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Mendicância contravencional:

a gestão penal do medo

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12/09/2007 às 00:00
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4 SINGULARIDADES HISTÓRICAS

            Embora não se possa buscar no passado a explicação total do presente, é certo que "a incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado" (BLOCH, p. 42). Como é sabido, o povo brasileiro se formou a partir da junção de três matrizes étnicas, a européia, a indígena e a africana (RIBEIRO, 1995, p. 29-80). As duas últimas escravizadas e submetidas à violenta empresa colonizadora cuidadosamente arquitetada pela metrópole portuguesa.

            Dessas raízes, conforme Caio Prado Júnior, nasceriam as características fundamentais de nossa sociedade:

            No seu conjunto, e vista no plano mundial e internacional, a colonização dos trópicos toma aspecto de uma vasta empresa comercial, mais complexa que a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo caráter que ela, destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes; e ele explicará os elementos fundamentais tanto no social como no econômico, da formação e evolução histórica dos trópicos americanos [...] Este início, cujo caráter manter-se-á dominante através dos através dos séculos da formação brasileira, gravar-se-á profunda e totalmente nas feições nas feições e na vida do país. (JÚNIOR, 1998, p. 22-23)

            Foram 388 anos de escravidão formal, o que representa aproximadamente 76% de toda a história brasileira. "Nenhum povo que passasse por isso como sua rotina de vida, através de séculos sairia dela sem ficar marcado indelevelmente" (RIBEIRO, 1995, p. 120). Ficaram marcas. Ficou o velado e, às vezes, ostensivo desprezo e as inúmeras violências institucionalizadas de que rotineiramente padecem os setores sociais mais humildes.

            Na preciosa explicação de Darcy Ribeiro:

            Descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instilada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria.

            A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturados impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda, hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos. (grifo nosso) (RIBEIRO, 1995, p. 120)


5 CONCLUSÃO

            A manutenção da contravenção de mendicância no ordenamento jurídico pátrio, bem a "campanha de lei e ordem" encetada pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais contra os "mendigos" da cidade de Uberlândia, abre margem para uma série de discussões ligadas ao Direito Penal. Sua subordinação aos mandamentos constitucionais pátrios e demais documentos internacionais de proteção aos direitos fundamentais. A necessidade urgente de superação do paradigma epistemológico positivista que o norteia, com a conseqüente "reconstrução da dogmática jurídico-penal de acordo com as diretrizes de um direito penal garantidor e ético, assumindo plenamente a realidade do poder do sistema penal e sua deslegitimação [...]" (ZAFFARONI, 2001, p. 6). A rediscussão das formas pelas quais a sociedade brasileira aderiu aos vários processos de globalização, até aqui, "por iniciativa das elites conservadoras", orientadas pelas "formas mais agressivas de desenvolvimento neoliberal" (SANTOS, 2005, p. 13).


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

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            BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

            BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

            _________________. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.

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            CARVALHO, Amilton Bueno de. Teoria e prática do direito alternativo. Porto Alegre: Síntese, 1998.

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            IANNI, Octavio. Capitalismo, violência e terrorismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.

            JESUS, Damásio E. de. Lei das contravenções penais anotada. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.

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            JÚNIOR, Caio Prado. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1998.

            MACHADO, Antonio Alberto. Ensino jurídico e mudança social. Franca: UNESP, 2005.

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            RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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            ___________________________. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 10. ed. São Paulo: Cortez, 2005.

            SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 19. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000.

            SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

            ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

            ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIRRANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

            ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro: primeiro volume: teoria geral do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

            WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.


Notas

            01

A notícia foi anunciada pela Rede Globo de Televisão, Jornal O Globo, no dia 21 de agosto. Segundo um repórter local, Luiz Gustavo: "[...] a idéia da campanha surgiu depois de uma pesquisa feita na cidade pelo Ministério Público Estadual. O levantamento revelou uma estatística preocupante [...]". Estatística que, logo em seguida, é revelada pelo Promotor de Justiça Marco Aurélio Nogueira: "[...] 94% são mendigos profissionais". MG: crime de mendicância é combatido em Uberlândia. Jornal o Globo. Disponível em: http//g1obo.com/Noticias. Acesso em: 03 de setembro de 2007.

            02

O projeto de lei (4668/2004) foi apresentado ao plenário da Câmara dos Deputados, pelo parlamentar Eduardo Cardoso (PT-SP), no dia 15 de dezembro de 2004, recebendo parecer favorável da Comissão de Constituição e Justiça em 3 de julho de 2007. Valendo ressaltar que, já anteriormente, um projeto de lei da mesma natureza (7.799/2001) fora apresentado.

            03

Paulo Queiroz, em estudo das teorias deslegitimadoras do sistema penal, aponta doze críticas: 1) é incapaz de prevenir; 2) é seletivo; 3) é estruturalmente violador dos direitos humanos; 4) somente intervém excepcionalmente; 5) reificação do conflito; 6) é o próprio sistema que cria o crime; 7) intervém sobre pessoas, e não sobre situações; 8) é reativo e não preventivo; 9) atua tardiamente; 10) atua com uma concepção falsa de sociedade; 11) a lei penal é uma criação artificial; 12) atua sobre os efeitos e não sobre os condicionantes (QUEIROZ, Paulo. Funções do direito penal: legitimação versus deslegitimação do sistema penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 88-101).

            04

Um estudo mais aprofundado acerca da orientação seletiva do sistema penal pode ser encontrado na obra "Direito penal brasileiro: primeiro volume: teoria geral do direito penal". O referido livro traz brilhante e esclarecedor estudo elaborado pelos professores Eugenio Raúl Zaffaroni, Nilo Batista, Alejandro Alajia e Alejandro Slokar.

            05

Salo de Carvalho fala, por isso, de um "mal-estar" nas Ciências criminais a exigir uma intensa terapia transdisciplinar (CARVALHO, Salo. Criminologia e transdisciplinalidade. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Coord.). Sistema penal e violência. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006.
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Sobre o autor
Tales Passos de Almeida

professor de ensino superior, especialista em Direito Público com ênfase em Direito Constitucional, bacharel em Direito, licenciado em História

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Tales Passos. Mendicância contravencional:: a gestão penal do medo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1533, 12 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10397. Acesso em: 22 dez. 2024.

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