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Direito comparado. A Suprema Corte norte-americana e o julgamento do uso de huasca pelo Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (UDV).

Colisão de princípios: liberdade religiosa v. repressão a substâncias alucinógenas. Um estudo de caso

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4.A petição da UDV

Protocolada por escritório de advocacia com sede em Albuquerque, no estado do Novo México, a petição da UDV apresenta como questão

Se uma corte distrital abusou de seu poder discricionário ao outorgar liminar com base no RFRA, Religious Freedom Restoration Act de 1993 (...) ao entender que os requerentes não lograram demonstrar interesse legítimo ao implementar a lei de substâncias controladas em face do uso de hoasca, por parte dos requeridos.

Percebe-se inicialmente aspectos de estratégia judicial relevantes para a compreensão do problema, em seus aspectos processuais. Isto é, o governo norte-americano questiona se o RFRA limita a atuação das autoridades governamentais, em relação ao combate do comércio de substâncias que contém DMT, discriminado em lista de lei federal, e sujeito a apreensão e superveniente medida criminal. Os requeridos centram a questão na discricionariedade do juízo a quo, que entendeu que os requerentes não adimpliram condição essencial para efeitos de afastamento de norma que autoriza liberdade religiosa. Rigoroso índice antecede a petição (brief for respondents), também condimentada por exuberante jurisprudência, em favor da liberdade de religião, sem os obstáculos previstos na lei de controle de substâncias.

Inicia-se afirmando que o Centro Espírita Beneficente da União do Vegetal (UDV) trata-se de religião de feição cristã originária do Brasil, estabelecida e bem estruturada. Afirma-se que o uso do chá sacramental, o hoasca, é central em cerimônias de comunhão. Lembra-se que o uso do hoasca em ocasiões não religiosas é ato que qualifica sacrilégio. Ainda em âmbito teológico informou-se que o uso do hoasca nas cerimônias da UDV tem valor sacramental. Lembra-se que o número de adeptos nos Estados Unidos é de pequena expressão, que não passam de 130 pessoas, e que isto se dá porque a UDV não procura alcançar prosélitos.

Indicou-se que em 17 anos de existência da UDV o uso do hoasca nas cerimônias do grupo não teria causado nenhum problema de saúde, bem como não havia notícias de uso indiscriminado da substância, por parte dos membros da sociedade religiosa. Há notícias de pesquisa interdisciplinar que teria concluído que o uso do hoasca no contexto ritual da UDV matizara elemento catalisador na evolução psicológica e moral dos membros da sociedade, resultando em mudanças positivas nas vidas dos adeptos do grupo.

Todos os passos do processo em primeira instância foram relembrados, em pormenor, especialmente no que toca ao conjunto de provas levadas a juízo. Estatísticas referentes ao uso do hoasca, no sentir dos requeridos, comprovaria a imprestabilidade em proibir o uso da substância, em âmbito de ritual sacramental, bem entendido. Os requeridos apontaram o desacerto das afirmações dos requerentes, em relação aos supostos riscos que o uso do hoasca poderia representar à saúde dos membros da UDV. Todos os itens relativos a problemas de saúde, a exemplo de questões cardíacas, foram impugnados pelos requeridos, desmistificando assertiva dos requerentes, que acenaram com relação preocupante entre o uso do hoasca e as possibilidades de suicídio. Questionou-se também a impropriedade e a inadequação da afirmação dos requerentes, que apontaram para perigos de interação entre o hoasca e outras substâncias, dado que comprovadamente tal risco seria insignificante. As argumentações do governo norte-americano seriam alarmistas, e não havia comprovação de tráfico internacional da substância questionada. Em resumo, cotejado com os números do comércio de drogas nos Estados Unidos, o hoasca seria absolutamente insignificante.

