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Sentença denegatória de falência e coisa julgada: considerações

09/05/2023 às 16:06
Leia nesta página:

A sentença denegatória da abertura judicial da falência não terá autoridade de coisa julgada material, sendo meramente formal.

Estabelece o art. 19, do ab-rogado Decreto-Lei 7.661/45 que: Cabe apelação da sentença que não declarar a falência. Parágrafo único: A sentença que não declarar a falência não terá autoridade de coisa julgada. Por sua vez, consta do art. 17: Da sentença que declarar a falência, pode o devedor, o credor ou o terceiro prejudicado, agravar de instrumento. O enunciado do art. 100 da Lei 11.101/05 tem a seguinte redação: da decisão que decreta a falência cabe agravo, e da sentença que julga a improcedência do pedido cabe apelação.

Extrai-se da leitura dos dispositivos o seguinte: o art. 100 da lei de 2005 unificou as regra dos artigos 17 e 19 do diploma legal de 1945, mas nada dispõe acerca da coisa julgada, qual consta do art. 19, parágrafo único.

A sentença que determina a abertura judicial da falência pode ser objeto de agravo de instrumento, competindo ao interessado pleitear a concessão de efeito suspensivo em sede recursal [CPC, art. 1.019, inc. I; art. 995, parágrafo único]. Um pequeno detalhe: enquanto não houver determinação do órgão ad quem a sentença de primeiro grau imediatamente produzirá seus legais efeitos [cf. art. 995, CPC], podendo [devendo] ser dado cumprimento ao seu dispositivo, inclusive com a arrecadação de ativos, dentre outros atos. Mas, em havendo concessão de efeito suspensivo à decisão agravada, dias depois a esta, v.g., como fica a situação processual – em especial se o administrador judicial já procedeu à arrecadação de ativos e houve o desapossamento dos bens devedor -? A doutrina não aborda o tema com a profundidade necessária, quer-se crer, de modo que caberia o debate acadêmico a respeito de importante questão. A indagação ora apresentada não é simplesmente em decorrência dos termos da Lei 11.101/05, mas já vem desde os tempos de vigência do Dec-Lei 7.661/45, quando do primeiro contato com o direito da insolvência.

Entende-se, s.m.j., que há de se colocar em relevo o consequencialismo [ou seja, as consequências práticas, impactos, repercussão] das decisões judiciais, a teor dos artigos 5º e 10 do Dec.-Lei 4.657/1942. A abertura de falência pode, em tese, trazer graves e irremediáveis consequências ao devedor, aos colaboradores da pessoa jurídica - agora falida -, aos clientes e fornecedores, aos credores, ao Estado e ao próprio mercado em que atua a entidade. Por fim, em situação tal – decretação da falência -, evidentemente urge ingressar com o agravo de instrumento tão logo tenha ciência do conteúdo da decisão, visando-se a obtenção de efeito suspensivo.

Prosseguindo, a sentença que denega a abertura judicial da falência pode ser objeto de apelação, com efeito suspensivo (CPC, art. 1.012).

Ao presente ensaio interessa discorrer acerca da coisa julgada, expressamente mencionada no texto legal de 1945, mas ausente da redação do art. 100 da Lei 11.101/05.

A coisa julgada material está prevista no art. 502 do Código de Processo Civil, traduzindo-se, pois, em qualidade da sentença de mérito, tornando-a imutável e indiscutível2. No que diz com os conceitos de coisa julgada material e coisa julgada formal, esta seria um evento intraprocessual, i.e., a imputabilidade e indiscutibilidade da sentença compreendida como um fato interno ao processo, impedindo a rediscussão da material naquele procedimento, mas não em outros3. Quanto à coisa julgada material, atingira o próprio direito material, seria a ‘imutabilidade dos efeitos substancias da sentença de mérito’, projetando-se ‘ad extra’, para fora do processo em que proferida a decisão, vedando a renovação da discussão não só naquele procedimento, mas em qualquer outro. Assim, enquanto a cosia julgada formal é endógena, a coisa julgada material operaria efeitos para além do processo porque a norma do direito material passa a ser aquela decidida no caso (‘lex specialis’). 4 Em resumo, a coisa julgada material relaciona-se à sentença que julga o mérito da lide, impedindo-se a reanálise em outro processo; a coisa julgada formal diz com questões julgadas no âmbito do processo – interlocutórias – havendo preclusão.

