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Direito comparado. A Suprema Corte norte-americana e o julgamento do uso de huasca pelo Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (UDV).

Colisão de princípios: liberdade religiosa v. repressão a substâncias alucinógenas. Um estudo de caso

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Sumário:1.Introdução.2.O Caso Gonzales v. UDV.2.1) Aspectos Materiais.2.2) Aspectos Processuais.3) A Petição do Governo Norte-Americano.4) A Petição da UDV.5) O Acórdão da Suprema Corte. Referências Bibliográficas

Religious motivation does not change the science.

Excerto da petição do governo norte-americano para a Suprema Corte, no caso Gonzales v. UDV.


1.Introdução

No dia 21 de fevereiro de 2006 a Suprema Corte Norte-Americana julgou writ of certiorari [01] protocolado pelo governo norte-americano em face de decisão do Tribunal de Apelação do 10º Circuito [02], em caso rumoroso que suscitou oposição entre liberdade religiosa e repressão a substâncias alucinógenas. O recorrente foi representado por Alberto Gonzales, Procurador-Geral do Governo dos Estados Unidos da América do Norte. O recorrido foi o Centro Espírita Beneficente União do Vegetal, sociedade religiosa sem fins lucrativos, e que possui sede geral em Brasília. O problema afligiu cerca de 130 adeptos desta sociedade religiosa, que vivem nos Estados Unidos da América do Norte. O presente estudo propõe-se, tão-somente, a investigar o conteúdo de decisão da Suprema Corte Norte-Americana. É trabalho de hermenêutica e de direito comparado, e não de antropologia jurídica. Não há por parte do autor nenhuma intenção no sentido de defender o uso de quaisquer substâncias proibidas por lei.

A decisão foi prolatada pelo Presidente da Suprema Corte (Chief Justice) John G. Roberts, nomeado por indicação do Presidente George W. Bush, e que tomou posse em 29 de setembro de 2005. O acórdão revelou unanimidade, acompanhado assim pelos juízes John Paul Stevens, Antonin Scalia, Anthony Kennedy, David Souter, Clarence Thomas, Ruth Bader Ginsburg e Stephen Breyer. Samuel Anthony Alito Jr., que tomou posse em 31 de janeiro de 2006, não participou da discussão.

O Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (doravante UDV) é entidade religiosa com origens no Brasil, que tem por objetivo contribuir para o desenvolvimento humano, com o aprimoramento de suas qualidades intelectuais e suas virtudes morais e espirituais, sem distinção de cor, credo ou nacionalidade. De acordo com informações disponibilizadas no website da sociedade, que tem como símbolo da fraternidade humana a luz, a paz e o amor, não se faz propaganda em busca de adeptos, embora o grupo participe de importantes causas coletivas, como saúde e meio-ambiente [03]. O acórdão que se analisará indica tratar-se de seita religiosa com origens na Floresta Amazônica, que pratica comunhão mediante uso de chá sacramental, feito a partir de alucinógeno regulado por lei federal norte-americana.

O governo daquele país pretendia proibir que os adeptos do grupo UDV utilizassem a bebida. Invocou basicamente que ao chá seria produzido a partir de substância rigorosamente proibida pela legislação norte-americana, embora, bem entendido, tenha-se admitido a sinceridade religiosa por parte dos adeptos do grupo. O grupo religioso pretendeu obstruir a atuação das autoridades norte-americanas mediante rito processual que se assemelha ao modelo cautelar da legislação processual brasileira.

Como pano de fundo, o Religious Freedom Restoration Act, doravante RFRA, de 1993, que veda que o governo norte-americano limite o exercício pessoal de religião, a menos que comprove legítimo interesse na proibição. A UDV obteve provimento cautelar, confirmado por tribunal superior, isto é, pelo Tribunal de Apelação do 10º Circuito. O governo norte-americano levou a questão à Suprema Corte, insistindo que deveria se aplicar uniformemente uma lei de repressão ao uso de drogas, The Controlled Substances Act, e que não havia exceção prevista para a invocada prática religiosa sincera. A Suprema Corte decidiu que o governo norte-americano não se desincumbiu do ônus da prova (burden of proof) que a legislação lhe impõe, no sentido de comprovar interesse relevante em proibir a utilização da substância em questão. Manteve-se a decisão das instâncias inferiores. A UDV ganhou a causa. O estudo do caso é o objeto do presente texto. As traduções que seguem são livres e de inteira responsabilidade do autor.


