 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10392. Acesso em: 19 abr. 2024.

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