A sentença denegatória da abertura judicial da falência não terá autoridade de coisa julgada material, sendo meramente formal. Em outros termos, inexiste qualquer impeditivo ao autor do pedido de falência [ou outro credor] que formule novo pleito – em ação autônoma e sem distribuição por dependência -, com base em outra causa petendi remota [circunstância fática], novos fatos e provas diferentes daqueles constantes da ação anterior5 6. Esclarece Trajano de Miranda Valverde:

A sentença denegatória da falência não tem autoridade de coisa julgada, diz o parágrafo único. Não tem, com efeito, mas no sentido de que a própria parte que decaiu do pedido pode voltar a fazê-lo, baseando-se em ‘novos fatos’. O fundamento legal pode ser o mesmo, diverso, porém, há de ser o ato ou fato atribuído ao devedor. Rigorosamente falando, pois, a sentença denegatória da falência tem autoridade de coisa julgada. Pode o credor requerer de novo a falência do seu devedor-comerciante, mas diversa há de ser a ‘causa petendi’ 7

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Por sua vez, acentua Pontes de Miranda:

O art. 19, parágrafo único, do Decreto-Lei 7.661 de modo nenhum pré-exclui a coisa julgada ‘formal’ (pedido nos mesmos autos, 2ª Câmara Cível da Côrte de Apelação do Distrito Federal, 6 de junho de 1919, R.J., 15, 551).

Não atendeu à diferença entre coisa julgada material e coisa julgada formal, baralhando, lamentavelmente, os conceitos, a 1ª Turma do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, a 27 de maio de 1947 (‘O D’., 60, 283).

A sentença que deixa de decretar a abertura da falência não faz coisa julgada ‘material’. O pedido pode ser feito, de novo, por outro credor; não o pode fazer, reiterando-o, o próprio credor que pedira a decretação e fora repelido o seu pedido [...] Se o título é outro, não há pensar-se me coisa julgada formal nem material8

Eram essas as considerações acerca do importante tema, não constante da atual Lei 11.101/05, lembrando, uma vez mais, clássico pensamento, no sentido de que:

Quando não se põem em termos adequados as questões, as respostas podem ser diferentes, conforme aquilo com que cada ouvinte ou leitor enche a proposição interrogativa. A interpretação das leis exige que se ‘parta’ de conceitos fixados, que sejam estremes de ambiguidade e, ‘a fortiori’, de equivocidade. Somente assim se pode chegar à acertada revelação do conteúdo das regras jurídicas9


  1. Disserta Antonio do Passo Cabral: O novo CPC incorporou a nomenclatura de Liebman, que foi um dos autores que evidenciou que os efeitos da sentença são diferentes da ‘autoridade de coisa julgada ‘ (auctoritas rei iudicatae’). A coisa julgada, para Liebman, seria uma ‘qualidade’ que se agregava à sentença de mérito após o esgotamento dos recursos, mas não era criada, gerada ou produzida pela própria sentença. Assim, a coisa julgada não seria ela mesma um ‘efeito’ da sentença, como conceituava o art. 467 do CPC/1973. Breves comentários ao Novo Código de Processo Civil. 3ª edição. WAMBIER, Teresa A. A.; DIDIER Jr, Fredie; TALAMINI, Eduardo; DANTAS, Bruno (coords.). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 1422. Destaques no original.

  2. CABRAL, Antonio do P. Op. cit., p. 1423.

  3. CABRAL, Antonio do P. Op. cit., p. 1423.

  4. Importante a citação da doutrina clássica nacional. SAMPAIO DE LACERDA, J.C. Manual de Direito Falimentar. 14ª edição. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 94. Grifos no original. FERREIRA, Waldemar. Instituições de Direito Comercial. Quinto Volume. A falência. 4ª edição. São Paulo: Max Limonad, 1955, p. 149.

  5. RT 490/102.

  6. Comentários à Lei de Falências. Volume I (arts. 1º a 61). Rio de Janeiro: Editora Forense, 1999, p. 195. Destaques constam do original. Acentua Nelson Abrão: A sentença que rejeita o pedido de falência não faz coisa julgada, dilo o art. 19, parágrafo único. O dispositivo deve ser entendido em termos: denegado o pedido, o requerente só poderá voltar a carga com alterações convincentes ao fundamento primitivo ou alinhando nova causa de pedir. Curso de Direito Falimentar. 5ª edição. São Paulo: Livraria e Editora Universitária de Direito, 1997, pp.119-120.

  7. Tratado de Direito Privado. Parte Especial. Tomo XXVIII. 3ª ed., 2ª reimpressão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1984, pp. 143-144. Destaques no original.

  8. PONTES DE MIRANDA, Op. cit., p. 398. Grifos no original.

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Sobre o autor
Carlos Roberto Claro

Advogado em Direito Empresarial desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; Parecerista; Pesquisador; Autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CLARO, Carlos Roberto. Sentença denegatória de falência e coisa julgada: considerações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7251, 9 mai. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/103972. Acesso em: 2 nov. 2024.

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