2.O Caso Gonzalez v. UDV

2.1) Aspectos Materiais

A questão é relevante para a cultura jurídica norte-americana, dado que envolve limites para a liberdade de religião. A teoria social imputa à cultura dos Estados Unidos forte conteúdo religioso, vinculando-se sentimento teológico e progresso material, a partir de concepções weberianas relativas ao calvinismo matizado pela salvação pela predestinação (cf. WEBER, 1992, p. 98). Tem-se historicamente o sentimento religioso como instrumento de atuação política (cf. TOCQUEVILLE, 2000, p. 233). O deslocamento europeu para a América do Norte radica em perseguição religiosa, calcada na miragem da City upon the Hill, espírito que fomentou a presença de puritanos na baía de Massachusetts (cf. BOORSTIN, s.d., p. 20). O primeiro grande caso do direito norte-americano refere-se a problema religioso. Trata-se do julgamento de Anne Hutchinson, parteira e curandeira acusada de desenvolver interpretação idiossincrática da doutrina puritana. Julgada entre 1637 e 1638, Anne Hutchinson foi condenada com o banimento e com a excomunhão da igreja de Boston. John Wtinthrop fora o magistrado que condenou a ré (cf. KNAPPMAN, ed., 1994, p. 1).Discussões jurídicas de fundo religioso são recorrentes na história judiciária dos Estados Unidos. Em 1989 julgou-se o pastor Jim Bakker, que apresentava na televisão o programa PTL-Praise the Lord, que contava com expressiva audiência, e que foi acusado de iludir seus seguidores. Bakker foi condenado a 45 anos de prisão, bem como a pagar uma multa de cerca de meio milhão de dólares. O vínculo de temas teológicos com direitos fundamentais é também muito comum. Liberdade religiosa é assunto discutido no caso Lyng v. Northwest Cemetery Protective Association, de 1987. No norte da Califórnia, nas montanhas Siskiyou, próximo ao Pacífico, junto à fronteira do Oregon, na Floresta Nacional dos Seis Rios, os índios yurok, karok, tolowa e hoopa praticavam cerimônia religiosa de purificação. Dançavam os passos dos woges, espíritos que habitavam a terra, antes da vinda dos homens. O serviço florestal norte-americano planejava construir uma estrada para o escoamento de madeira que cortaria a reserva, passando pelos lugares dedicados aos cultos sagrados. 72 caminhões e 90 automóveis passariam diariamente pela estrada. Com base na 1ª emenda, que garante a liberdade de religião, os índios ajuizaram ação na Corte de São Francisco. A construção da estrada constituía, para os índios, algo semelhante a uma via que cortasse o Vaticano, na ótica de religião dominante. A construção da rodovia destruía a solidão, a paz e a privacidade necessárias para que os índios expressassem livremente sua religião. Precedentes havia com adventistas, testemunhas de Jeová e com os Amish.

Em 1983 a Corte de São Francisco julgou procedente o pedido da associação indígena. O governo apelou. Enquanto isso, uma lei federal declarou a área reserva florestal, porém garantiu e autorizou a construção da estrada, cumprindo compromisso político assumido para aprovar a norma. Em julho de 1986 a Suprema Corte da Califórnia confirmou a decisão de primeiro grau. Os autos subiram à Suprema Corte em Washington. Em novembro em 1987 a Suprema Corte reverteu as decisões originais, por diferença de apenas 1 voto (5x4). Entendeu-se que o poder executivo não conseguiria operar se tivesse que atender individualmente todos os desejos dos cidadãos. Os índios não estavam sendo coagidos a agir contrariamente a suas crenças, o que seria o objetivo da proteção da 1ª. Emenda. Em outubro de 1990 uma outra lei federal proibiu a construção do que faltava da estrada, sob o fundamento de proteção ambiental, e não de liberdade religiosa (cf. ALDERMAN e KENNEDY, 1992, p.55).