Apegou-se na admissão, por parte do governo norte-americano, de que o uso do hoasca, por parte dos membros da UDV, identificaria prática religiosa marcada pela sinceridade. Quanto à convenção da Organização das Nações Unidas, os requeridos juntaram documentação dando conta de que o hoasca não se enquadraria entre as substâncias perseguidas pelo pacto como, aliás, havia se reconhecido em primeira instância, em desfavor da tese do governo norte-americano. De tal modo, argumentou-se que as instâncias originárias teriam aplicado corretamente o RFRA, dado que o governo norte-americano não havia conseguido comprovar legítimo interesse na limitação da liberdade de religião, ameaçada com a vedação de utilização de substância de importância sacramental, a exemplo do peiote, de uso entre os nativos norte-americanos.

No entender dos requeridos, sufragado pelas cortes inferiores, havia por parte do governo norte-americano inadequado tratamento ao RFRA, instrumento legal que protegia a liberdade de prática religiosa. Ao que consta, as autoridades norte-americanas aplicavam erroneamente a lei de substâncias controladas, em desfavor de norma fundamental de proteção a liberdade de religião. E porque o uso do hoasca não ameaçaria a saúde dos membros da UDV não havia razão para se invocar motivos de segurança e de saúde públicas. Ainda, comprovadamente, não havia indicações que comprovassem desvio da substância para uso ilícito, fora do contexto religioso. À Suprema Corte também se vedaria apreciação de matéria fática, já apreciada em primeira instância, em favor dos requeridos.

Excerto de robusto valor argumentativo insiste na inaplicabilidade da convenção de 1971 ao uso do hoasca, porque não há menção a bebidas decorrentes de infusão, a exemplo do chá sacramental cuja licitude se discutia. Aspectos ligados ao preparo da bebida são especificados, e com base em comentários oficiais da convenção, por parte de autoridades norte-americanas e européias (especialmente da Holanda) procurou se demonstrar que não há indicação direta aplicável à proibição do hoasca. Avançou-se para tema de analítica jurídica e invocou-se que no direito norte-americano as regras da convenção de 1971 devem ser interpretadas também a partir da RFRA, que fundamenta os cânones da liberdade religiosa.

Suposta aplicação uniforme do conteúdo normativo da lei de substâncias controladas não seria justificação de interesse relevante, como exigido pelo RFRA. E porque as cortes de primeira instância teriam adequadamente aplicado a legislação, requereu-se que a Suprema Corte mantivesse as decisões contestadas, retornando-se os expedientes para os juízos de origem, para julgamento do mérito.


5.O Acórdão da Suprema Corte

Redigido pelo Juiz Presidente daquela casa, John G. Roberts, o acórdão historia os fatos, com estações nas decisões hostilizadas, e com especial atenção em aspectos substanciais, que evidenciam colisão de princípios. Os fatos anunciam oposição entre percepção de liberdade religiosa e valor contemporâneo superlativo, referente ao combate ao tráfico de entorpecentes. Tenha-se também presente na reflexão que a criminologia que hoje triunfa nos Estados Unidos, aliada ao ideário do Partido Republicano, propõe luta sem trégua ao uso de drogas, consubstanciada no movimento Law and Order.

Por força de delineamento lógico, a decisão do juiz Roberts apreciou todos os argumentos dos requerentes. Primeiramente, evidencia-se que o governo norte-americano não teria conseguido livrar-se do ônus imposto pela legislação de liberdade religiosa, no sentido de comprovar interesse legítimo na limitação do alcance do RFRA. Analisou-se em seguida a lei de substâncias controladas e com base em autoridade jurisprudencial e estatutária entendeu-se que exceções há ao disciplinado na tabela número 1. Entre elas, cita-se textualmente a não vedação do uso do peiote, por parte das tribos indígenas. E assim desmontou-se o argumento dos requerentes, no sentido de que a lei de substâncias controladas exigeria aplicação uniforme.

Apreciou-se o vínculo do hoasca com a convenção da ONU, de 1971, apontando-se que mesmo que a substância fosse explicitamente alcançada pelo pacto não deteria o governo norte-americano interesse concreto no banimento do chá sacramental, usado em cerimônias religiosas. Manteve-se o conteúdo das decisões originárias. O procedimento apenas retornaria para os juízes de origem, para julgamento do mérito. Conclui-se que os juízos das instâncias originais não erraram ao determinar que o governo norte-americano não havia logrado demonstrar que detinha interesse legítimo em obstaculizar o uso sacramental do hoasca por parte dos membros da UDV.