As discussões radicam no entendimento da proteção outorgada pela 1ª emenda à constituição norte-americana. Em 1990, no caso Empoyment Div. v. Smith, a Suprema Corte decidiu que a cláusula do livre exercício religioso, como consagrada na 1ª emenda, não proibiria o governo norte-americano de limitar práticas religiosas, por meio de leis de aplicação geral, conforme observado pelo juiz John J. Roberts no acórdão prolatado no caso UDV. No caso Smith manteve-se lei do estado do Oregon que negava benefícios de seguro-desemprego para usuários de drogas, inclusive para descendentes de nativos, que teriam usado o peiote. Afastou-se no caso Smith uma jurisprudência mais amena, que havia se consolidado em 1963, quando se julgou o caso Sherbert v. Werner.

Houve reação por parte do Congresso Norte-Americano que subseqüentemente ao julgamento do caso Smith aprovou lei que retomou jurisprudência anterior, isto é, voltando-se a percepção mais ampla de percepção religiosa. Trata-se do já citado RFRA, de 1993. Nos termos desta legislação o governo federal não poderia limitar o livre exercício pessoal de qualquer religião, inclusive por meio do implemento de normas de alcance geral. Desenhou-se então única exceção, por meio da qual a limitação exigiria que o governo comprovasse, de fato e indiscutivelmente, interesse relevante na proibição, com fundamento na proteção de direitos públicos mais abrangentes.

A aplicação do RFRA em relação ao uso de substâncias sacramentais reportava-se a outra regra, relativa ao controle de substâncias entorpecentes, chamada de The Controlled Substances Act. A referida norma regula a importação, manufatura, distribuição e posse de substâncias psicotrópicas. Nos termos do acórdão do caso UDV, a lei de substâncias controladas divide-as em cinco tabelas, com base no potencial de dano, em relação a cada um das substâncias listadas. A tabela de número 1 alcança substâncias com maior número de restrições, inclusive mediante a identificação de tipos penais.

A UDV praticava comunhão mediante o uso de um chá sacramental, chamado de hoasca. A referida bebida seria produzida a partir de planta da região amazônica, a psychotria viridis, cujos efeitos seriam potencializados por outra planta, a banisteriopsis caapi. Encontra-se no chá o DMT, dimethiltriptamina, substância elencada na tabela número 1 da lei de substâncias controladas. Assim, em primeiro lugar, tem-se que o chá hoasca conteria DMT, de uso proibido nos Estados Unidos da América.

Em 1999 a alfândega norte-americana interceptou uma partida de hoasca cujo destinatário era a UDV. Comprovou-se que antes da apreensão a UDV havia recebido cerca de 14 lotes de hoasca. Após a apreensão, e ameaçada pelas autoridades, a UDV buscou o judiciário norte-americano.

2.2) Aspectos Processuais

A UDV propôs ação contra as autoridades norte-americanas, com pedido de liminar. Buscava-se o que o direito processual norte-americano nomina de declaratory and injunctive relief. A injunction é ordem da Corte que implica em ato específico do requerido, em decorrência de circunstância de perigo imediato (cf. HAZARD JR. e TARUFFO, 1993, p. 156), de uso recorrente em sociedade altamente litigiosa (cf. CARP e STIDHAM, 2001, p. 17). No pedido original a UDV alegou que a hipótese não era de aplicação da lei de substâncias controladas, cuja utilização no caso contrariava o RFRA. Cautelarmente requereu-se autorização para uso temporário do hoasca, até decisão final.

Em audiência o governo norte-americano reconheceu que a aplicação da lei de substâncias controladas seria ônus pesado imposto ao exercício sincero de religião, e que a UDV de fato demonstrava sinceridade no uso da substância encontrada no chá sacramental. Alegou-se, porém, que a aplicação da norma do RFRA não era desrespeitada, porque havia três interesses legítimos comprovados, nomeadamente: 1) proteção da saúde dos membros da UDV, 2) prevenção de eventual uso recreacional do hoasca, com conseqüente utilização do DMT, substância proibida e, 3) adesão por parte do governo norte-americano a convenção da ONU, de 1971, relativa à repressão ao uso de substâncias psicotrópicas.

Em 1ª instância reuniu-se extenso conjunto probatório. O governo norte-americano provou que o DMT pode causar reações psicóticas, alterações cardíacas e interações adversas com outras substâncias. Em embate judicial equipoise (equilibrado) a UDV provou que o uso do hoasca não criava problemas concretos, e que não havia relatos de ocorrências. Ainda, a UDV demonstrou que os 130 membros do grupo não representavam mercado consumidor que justificasse preocupações. Pelo contrário, tratava-se de mercado consumidor mínimo e desprezível. O juiz de instância inicial, com base nas provas, concluiu que o governo norte-americano não havia demonstrado interesse legítimo em limitar as atividades da UDV, mediante a proibição do uso do hoasca.

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Quanto à convenção da ONU de 1971, decidiu-se originariamente que o documento não se aplicava ao hoasca. Deferiu-se liminarmente o pedido da UDV e proibiu-se o governo norte-americano de impedir a importação e consumo do hoasca por parte dos requerentes. O governo norte-americano apelou para o Tribunal que em 2ª instância manteve a decisão originária, por seus próprios e intrínsecos fundamentos. Inconformado, o governo protocolou pedido na Suprema Corte, o writ of certiorari. No modelo judicial norte-americano a Suprema Corte detém discricionariedade em relação à escolha dos casos que lhes são encaminhados (cf. REHNQUIST, 2001, p. 224).

Tem-se embate entre prática religiosa sincera e interesse legítimo na limitação de direito de exercício religioso. O governo ampliou a argumentação e alavancou tese de que pedido cautelar exige demonstração de possibilidade de se receber tutela jurisdicional quanto ao mérito, o que não estaria cabalmente demonstrado pela UDV. As autoridades norte-americanas insistiam que a lei de substâncias controladas não abria exceção para o uso do DMT, bem como não suscitaria nenhuma outra exceção. O que se reconheça, nos termos do acórdão, que não se trata de afirmação absolutamente ortodoxa. É que exceção há para o uso do peiote, por parte de membros da Native American Church. Ainda, em 1994, a exceção fora estendida para todos os membros de tribos reconhecidas, porque as autoridades norte-americanas desenvolveram tese de relação específica com tribos indígenas, refutada pelos advogados da UDV.

O writ of certiorari também se baseou no tratado de 1971, pelo qual os Estados Unidos da América teriam se comprometido a reprimir estupefacientes, entre eles o DMT. Tratava-se de obrigação internacional, de feição cogente, que deveria ser cumprida. São estas, entre outras, as argumentações do governo norte-americano, tema do próximo item.


3.A Petição do Governo Norte-Americano

A petição do governo norte-americano (brief for the petitioners) protocolada junto à Suprema Corte dos Estados Unidos, em nome do Procurador-Geral, Alberto R. Gonzales, e demais autoridades interessadas no caso [04], segue a sistemática e a formalidade do processo civil naquele país. Primeiramente, e em destaque, indica-se a questão apresentada, laconicamente:

Se o Religious Freedom Restoration Act de 1993, 42 U.S.C. 2000bb et seq., determina que o governo norte-americano permita a importação, distribuição, posse e uso de substância alucinógena controlada, no caso do Congresso ter determinado que tal substância tenha alto potencial de lesão, bem como uso inseguro mesmo com acompanhamento médico, e se a importação e a distribuição da referida substância viola tratado internacional [05].

Os advogados do governo norte-americano centram a questão no RFRA, vinculando todo o caso em norma legal superveniente que capitula o hoasca como substância proibida, e portanto fora do alcance de proteção de regras de liberdade religiosa. Um índice (table of contents) dá conta dos passos da petição, indicando também as autoridades e antecedentes que instruem a pretensão dos requerentes.