O debate se desdobrou em torno de questão de fundo processual, dado que provimentos cautelares foram desafiados na Suprema Corte. O conteúdo da decisão não pode ser tomado como absolutamente definitivo, embora anuncie com firmeza posição jurisprudencial a ser seguida. Tem-se conflito entre liberdade religiosa e combate ao comércio de substâncias classificadas como de alto poder ofensivo. Ainda, e paralelamente, cogitou-se de aplicação de tratado internacional, em cotejo com lei interna, de proteção a direito fundamental de exercício religioso, com o calibre exegético de luta contra a proliferação de substâncias entorpecentes.

Porém, sugiro outro aspecto hermenêutico de importância que transcende ao contexto no qual o debate se colocou. Afirmo que a decisão da Suprema Corte atende tendência jurisprudencial do direito norte-americano, que prestigia direitos individuais, em seu sentido superlativo, o que pode denunciar adesão a concepção neoliberal que caracteriza a proteção pretoriana dos magistrados indicados pela Partido Republicano.

Neste sentido o insumo conceitual de constitucionalistas norte-americanos. Cass Sunstein vem premonindo minimalismo judicial (SUNSTEIN, 2001) que marcaria composição da Suprema Corte que justifica título de livro instigante, Radicais de Toga (SUNSTEIN, 2005). Os magistrados da Suprema Corte dos Estados Unidos, na tese de Sunstein, buscariam uma Constituição no Exílio, epíteto dado ao contexto normativo norte-americano a partir do triunfo do Partido Democrático ao longo da experiência do New Deal, que marcou as gestões de Franklyn Delano Roosevelt. A volta ao liberalismo que antecede o ativismo judicial que marcou posição durante Cortes Constitucionais comprometidas com ideário de maior apelo popular seria a característica do direito constitucional norte-americano que resulta do ideário Bush.

Também é este o entorno conceitual das análises de Mark Tushnet, que em Uma Corte Dividida (TUSHNET, 2005) aponta para tendências jurisprudenciais de feitio conservador, que marcam a orientação de juízes comprometidos com a agenda republicana, a exemplo de Clarence Thomas e de Antonin Scalia.

De tal modo, avaliar-se a questão da colisão entre liberdade de religião e combate ao tráfico de entorpecentes pode ser atitude conceitual prenhe de ingenuidade, especialmente se balizada em conteúdo analítico, a propósito de mecanismos orientadores de opção hermenêutica, na existência de antinomia principiológica, tão ao gosto do constitucionalismo conceitualista brasileiro.

A propósito do Brasil, emerge leitura de direito comparado, em desfavor da tese do governo norte-americano. Refiro-me à Apelação Criminal nº 3037, julgada pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região, apreciada pela 1ª Turma, relatada pelo Desembargador Federal Carreira Alvim, julgada em 1º de junho de 2004, relativa a restituição de material aprendido, consistente no Chá Santo Daime. Decidiu-se pela conduta atípica, por causa de decisão do Conselho Nacional de Entorpecentes para o qual (...) as substâncias que integram o "Chá Santo Daime" devem permanecer excluídas da lista da DIMED ou do órgão que tenha responsabilidade de cumprir o que determina o art. 36, da Lei nº 6368, de 1976. Reformou-se decisão de 1º grau no sentido de se determinar a restituição de material apreendido aos apelantes, no caso o chá que também suscitou discussão nos Estados Unidos. O acórdão foi publicado em 14 de junho de 2004.