O texto explicita que o julgamento do Tribunal de Apelação dera-se em 12 de novembro de 2004, que o requerimento para oitiva da Suprema Corte (writ of certiorari) fora protocolado em 10 de fevereiro de 2005 e que em 18 de abril do mesmo ano aquele Sodalício concordou em apreciar a questão.

Os requerentes começam invocando a lei de substâncias controladas (The Controlled Substances Act) que penaliza a posse, manufatura ou distribuição de quaisquer substâncias que a norma elenca, com as exceções previstas na própria regra. Indicam-se as tabelas que descrevem as várias substâncias, com especial foco na tabela número 1, na qual se identificam substâncias com maior poder de dano (high potential for abuse). Com base na premissa indica-se a falta de segurança que marca o uso de tais alucinógenos. Entre as substâncias que a tabela número 1 alcança há o DMT, encontrado no hoasca, o chá sacramental servido nas cerimônias da UDV.

Em seguida, os requerentes dão os contornos do tratado assinado pelos Estados Unidos da América junto à Organização das Nações Unidas em 1971, relativo à repressão de substâncias entorpecentes. Afirmaram que a convenção é pedra de toque em esforço internacional para se combater o uso de drogas e o tráfico internacional de entorpecentes. Nos termos da petição a Convenção da ONU também dividiria as várias substâncias em tabelas, encontram-se o DMT (encontrado no hoasca) no grupo 1, no qual se listam as drogas de maior potencial ofensivo. Faz-se menção ao fato de que os Estados Unidos fizeram apenas uma reserva à convenção, relativa ao uso do peiote, por parte de nativos norte-americanos, que usam a erva desde tempos imemoriais, substancialmente em cerimônias religiosas.

Os requerentes então dão as linhas gerais do RFRA, também no que toca à necessidade das autoridades comprovarem efetivo interesse em limitar práticas religiosas, a exemplo do que se passava no caso UDV. Informou-se que a UDV, o Centro Espírita Beneficente União do Vegetal, seria organização religiosa fundada no Brasil em 1961, e que chegou aos Estados Unidos da América em 1993. Por pelo menos 34 vezes ao ano os membros da UDV realizariam cerimônias nas quais se ingeria o hoasca, chá que conteria DMT, substância proibida pela lei norte-americana de substâncias controladas, bem como pela convenção que os Estados Unidos assinaram junto à Organização das Nações Unidas em 1971.

Historiou-se a apreensão da partida de hoasca para a UDV, bem como deu-se novamente notícia a propósito dos remédios judiciais propostos pela entidade religiosa de origem brasileira. Noticiou-se que em primeira manifestação o juízo a quo não aceitara tese de que o hoasca não estaria explicitamente indicado na tabela número 1, publicada em anexo à lei de substâncias controladas. Também esta primeira manifestação havia desvinculado a possibilidade do uso do hoasca como decorrência direta da liberdade religiosa inserida na 1ª emenda à constituição norte-americana.

Porém, confeccionou-se liminar, com base em premissa que dava conta de que o governo não conseguiu se desempenhar do ônus de comprovar que detinha interesse relevante em intervir na liberdade religiosa dos requeridos. De tal modo, os requerentes queixaram-se da liminar, que proibia as autoridades norte-americanas de processar criminalmente os requeridos, pelo transporte e posse da substância controlada. Também se proibiu o governo norte-americano de restringir as quantidades de hoasca importadas. Os requerentes exploraram contradições nos votos dos juízes que apreciaram a causa no Tribunal de Apelação.

A linha de argumentos então se desloca novamente para a lei de substâncias controladas, que guardaria congruência e coerência com o RFRA. Isto é, na percepção dos requerentes, com base em fortíssimo conteúdo de precedentes que qualifica copiosa jurisprudência, há balanço em favor da pretensão do governo norte-americano, no conflito que se desenhava entre o exercício de religião e interesses governamentais da mais alta importância.

Excerto substancial também insiste em aspecto processual, com base em grande número de precedentes, que sustenta que os requeridos precisam demonstrar em cautelar a probabilidade que se desenhava em seu favor, no sentido de que teriam sucesso na argumentação central, lastreada no mérito da questão. Passo de densidade científica explora os perigos que envolvem o uso do DMT, substância encontrada no hoasca. Os requerentes apresentaram complexo estudo de arqueologia jurídica, informando os porquês que justificaram a inclusão do DMT na tabela 1 na lei de substâncias controladas, por parte da Câmara dos Deputados, nos Estados Unidos.

Há esforço argumentativo no sentido de se firmar a tese de que a prevenção dos problemas oriundos do uso do DMT é interesse legítimo que oxigena a atuação das autoridades norte-americanas. De tal modo, a inclusão do DMT (e conseqüentemente do hoasca) na tabela número 1 da lei de substâncias controladas não seria antinômico com a o RFRA, porque relevante interesse justificaria a limitação da liberdade religiosa, como previsto pela norma de regência. Para os advogados do governo norte-americano a proibição tinha fundamento científico, de modo que motivações religiosas não alteram a ciência. No entender dos requerentes a lei deveria ser aplicada a partir de regras, e não de exceções. Citou-se caso dos Amish, e de um agricultor que postulou isenção de recolhimento de valores de previdência social, com base em excepcionalismo religioso, tese que foi refutada pela Suprema Corte norte-americana.

Prevendo que os requeridos iriam invocar o uso do peiote, por parte das tribos norte-americanas, os advogados dos requerentes fixaram que tal liberalidade decorria de fato distinto, relativo a obrigações históricas, assumidas pelo colonizador, na luta travada pela posse do território norte-americano. De fato, há imunidade de soberania em relação às tribos indígenas (cf. CANBY, JR., 1998, p. 87). Para os requeridos, a situação dos nativos qualifica opção do legislador, que deve respeitar a normatividade das tribos, em passo que invoca concepção de pluralismo jurídico, em seu sentido antropológico.

O princípio da razoabilidade [06] é invocado pelos requerentes, no sentido de que a lei de substâncias controladas deve ser oposta à norma de liberdade religiosa, por conta dos perigos que o uso do DMT poderia trazer. Trata-se da adoção de princípio que revela política, tema afeto à reflexão constitucional norte-americana (cf. DWORKIN, 1999, p. 81 e ss.). Os perigos do uso do hoasca são novamente indicados, especialmente no que toca ao desenvolvimento de sentimentos psicóticos. Haveria ainda a possibilidade da utilização do hoasca para finalidades desvinculadas de práticas religiosas, certo uso de natureza recreacional, que deveria ser obstaculizado, no entendimento dos requerentes.

O governo dos Estados Unidos juntou documentação das autoridades brasileiras, relativas ao enquadramento legal do hoasca no Brasil. Nos termos de informação por Ronaldo Urbano, da Polícia Federal brasileira, substâncias que contém DMT são proibidas no Brasil. Traduziram-se excertos da Lei nº 6368, de 28 de outubro de 1976. Ainda juntou-se comunicação entre representante da embaixada norte-americana no Brasil (Mark Hoffman) e a já mencionada autoridade da Polícia Federal. Com base no art. 12 da Lei nº 6368, de 1976, bem como com fundamento em regulamentação da ANVISA, informou-se que o comércio e a exportação de DMT são proibidos no Brasil. Quanto ao hoasca não haveria previsão legal específica para proibição de comércio, de consumo e de exportação, dado que as substâncias devem ser analisadas casuisticamente. Quanto ao consumo por parte de grupos religiosos, não há previsão legal para proibição do hoasca, que não também é geralmente exportado, porque não há vinculação entre o DMT e o hoasca por parte da legislação brasileira.

Os requeridos concluíram que as decisões de primeira instância deveriam ser reformadas.

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Sobre o autor
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Professor universitário em Brasília (DF). Pós-doutor pela Universidade de Boston. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Procurador da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GODOY, Arnaldo Sampaio Moraes. Direito comparado. A Suprema Corte norte-americana e o julgamento do uso de huasca pelo Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (UDV).: Colisão de princípios: liberdade religiosa v. repressão a substâncias alucinógenas. Um estudo de caso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1537, 16 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10393. Acesso em: 18 abr. 2024.

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