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O aludido acórdão, como informado, baseou-se em deliberação do Conselho Federal de Entorpecentes, que na 5ª Reunião Ordinária de 2 de junho de 1992 definiu verbatim que (...) a ayahuasca, cujos principais nomes brasileiros são "Santo Daime" e "Vegetal", e as espécies vegetais que a integram, a "Banisteriopsis Caapi", vulgarmente chamada cipó, jagube ou mariri, e a "Psychotria Caapi", conhecida como folha, rainha ou chacrona, devem permanecer excluídos das listas da DIMED (...). Não obstante, reportou-se também à Resolução RDC nº 25, de 15 de fevereiro de 2001, da ANVISA, Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que considera como psicotrópica o DMT (dimetiltriptamina).

Assim, embora o DMT seja considerado psicotrópico pela ANVISA, a Resolução do Conselho Federal de Entorpecentes excluiu o hoasca da lista da DIMED, isto é, retirou do chá sacramental a natureza normativa de substância entorpecente. De tal modo, dado que o problema evidencia norma penal em branco, e dado que a regra colmatadora da definição exigida deixou de alcançar o hoasca como substância entorpecente, não há como se aplicar aos fatos a lei nº 6368, de 1976, como adequadamente informaram as autoridades brasileiras, no caso de que aqui se cuida e que se desdobrou nos Estados Unidos. O problema aponta também a tema de reserva legal absoluta. Não há previsão normativa no direito brasileiro que proíba, ao que consta, a exportação do hoasca.

A legislação norte-americana apresenta a mesma antinomia evidenciada pela legislação brasileira. Inclui-se o DMT como substância controlada e proibida ao consumo, excluindo-se, no entanto, o hoasca.

A decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos, em favor do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal, e em desfavor das autoridades norte-americanas que combatem o comércio de substâncias entorpecentes, indica provavelmente opção individualista que pode até se opor a relevante opção nacional, em perene litígio com a questão de substâncias entorpecentes, que é marco do ideário conservador que presentemente galvaniza o pensamento norte-americano.


Referências Bibliográficas

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GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito Constitucional Comparado. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2006.

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TUSHNET, Mark. A Court Divided. New York: Norton, 2005.

WEBER, Max. The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism. London: Routledge, 1997.


Notas

01 Trata-se de peça recursal encaminhada a Suprema Corte Norte-Americana com objetivo de se alterar conteúdo decisório de instância inferior. A apreciação é discricionária. Vige o rule of four, a regra dos quatro, isto é, são necessários votos preliminares de quatro juízes para que a matéria seja apreciada pela Suprema Corte dos Estados Unidos.

02 O Tribunal do 10º Circuito tem sede em Denver, Colorado, e tem jurisdição sobre os estados do Colorado, Kansas, Novo México, Oklahoma, Utah e Wyoming.

03 Conferir www.udv.org.br.

04 A saber, Karen P. Tandy, do DEA-Drug Enforcement Administration, John Snow, Secretário do Tesouro, David Iglesias, Procurador Federal no estado do Novo México, Hugo Martinez, representante da Agência da Imigração no Estado do Novo México.

05 Brief for Petitioners, p. 1, tradução livre do autor.

06 O princípio da razoabilidade é explorado no direito brasileiro por Luís Roberto Barroso, em Interpretação e Aplicação da Constituição, p. 218 e ss. É também de uso recorrente no Supremo Tribunal Federal, a exemplo do conteúdo dos julgados das ADINs 1407-2/DF, 1564-8/RJ, 1805-2/DF, 2317-9/DF, 2422-1/DF, 2551-1/MG, 2667-4/DF, 3124-4/MG, 3299-2/DF, 3395-6/DF, 3540 MC/DF, bem no HC 80.949/RJ e no HC 82.354/PR. Colisão de direitos, que é tema que está no centro do caso que se estuda, é objeto das considerações de Gilmar Ferreira Mendes, Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade, p. 95 e ss.

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Sobre o autor
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Professor universitário em Brasília (DF). Pós-doutor pela Universidade de Boston. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Procurador da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GODOY, Arnaldo Sampaio Moraes. Direito comparado. A Suprema Corte norte-americana e o julgamento do uso de huasca pelo Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (UDV).: Colisão de princípios: liberdade religiosa v. repressão a substâncias alucinógenas. Um estudo de caso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1537, 16 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10393. Acesso em: 22 nov. 2024.

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